NEON CITY-MECÂNICOS- CLTS 28

NEON CITY- MECÂNICOS

Inspirado em Berenice de Edgar Allan Poe

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Eu amava Berenice Mortágua. Desde a nossa adolescência. Ela dançava pelas ruas, ágil e graciosa, sonhava em ser uma dançarina profissional para dançar nos palcos dos teatros, ter sucesso, fama e prestígio. Enquanto eu, com minhas pernas malformadas, atrofiadas, permanecia sentado numa cadeira de rodas, encerrado em meu quarto com meus livros.

De vez enquanto saia para o jardim para tomar sol. Da casa dela em frente, me via lá solitário e vinha conversar como amigos que éramos. Berenice sabia que eu a amava, mas por ser um inválido, ela nunca teria um relacionamento amoroso comigo. Gostava de mim, mas não com aquela paixão ardente que tanto eu desejava. Aquele tipo de amor que ela não ousava sentir, bem eu sabia.

Estudamos juntos na universidade, ela se formou em dança eu em engenharia mecânica. Comprei um console para desenhar próteses biônicas. Eu queria construir minhas próprias pernas artificiais. Desenhava em 3d, sonhando substituir meus membros inferiores. Eu queria deixar aquela cadeira de rodas, me levantar com minhas próprias pernas, e caminhar até Berenice e a convidar para dançar uma valsa. Ela não teria mais motivos para me olhar com pena e constrangimento.

A minha melancolia desapareceu, quando finalmente, um dia, vislumbrei sucesso em meu empreendimento. Eu havia completado o desenho. Coloquei-o na máquina modeladora 3D e construí as peças. Ao mesmo tempo registrei a patente e criei uma empresa especializada em próteses biônicas. Contratei Ivan, um mecatrônico para me auxiliar.

——

Para fazer cirurgia biônica pelo SUS, levaria anos e por isso, procurei uma clínica particular. Peguei um carro autônomo até o centro. Pedi para descer na esquina da avenida Vésper com a Orion. Paguei a corrida com meu chip de aposentado por invalidez, o sistema eletrônico acionou a prancha e eu deslisei para a calçada com minha cadeira de rodas. Olhando ao longo da avenida, poderia se pensar que o Centro era tranquilo, seguro e bonito, com seus anúncios de neon, propagandas em hologramas na fachada dos prédios cinzentos, casas noturnas, cybercafés, cinemas e bares lotados, mercado clandestino, cores e luzes por todo lado, mas era ali que viviam os marginalizados, criminosos, meretrizes, cafetões, piratas cibernéticos, milicianos e ratos explorando lixeiras.

Ajeitei o pacote com as próteses em cima de meus joelhos e entrei num beco. Parei em frente a uma porta de ferro pintada de verde musgo. Acima dela, uma câmera de vigilância me encarou. Apertei um botão no painel ao lado e uma voz se fez ouvir.

— Quem é e o que deseja?

— Meu nome é Júlio Dalton. Identidade número 398fg362hk34. Quero falar com o Diretor a respeito de uma cirurgia para colocação de pernas biônicas. Pago adiantado.

A porta abriu-se.

——

Com minhas novas pernas, fui ao Teatro Galileu assistir à peça, O Lago do Cisne, onde Berenice era a dançaria principal. Ela tornou-se membro do corpo de baile e usava o nome artístico de Guida Montini, se mudou para um bairro chique. Era agora uma celebridade.

Após a apresentação, fiquei ao lado da porta esperando que ela saísse. Quando apareceu, estava acompanhada por um homem de terno escuro. Ela também estava elegante, usando um vestido vaporoso. Eu mandei fazer um terno riscado de linho belga para aquele momento especial.

— Berenice!

Ao me ouvir, voltou o rosto e me reconheceu, parou e fui cumprimentá-la.

— Júlio Dalton! É você mesmo?

— Sou eu mesmo com minhas novas pernas.

— Como assim? Fiquei surpresa ao vê-lo caminhando.

Ergui a perna da calça e bati com a mão nas canelas.

— São próteses biônicas.

Berenice deixou de sorrir e me olhou, intrigada.

— Você tinha pernas atrofiadas!

— É melhor não falar nesses detalhes.

É claro que não falei que pedi para o Diretor cortar minhas pernas na base dos joelhos e substituí-las pelos biônicos.

— Guida, temos que nos apressar. - disse o homem.

