NOITES PERVERSAS

CAPÍTULO I - DONA NAZARÉ

Quem pode dizer que já presenciou ou sequer ouvir falar de algo tão perturbador, que nem a alma humana, na sua crueza perversa mais aflorada, poderia engendrar?

Pois eu sim, eu já. Sou Félix e tinha17 anos quando essas memórias foram vividas. Filho de Dona Hercília e Seu Osvaldo. Meus pais são trabalhadores honestos. Minha mãe costureira e meu pai motorista de ônibus. E não os menciono, se não para apelar à um passado humilde, implorando alguma compreenção de vocês antes de saberem o que virão a saber.

Foi em 2009, ali entre março e abril, que conheci a Nazaré. Cruzei com ela na saída da escola, quando parei para comprar a pipoca que o Seu Olegário vende na esquina. Deu uma última tragada no cigarro, antes de jogá-lo ao chão e pisoteá-lo com seus sapatos caros e me encarou de um jeito que fez meus joelhos titubiarem. Deixei cair a pipoca e ignorei os apelos do pipoqueiro, tão gente fina, que vinha perguntando se eu não queria outra. Eu só queria me esconder. Deles. Os incheridos. Quem quer que fosse na verdade. Mas principalmente dela. Daqueles olhos noscivos que caíram sobre mim como uma bomba avaçaladora. Depois, em casa, pensando nisso, foi que dei-me conta de que ela ria de mim, ao me estabanar correndo e tropeçando nas pessoas, até sair à rua.

Essa senhora elegante e rica. Mãe da Vera, uma menina bem sem sal aliás, era alvo de minha curiosidade há algum tempo e quando finalmente percebi que ela me notara, meu desespero foi total. Primeiro porque não esperava essa atitude, claro. Depois, enquanto corria, me veio essa dúvida, se ela não suspeitava das minhas intenções. Mas que intenções na verdade? Só fantasias idiotas de um meninote.

Nos dias que se seguiram eu a evitei. Semanas, meses. Não. Minto. Foi um mês. Sem encará-la de frente. Desviando os caminhos pelos quais sabia que ela passaria. Até que o inevitável aconteceu. E não só inevitável, como o aterrador. O início do mais tórrido e estranho caso de amor até então. E nessa tenra idade, onde suspira-se por qualquer menininha queixosa, tudo é um dramalhão só. Senhores. Eu estava lá, parado, enquanto a elegante e bela Dona Nazaré debruçava-se sobre um corpo humano inerte, desfalecido e degustava o pedaço, que para ela era tão apetitoso, de um braço arracado na altura do cotovelo e o chão de pedras lisas era lavado com aquele sangue todo.

CAPÍTULO II - O CANTO DA SEREIA

E foi um estrondoso grito, que acordou os meus pais, o catalizador de todas as sensações angustiantes causadas por aquele pesadelo macabro. Relembrando agora, mais calma e friamente, eu posso até afirmar que senti a minha alma ser arrancada do meu corpo enquanto via a Dona Nazaré naquela posição, como um animal, salivando baba misturada com sangue, em tons rosados e esbranquiçados. E o braço dilacerado que ela mordia ferozmente, arrancando nacos cada vez maiores.

A noite, amigos, de fato aconteceu. Não, claro, dessa forma grotesca. Foi um pouco menos que isso. Bem, quem sabe eu esteja ansioso para contar logo. Não nos apressemos. Foi assim.

Passava das 19h e eu esperava os meus pais, sentado na calçada em frente à igreja. Acontecia uma quermesse e eles queriam jogar bingo. Eu perguntei se poderia ir pra casa do Gido, meu melhor amigo, para jogar video-game. Meus pais concordaram e eu estava impaciente aguardando eles chegarem. E num momento de contemplação, eu acho. Não me vem uma palavra mais apropriada agora. Num momento desses, propiciado pelo surgimento de um coelho cinza, entrei em transe. Foi inexplicável e só consegui concatenar a lógica daquilo, se é que havia, muitas horas depois. No dia seguinte.

As coisas, depois que segui o coelho, se esvaneceram, desintegrando-se como uma frágil película fina de cinzas que se esfacelam numa suave brisa. No decorrer do meu dia, conforme alguns eventos transcorriam, eu tive visões relacionadas que se completavam, até que todas as peças se encaixassem. A primeira delas aconteceu no refeitório,quando vi a Ana, do 1° ano, comendo uma banana, sentada com os outros polulares como ela, é claro. Ao perceber a minha indiscrição, ela atirou a casca da banana na minha direção e desferiu:

— Ei, seu louco. Perdeu alguma coisa aqui? O teu lugar é lá, ó? — disse apontado para a mesa em que almoçavam os meus amigos.

