O RETRATO DE DORIAN GRAY

Baseado em histórias reais.

Vincent olhou-se ao espelho. Resolveu fazer a barba quando voltasse para casa. Após beber um gole de absinto, guardou a garrafa no bolso do jaleco, acendeu o cachimbo, pegou os apetrechos de pintura e saiu. Caminhou saltitante desviando-se das poças d’água. Havia chovido durante a noite, mas o dia nasceu claro.

O sol encantava-o. Respirando o cheiro de terra molhada na brisa fresca, dirigiu-se para os campos de cultivo.

Saindo da estrada, seguiu por uma trilha entre o bosque de araucárias e o campo de trigo. Próximo do riacho colocou o tripé no chão. Dali podia ver o trigal, alguns ciprestes e uma casinha ao fundo. Tirou a paleta da bolsa e colocou as tintas.

Antes de fazer o esboço, bebeu um gole de absinto. Abanou a mão ao ouvir um zunido junto à orelha. Achou que era alguma abelha. Fez o esboço da paisagem e começou a pintar. Novamente o zunido, inclinou o corpo e olhou para cima e para os lados. Não viu o inseto. Continuou a pintura.

Com o sol no zênite, resolveu voltar outro dia, no mesmo horário. Limpou os pincéis, a paleta e guardou na bolsa, pegou o tripé, a tela e começou a voltar para casa. No caminho ouviu o zumbido. Imaginou que o inseto o perseguia. Apressou o passo.

Chegando em casa, Vincent encontrou uma carta enfiada por debaixo da porta. Imaginou que era de seu irmão Theo, mas o remetente se chamava Hugo Laverne, um rico comerciante de arte que ele conhecia apenas de nome. Hugo Laverne o convidava para expor um de seus quadros na Primeira Exposição dos Independentes, em sua residência, na Rue de l’Ermitage, n° 31, Versalhes, no sábado, às 16 horas.

Vincent decidiu aceitar o convite. Depois de tomar um banho, foi fazer a barba. Postou-se diante do espelho. Com o pincel de barba fez a espuma, passou no rosto. Pegou a navalha raspou a barba do lado esquerdo. De repente ouviu o zumbido. Achou que era a abelha tentando picá-lo, agitou a mão para enxotar o inseto, acabou dando um talho na orelha com a navalha.

*****

Paul Cézanne dirigiu-se ao Salon de Paris para inscrever uma pintura na Exposição Anual de Arte. Com a tela sob o braço, ele atravessou a Place du Carrossel e entrou por uma porta ao lado dos arcos. Subiu a escada para o corredor que levava ao salão, no segundo andar. No corredor estava um jurado que selecionava as obras. Monsieur Louis Boyer, juiz, dizia a plaquinha sobre a mesa.

Cézanne apoiou a borda da tela sobre a mesa e retirou a toalha que protegia a pintura para o homem examinar. O juiz colocou os óculos e olhou atentamente todos os detalhes da imagem.

─ Como o senhor intitula essa pintura?

─ A Cesta de Maçãs.

─ A perspectiva é bem estranha. A garrafa está inclinada para o lado, o prato de biscoitos parece estar encostado na parede e ao mesmo tempo no centro da mesa. O lado direito é completamente diferente do lado da esquerda. A toalha me parece amontoada, destoante do conjunto.

─ É um novo estilo de pintura. Um conjunto que representa formas geométricas. O círculo da cesta, o quadrado da mesa, o triângulo da toalha e assim por diante.

─ estilo que o senhor inventou?

─ Exatamente.

─ Pois é um estilo bem esquisito.

─ O senhor não percebe a originalidade das formas?

Monsieur Boyer olhou Cézanne nos olhos.

─ Acho que o senhor sofre de astigmatismo. Tem comprovante de formação acadêmica?

─ Não.

─ Essa pintura é disforme, não tem estética. Além do mais, o senhor não tem formação acadêmica. Não posso aceitar sua inscrição. Boa tarde!

Frustrado, Paul Cézanne pegou a tela e foi embora. Não adiantava insistir.

Na entrada do prédio passou por uma carroça transportando uma tela de mais de dois metros de altura. Era Claude Monet, tentando inscrever sua pintura, Mulheres no Jardim. Ele discutia com um dos fiscais que recusava a inscrição da pintura por ser a tela muito grande.

Chegando em casa, Cézanne recebeu um envelope com um convite para expor um de seus quadros no Salão Laverne.

*****

A exposição foi realizada no salão de festas da mansão de Hugo Laverne. Vincent achava que ele fosse um homem maduro, de cabelos grisalhos, mas Laverne era jovem, bem-apessoado. Estava na entrada, recepcionado os convidados. Ele o cumprimentou, desejando boas-vindas com um vigoroso aperto de mão. Vincent era avesso a vida social, mas esforçou-se para ser comunicativo, simpático. Entregou a tela que havia trazido para o secretário de Hugo, que a pendurou na parede junto às outras obras.