— Júlio, esse é o meu agente artístico, o senhor Carlitos Savana. Devo a ele tudo que sou hoje.

Apertamos as mãos como cavalheiros que éramos, mas não simpatizei com aquele sujeito. Ele devia ser uns 20 anos mais velho que Berenice. Tinha um dermatrodo implantado na têmpora esquerda (condutor plugado ao cérebro, sobre a pele, para conexão com o cyberespaço). Não gostei dele, não por ciúmes, mas porque senti uma energia ruim que o envolvia.

— Precisamos nos apressar. – disse ele para Berenice.

Ela me deu um último sorriso e se despediu.

— Até logo, Júlio. Foi bom te ver.

— Podemos jantar qualquer dia? Para nos atualizar.

— Claro. Terça-feira, pode ser?

— Ótimo. Nos encontramos aqui mesmo.

Fiquei a vê-los se afastar pela calçada, sob a luz dos candieiros que se acendiam. Fiquei satisfeito em poder ter falado com a mulher que eu amava. Até então, eu tinha acompanhado o seu trabalho pelos canais de entretenimento, jornais e revistas especializadas. Até fui assistir o espetáculo algumas vezes, mas sempre ficava no fundo da plateia para que ela não me visse na cadeira de rodas. Agora não havia mais motivos para me esconder.

Depois daquele encontro feliz, saí para caminhar pela cidade como qualquer pessoa normal, fui a lugares onde antes não conseguia ir. A noite estava agradável. Me dirigi até a baía e voltei e ao voltar, percebi um aglomerado de pessoas no meio da rua.. Eu não gostava de ver acidentes, pessoas feridas, sangrando, mas alguma coisa me impulsionou por entre os curiosos e olhei a cena. Três paramédicos atendiam uma mulher estendida no chão. Quando eu vi Carlitos Savana, de pé ao lado, acompanhando o atendimento, meu coração disparou, Era Berenice a vítima.

——

Visitei Berenice no hospital, dois dias depois. Ainda estava sedada, sonolenta, em recuperação, mas o médico liberou as visitas. Quando entrei no quarto, ela estava recostada. Esboçou um sorriso ao me ver. Me sentei na cadeira ao lado.

— Como você está?

Seus olhos encheram-se de lagrimas, e com uma expressão de sofrimento, ergueu o lençol. Fiquei chocado. Os médicos tiveram que amputar sua perna esquerda. Ela estendeu as mãos para mim aos prantos e eu a reconfortei em meu peito.

— Júlio, minha carreira de dançarina acabou. Minha vida acabou. Mesmo com uma perna biônica como a sua, como vou dançar?

— Você poderá voltar a ter uma vida normal, como eu. Poderá ter uma outra ocupação. Talvez professora de dança, ou trabalhar num escritório. Por falar nisso, e o teu empresário? Ele deveria estar aqui para te apoia, resolver os teus problemas.

— Ele veio, pagou as contas. Não quero falar dele

— Por quê? O que aconteceu?

— Nada.

— Como foi o acidente?

— Não me lembro. O médico disse que talvez eu lembre mais tarde.

Acessei as notícias do acidente com minha pulseira eletrônica. Uma testemunha disse que Berenice havia atravessado a via sem olhar para os lados, o que foi confirmado pelo motorista causador do acidente. Ela não atravessou na faixa zebrada.

Fiquei intrigado com o fato de Carlitos sair ileso.

— O teu empresário não estava contigo? Como ele não se machucou?

— Não me lembro.

— Ok. Agora você tem que aceitar a triste realidade e procurar um modo de vida onde possa se sentir confortável e em segurança. Se você quiser, posso fazer uma prótese sem custo nenhum. Você é a única amiga que tenho. Não precisa decidir agora. Pense bem no assunto e me telefona para eu tirar as medidas.

Não insisti no assunto para não a deixar nervosa. Mas o germe de desconfiança já estava instalado em minha mente. Alguns dias depois, quando eu soube que ela havia ganhado alta, me ofereci para acompanhar até a casa dela, mas ela disse que não precisava, que Carlitos a levaria. Fiquei chateado, claro.

Alguns dias depois telefonei para ela.

— Só queria saber como você está.

— Estou bem, ainda me recuperando.

— Decidiu usar a prótese? Criei uma textura cobrindo o mecanismo biônico, que imita perfeitamente um membro real. Você vai poder dançar com tranquilidade.

— Não sei por que você está fazendo isso por mim, Júlio. Não precisa.

