Clara

Clara sempre soube que algo estava errado: desde tenra infância olhava-se no espelho e sentia uma estranha desconexão, como se os olhos que a encaravam de volta não fossem seus. Era uma sensação passageira, que ela atribuía à excentricidade da mente humana. Mas, com o passar dos anos, a sensação se tornou mais frequente e muito mais angustiante.

Na adolescência, Clara começou a evitar espelhos. Banheiros eram um inferno pessoal; vitrines de lojas, armadilhas. Ela desenvolveu a habilidade de não se olhar diretamente, sempre focando no ambiente ao redor, nunca em seu próprio reflexo.

Um dia, no auge do desespero, decidiu enfrentar o espelho do seu quarto, que ela mantinha coberto. Trancou a porta e, com mãos trêmulas, posicionou-se diante do vidro frio. Respirou fundo e levantou os olhos. O que viu fez seu coração parar por um momento. Os olhos refletidos não eram dela. Eram profundos, vazios, como se pertencessem a alguém que estava ali apenas de passagem. Mas não era só isso. Algo nos contornos do rosto, na curva dos lábios, parecia errado. Como se uma sombra invisível distorcesse suas feições.

Clara tentou gritar, mas a voz não saiu. Ela recuou, tropeçando e caindo no chão. Quando tentou levantar, viu algo que a fez gelar: seu reflexo ainda estava ali, olhando-a do espelho, embora ela estivesse no chão. O reflexo sorria.

Naquela noite, Clara não dormiu. Cada vez que fechava os olhos, via aquele sorriso. Sentia a presença do reflexo em todos os cantos do quarto, como se ele a observasse, esperando. Na manhã seguinte, com os primeiros raios de sol entrando pela janela, ela se aproximou do espelho mais uma vez. Desta vez, o rosto refletido era o seu, mas os olhos ainda eram estranhos.

Determinada a descobrir o que estava acontecendo, começou a investigar sua própria vida. Perguntou a familiares e amigos sobre memórias compartilhadas, mas as respostas foram inconsistentes. Pessoas lembravam de eventos que ela não tinha vivido e esqueciam momentos que ela considerava importantes. Desesperada, procurou ajuda profissional. Mas cada sessão com o Psicólogo apenas reforçava sua sensação de irrealidade. Era como se suas memórias estivessem desmoronando, pedaço por pedaço.

Um dia, enquanto revirava antigos álbuns de fotografias, Clara percebeu algo assustador. Em todas as fotos, ela estava ligeiramente desfocada, como se nunca estivesse realmente presente. Ela então encontrou um diário antigo, de quando era criança. Ao folhear as páginas, deparou-se com uma anotação estranha: "Hoje eu vi Clara pela primeira vez. Ela me assusta."

Aquela anotação não fazia sentido. Clara era Clara, como poderia alguém tê-la visto pela primeira vez? Continuou lendo e descobriu algo ainda mais perturbador. O diário pertencia a sua mãe, que descrevia alucinações de uma menina que aparecia em seus espelhos, uma menina chamada Clara. A medida que lia, Clara percebeu que nunca houvera uma gravidez, nunca houvera um nascimento. Ela era uma criação da mente de sua mãe, uma alucinação que se tornara consciente.

Ao terminar de ler, a verdade a atingiu com força avassaladora. Ela não existia. Nunca existira. Era apenas uma voz, uma presença na mente de outra pessoa. Os espelhos não mentiam; ela era o reflexo, a sombra.

Ao confrontar sua mãe, já idosa e debilitada, Clara viu o olhar de terror naqueles olhos que tanto a amaram. "Você não devia estar aqui", disse a mãe, a voz tremendo. "Você não é real."

Com lágrimas escorrendo pelo rosto, Clara correu para o espelho mais próximo. Olhou fundo nos olhos daquela que nunca fora. E, pela primeira vez, viu a verdade. O reflexo começou a se dissipar, como uma neblina ao amanhecer. Sentiu-se desaparecer, pedaço por pedaço, até que restou apenas a escuridão.

No final, Clara compreendeu a amarga ironia de sua existência. Ela era a prova da fragilidade da mente humana, uma entidade nascida do desejo, do desespero e da solidão. E enquanto desaparecia, encontrou uma estranha paz, sabendo que, finalmente, tudo fazia sentido. Ela não era real. Nunca fora. E agora, não era mais nada.

FIM

Betaldi
Enviado por Betaldi em 24/06/2024
Código do texto: T8092891
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