No salão encontrou Émile Bernard, seu amigo, os dois haviam trocado quadros, além de Henry de Toulouse- Lautrec, Claude Monet, Paul Gauguin, Paul Cézanne, Theodore Gericault e outros pintores conhecidos, além de negociantes de arte.

Ao avistar Paul Gauguin, Vincent afastou-se para o outro extremo do salão. Ele e Gauguin haviam pintado juntos em várias ocasiões, mas o contato diário dos dois não deu certo. Cada um tinha uma opinião diferente sobre o processo de pintar, as discussões se tornaram frequentes até que Gauguin resolveu cortar relações. Sentindo-se ofendido pelo palavrório de Gauguin, Vincent também passou a evitá-lo.

Émile Bernard aproximou-se dele.

─ Machucou a orelha? − perguntou, olhando para o curativo que Vincent havia feito no corte.

Ele decidiu usar um gorro para ocultar o ferimento, mas pelo jeito, não foi bem-sucedido.

─ Um pequeno acidente sem importância.− não querendo falar sobre o ocorrido, mudou de assunto. ─ Qual pintura você trouxe? Alguma antiga?

─ Não. É um bem recente. Venha ver.

Eles foram caminhando ao longo da parede, onde as obras estavam expostas. Émile estacou diante de uma pintura.

─ Casa Entre Árvores, é o título. Pintei em Pont-Aven, próximo do castelo de Rustephan, quando visitava um parente.

Naquele instante, Hugo chamou a atenção de todos.

─ Senhoras e senhores, bem-vindos à Primeira Exposição de Arte Individual do Salão Laverne. Uma oportunidade para pintores exporem seus trabalhos. Ocasião favorável para que quem ama a pintura, escolha a obra que mais lhe agrade, aquela que fará a diferença, que irá embelezar a sua sala de estar, o seu gabinete ou mesmo, o seu dormitório. Temos na sala contígua, canapés e champanhe para servi-los. Aproveitem. Boas compras a todos. Obrigado.

Van Gogh se dirigiu para o bufê. Ali já estava Édouard Manet conversando com Berthe Morisot, sua pupila. Ele comia um mille-feuille, ela segurava uma taça de champanhe e ria de uma piada que ele disse. Van Gogh, pegou um croissant. Ao se virar, esbarrou em Paul Gauguin.

─ O que houve com sua orelha?

─ Nada que te interessa.

─ Estúpido! Eu só fiz uma pergunta.

─ E eu repito que não te interessa.

─ Cavalo!

─ Se eu sou cavalo você é um asno fedorento.

As ofensas continuariam se não fosse a interrupção de Émile Bernard.

─ Vincent! Venha comigo. Quero te apresentar mademoiselle Anna Boch. Ela quer comprar o seu quadro.

***

A exposição estava correndo normalmente. De repente o secretário de Hugo chamou a atenção de todos.

─ Senhores e senhoras. Alguns de vocês me conhecem como Marcel Rishon, secretário do senhor Hugo Laverne, mas na verdade me chamo Robert Hallward.

Ao ouvir aquele nome, Hugo Laverne empalideceu.

Robert continuou falando pausadamente, passando um olhar rápido sobre as pessoas que o escutavam com atenção.

─ Meu tio, Basil Hallward, é conhecido nas rodas sociais de Londres como um homem digno, benfeitor e um grande pintor. Ele dizia que todo pintor coloca na sua obra um pouco de si. Creio que ele estava se referindo ao lado bom das pessoas, o seu lado positivo. Acredito que o lado negativo, o ruim, permanece oculto. Toda pessoa tem uma personalidade dividida, o seu lado pacífico, honrado e o seu lado primitivo, selvagem, devasso. Olhamos uma pessoa com aparência simpática e pensamos ser alguém digno dos melhores e maiores elogios. No entanto, longe de nossos olhos, aquela pessoa é completamente diferente. Por baixo de sua simpatia, se oculta o seu lado sombrio. O senhor Theodore Gericault, por exemplo.

Gericault aprumou-se, erguendo o queixo. ─ O que tem eu? O que fiz de mau que eu não sei?

─ O senhor Gericault foi ao necrotério fazer desenhos dos mortos do naufrágio da fragata Medusa. Uma pessoa normal não faria isso.

─Eu o fiz para transpor para a tela a expressão do sofrimento dos sobreviventes, a realidade como ela é. Não seja bobo! O senhor está dizendo besteiras.

Robert não deu ouvidos às palavras de Gericault e continuou: ─ Atitude típica dos desajustados. Em vez de exaltar o belo, o senhor Gericault pinta o feio, o horror.