— Precisa, sim, nós somos amigos!

— Eu tenho Carlitos para cuidar de mim, não se preocupe. Ele comprou uma prótese bem eficiente.

As palavras de Berenice me deixaram magoado e até uma ponta de raiva riscou meu espírito, não por ela, mas por Carlitos.

Desliguei o telefone, decidindo achar uma maneira para separar Carlitos da minha amada. Nos dias seguintes, me concentrei no trabalho na criação de novos aparelhos, na construção de novas prótese para atender a demanda. Minha empresa estava se tornando líder do mercado. Mandei flores para Berenice, desejando boa recuperação. Recebi um e-mail dela, marcando um encontro na ponte Pindorama, às 21 horas.

Pouco antes das 9 horas da noite, cheguei na ponte sobre o rio que dividia a cidade em dois municípios, dois bairros distintos, o comercial e o industrial. O Industrial foi um bairro pujante no passado não muito distante. Mudanças climáticas. sociais e econômicas, levaram muitas empresas à falência e o bairro ficou entregue às traças.

Achei estranho Berenice marcar encontro naquela ponte. Achei que talvez fosse por causa de Carlitos. Imaginei que eles moravam juntos e que ele tinha ciúmes dela. Àquela hora da noite, o trânsito de veículos e pessoas eram escassos. Parei no meio da ponte, sai do carro e esperei. A iluminação do local era precária, grande parte da ponte estava mergulhada na escuridão. Passaram-se 12 minutos quando avistei alguém se aproximando. Usava uma capa com capuz e eu não estranhei porque estava frio. Pela silhueta roliça, achei que não era Berenice. Pensei que fosse um operário rumo ao turno da noite, mas quando passou por mim, jogou um líquido em meu rosto. Gritei de dor, baixei a cabeça e o sujeito empurrou-me sobre o parapeito.

Acordei no hospital com a cabeça enfaixada, apenas com o olho esquerdo visível. A enfermeira disse que eu estava internado há três semanas em coma induzido. Os médicos disseram que, ao cair no rio, a água havia amenizado os efeitos do ácido corrosivo, mas eles não puderam salvar o olho direito. Teriam que fazer algumas plásticas para reconfigurar o meu rosto e colocar uma prótese ocular. Falei que eu mesmo construiria a prótese. Alguém me achou desacordado na margem do rio. Não sei como cheguei ali.

Imaginei que aquele encapuzado só poderia ser Carlitos. Fiquei furioso e com aquela fúria, um plano foi se delineando e se tornando mais forte ao longo dos dias que fiquei no hospital. Me contaram que Berenice havia telefonado pedindo notícias do meu estado, enquanto eu estava inconsciente, mas depois nunca mais eu soube dela. Imaginei que ela ainda me considerava um invalido, agora que eu era caolho. Recuperei as pernas, perdi um olho.

Telefonei para Ivan, perguntei como estava a nossa empresa. Respondeu que estava tudo correndo bem, que havia muitas encomendas. Acompanhei notícias sobre Carlitos Savana, agente artístico e empresário de cantores, bailarinas e atores, mas não encontrei nada. Nenhum site de fofoca falava de sua vida particular. O homem não expunha sua vida privada e parecia estar sem nada, ou seja, desempregado. Sobre Berenice, diziam que ele lhe dava toda atenção e ajuda necessária para que se recuperasse.

Depois de curado e ganhar alta do hospital, corri para minha oficina e com ajuda de Ivan, construímos o meu olho biônico para ser plugado ao cérebro. Era uma cirurgia delicada e eu recorri novamente ao mago das cirurgias, o Diretor. Dias depois, de posse de minhas funções visuais normais, dei início à minha vingança. Eu precisava atrair Carlitos para uma armadilha.

Raspei a cabeça, corte zero. Coloquei um rubi na orelha esquerda, uma cicatriz falsa na testa, tatuagens falsas nos braços, vesti uma roupa de couro sintético, preta, jaqueta com adereços estravagantes, botas com bico niquelado e fui em busca de um programador de confiança, fora-da-lei. Frequentei boates, cybercafés, bares de má fama, pedia um drinque, conversava com o barman, falava baboseiras, criava histórias asquerosas, cultivando uma confiança recíproca.

Oto, era um barman afrodescendente que atendia no balcão do Bar Limbo, um lugar frequentado por marginais, prostitutas e drogados. Ele tinha um braço biônico, uma prótese velha, revestida com plástico cor rosa encardido, mas eficiente para segurar copos sem deixar cair. Perguntei se ele conhecia algum programador que ignorasse regras por um punhado de dólares e ele mandou-me um link por e-mail, enquanto eu tomava o último drinque.

Mais tarde entrei no endereço eletrônico, um blog chamado Viajante Solitário, com tema em turismo, fiz a inscrição e deixei meu e-mail para contato, anexando a frase, Safe Trail que era a senha para serviço não usual. No dia seguinte recebi o endereço de um cybercafé chamado Colina Triste e a hora, 21::30. O remetente se chamava Uriel Salander.

Na hora marcada, entrei no cybercafé. O local estava cheio, todos os decks ocupados. Encontrando uma mesa vazia na lanchonete, me sentei e pedi um sanduiche de carne de soja e uma limonada. Não levou muito tempo, um rapaz sentou-se na minha frente, tinha cabelos compridos e usava óculos de aro grosso, se vestia como um estudante universitário com seu tradicional pulôver às costas e as mangas sobre os ombros. Ele acionou a cortina eletrônica para que pudéssemos conversar no privado. Depois das apresentações e promessas de confiança e discrição, revelei o que desejava que ele fizesse. Criar uma pessoa fictícia, uma jovem cantora amadora com todos os documentos e imagens necessárias que comprovasse sua existência real.

Dali a alguns dias, recebi o material completo sobre uma cantora amadora chamada Alice Monroe, de 25 anos, com documentos falsos, filha de um falecido empresário, proprietário de mina de diamantes em África do Sul. vídeo clipes com ela cantando em bares. Imagens criadas por IA davam veracidade à existência de Alice Monroe. Paguei a quantia que Uriel Salander pediu e dei autorização para ele lançar o material nas redes sociais e sites especializados.

Aluguei uma casa na periferia em nome de Alice Monroe, para que a existência dela fosse absoluta e sem sombra de dúvidas. Com a senha que Uriel havia criado, entrei no e-mail de Alice e mandei uma mensagem para Carlitos, dizendo que precisava contratar os serviços dele para que ela pudesse se lançar no showbiz.

——

Carlitos Savana chegou à residência de Alice no bairro nobre, as 14 horas e 13 minutos. Normalmente ele recebia seus clientes no escritório, mas a contratante era herdeira de uma fortuna em diamantes e por isso, ele decidiu ir à casa dela para tratar dos assuntos de promoção e venda de seu trabalho como cantora. Não por coincidência, as câmeras do bairro se desligaram quando ele entrou na rua e estacionou o carro em frente a mansão. Ninguém viu quando ele acionou a campainha e uma voz de mulher soou no interfone, mandando entrar, dizendo que a porta estava destrancada. Ele entrou numa sala ricamente decorada, imaginando, talvez, que Alice estivesse no banho, que surgiria envolta num chambre branco, felpudo. Dali a instantes, ele ouviu um som como se fosse o efeito sonoro de uma garrafa de champanhe sendo aberta. Na realidade era o som de uma pistola com silenciador. Sentiu um ardor no peito, baixou o rosto e viu dois buracos no terno turquesa, por onde o sangue jorrava aos borbotões.

Arrastei o corpo e o enfiei num triturador. Coloquei o material biológico num saco plástico e o levei para a impressora 3D. Construí uma perna biônica com o carbono de Carlitos Savana. Depois fui a casa de Berenice e esperei a empregada dela ir embora. Berenice atendeu a porta com ajuda de uma muleta, porque havia tirado a prótese para lavar. Ficou surpresa ao me ver com a perna biônica numa mão e a caixa de ferramentas na outra. Sem cerimônia, empurrei a porta com o ombro e ela caiu com um grito de susto. Coloquei-a para dormir com uma injeção de sonorbital. Depois amordacei-a com fita adesiva e a prendi na cama com algemas.

Quando ela acordou, costurei a prótese biônica em seu coto de perna. Naturalmente ela gritou com dor, é claro, e eu me senti satisfeito. Troquei um dos olhos dela por um olho de vidro, em seguida arranquei os seus dentes para não ver mais aquele sorriso falso e estupido, e no lugar dos dentes, implantei dois conjuntos de malha de aço azul cobalto. Berenice ficou bonita, mas eu não a amava mais.

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Tema: Cyberpunk.

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 04/08/2024
Reeditado em 05/08/2024
Código do texto: T8121879
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