Uma breve pausa e um gesto ─ Temos ali o senhor Eugéne Delacroix, que abordou uma menina órfã nas ruas e a convidou para ir ao cemitério pintar o retrato dela. Por que o cemitério, um lugar praticamente deserto? Quais foram seus reais motivos? Para que ninguém descobrisse o seu lado mau? Com certeza pagou para que a garota ficasse calada.

─ Pintei o retrato dela no estúdio. Na companhia de Madame Guérin− afirmou Delacroix, indignado. ─ O senhor está inventando falsidades. Não sei qual é o seu objetivo. Se continuar com essas mentiras, eu o processarei.

─ Senhoras e senhores. Talvez alguns de vocês conheçam Basil Hallward. Tempos atrás, ele pintou o retrato de um jovem chamado Dorian Gray. Uma pintura explêndida que ele deu a Gray. Alguns dias depois, Basil pediu o quadro emprestado para expor numa galeria, porém, Gray proibiu meu tio de ver a pintura. Não sei o que apareceu naquela tela depois de algum tempo. É algo tão assombroso a ponto de Gray matar Basil para que não o visse e nem mostrasse aos outros.

Hugo Laverne, até então estático e calado, adiantou-se. ─ Marcel, ou Robert, seja qual for o seu nome. O que você pretende com essas acusações sem sentido? O que você quer? Trabalhamos juntos faz quase um ano. Nunca imaginei que você fosse outra pessoa.

─ Deixe de fingir, Hugo. Senhoras e senhores, o nome verdadeiro de Hugo Laverne é Dorian Gray. O homem que matou Basil Hallward e desonrou a senhorita Sybil Vane, com quem eu iria me casar. Desgostosa pela tragédia que esse homem lhe causou, ela acabou se matando.

Robert fez uma pausa, olhando com desprezo para Dorian. Ele estava pálido, com os punhos fechados, a testa enrugada com uma veia saliente pulsante, parecia que iria arrebentar a qualquer momento.

─ É mentira! Todos me conhecem. Meu nome é Hugo Laverne.

Robert o ignorou.

─ Basil Hallward, pintou o retrato do senhor Gray. Ele estranhou que, depois de alguns dias, Gray escondeu a tela e proibiu de Basil vê-lo. Basil queria expor o seu trabalho, mas Gray não deixou que ninguém o visse. O que aconteceu com a pintura para Gray não deixar ninguém ver? Um segredo terrível, o levou a matar Basil Hallward. Manipulou a cena do crime para que parecesse ter sido um acidente. Tio Basil me falou em certa ocasião, sobre Gray esconder a pintura e o seu medo, o seu pavor de que alguém pudesse ver o quadro. Após desonrar a senhorita Sybil e matar Basil, Gray fugiu para a França e aqui se tornou outra pessoa. Eu decidi persegui-lo, descobrir o seu segredo, mostrar ao mundo o assassino de meu tio. Senhoras e senhores, venham comigo, por favor. Quero lhes mostrar uma coisa.

Robert dirigiu-se para a sala-de-estar e postou-se diante de um espelho ao lado da lareira. Voltou-se, dizendo:

─ Ao ver o belo retrato que meu tio pintara, Dorian Gray desejou que permanecesse sempre jovem e que a decadência do corpo, suas paixões, vícios e pecados, fossem transferidos para o retrato sobre a tela, que a imagem pintada pudesse murchar com as marcas do tempo, da sua vida devassa e que pudesse permanecer sempre jovem e saudável.

Robert voltou-se e pegou o espelho, retirando do gancho.

─ Eis aqui o verdadeiro senhor Hugo Laverne, aliás, Dorian Gray.

Houve exclamações e murmúrios. As pessoas se assustaram com a pintura que havia atrás do espelho. Na tela, o retrato de um homem velho, de cabelos compridos, olhos amarelados, a pele com manchas escamosas, os cantos da boca caídos, a aparência de alguém que abusou por muito tempo o consumo de substâncias tóxicas. Apesar da semelhança, era impossível dizer que aquele era o retrato de Hugo Laverne, um homem saudável, bonito, atlético, que Robert acusava de ser Dorian Gray

─ Seu desgraçado! – gritou Hugo e atirou-se sobre Robert. Segurou o secretário pelo pescoço tentando estrangulá-lo. Mas Robert conseguiu se desvencilhar e empurrou Hugo, que acabou caindo para trás, batendo a cabeça na quina da lareira. Ali ficou imóvel com um fio de sangue escorrendo sob a cabeça.

Uma transformação deu-se início. A magia fora quebrada.

Novamente soaram exclamações de horror e surpresa. Hugo Laverne, aliás, Dorian Gray, se transformou no velho que havia na pintura e o retrato voltou a ser o que era quando foi pintado por Basil Hallward, o belo retrato de Dorian Gray.

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 22/07/2024
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