— Se enxerga, seu mané. Vai, some! — complementou o Isac, namoradinho da Ana.

Segui na direção dos meus amigos. Mas ao me dar conta do inquérito ao qual eu seria sujeitado, desisti. E desviei o caminho para a quadra vasia, sendo obaervado pelo olhar desconfiado de Gido.

Sentei com a minha bandeija num degrau da arquibancada e comi. Não estava com fome, mas de alguma forma estravasei na comida, devorando aquela gororóba. Um purê todo molenga com um molho ralo de tomate. Um bife duro e batatas fritas saturadas em óleo. A Ana e a cena que ela protagonizou. Não era ela. Nunca tive interesse por aquela metida. Era a correlação disso, com o que eu ainda não sabia. O coelho cinza. Quando entramos na floresta, o bicho começou a cavucar o chão e arrancou uma cenoura, com muita destreza e passou a devorá-la com avidez. Dessa forma, a banana remeteu-me inconscientemente à cenoura.

Em seguida, quando bateu o sinal, fomos para a piscina olímpica. E as nadadoras que treinavam deram-se um novo acesso direto àquelas memórias perdidas da noite passada.

Dona Nazaré, emergindo da água, nua, com impáfia, provocante e altiva. Chamava-me, esticando os braços e acenando. Eu, mesmo sem saber nadar, atirei-me no lago. Quando voltei à razão, me afogava e lutava em vão para resistir. Senti um puxão forte e penso que ela me salvou e foi tudo. Lembrei de tudo, pelo menos eu acho, daquele noite estranha, mas essa sim, real. Mesmo que essa realidade pareça tão fantasiosa quanto o mais distante dos sonhos, foi isso de fato o que aconteceu aquela noite. Amigos.

CAPÍTULO III - UMA PROPOSTA ESTRANHA

Com esse fato novo sobre a minha paixonite adolescente, digamos assim, as coisas, que já andavam estranhas, só pioraram. Digo, quanto a evitá-la ao máximo e desviar, sempre que a via se aproximar. Porém, meus amigos, de uma hora para outra, a granfina da zona sul que nunca se aproximou de nenhum de nós na vida, resolveu ficar de conversinha por aí com Dona Hercília, minha mãe. Foi o que eu soube dela mesmo quando chegou em casa das compras naquele dia.

— Encontrei a mãe da Verinha hoje. Aquela sua amiga da escola?

— A Verinha, amiga minha? Nem nos falamos. Só estudamos na mesma escola, mãe. Qual é?

— Que seja, menino. Deixa de ser besta. Elas são pessoas muito boas. Ela me disse que a filha está com dificuldade na escola. Matemática. Eu disse que você era ótimo nessa matéria. Aí ficamos de conversar sobre vocês estudarem juntos aqui em casa. Uma vez na semana, talvez duas. O que você acha?

— Ah, tá, mãe. Meu Deus. Você e o pai têm o que na cabeça? São mesmo muito ingênuos, sabia? O que essa mulher anda fazendo por aqui? Compras em mercadinhos dessas bandas? Eles são ricos. Não circulam por aqui. Você não desconfiou disso?

— Olha, menino. Eu vou dizer uma coisa pra você, — retrucou a mãe, retirando o último ítem das sacolas de compras que faltava guardar, uma bandeija de ovos, a colocando sobre a mesa e me encarando nos olhos, — tem que parar com essa mania ridícula de julgar as pessoas. Eu não criei filho pra ser mal educado, nem arredio com as pessoas. Pensa que está num filme? As coisas não são assim, não. Aqui é cidade pequena. Todo mundo se conhece. Se protege. Sabemos, só de olhar, se alguém é de boa índole ou não. Você me entendeu? Eu não quero esse tipo de comportamento.

— Tá bem, mãe. Eu vou subir agora. Tenho tarefa pra fazer.

Fiquei trancado no quarto remoendo tudo aquilo. Essa aproximação notoriamente forçada e como a mãe era tão tola de nem se questionar que alguém como a Nazaré, que sempre torceu o nariz pra ela, agora agia assim, do nada. Bom, se a intenção fosse mesmo a aproximação com a filha, seria uma perda de tempo. Nunca fui com a fuça dela. Era uma esnobe que não se misturava, nunca nem sequer olhou pra mim, quem dirá falar. Lembro que uma vez eu estava no meu armário, com o pé apoiado, tomando um suco, perto da lixeira e ela veio e ficou parada na minha frente com uma latinha de coca. Fez uma cara de nojenta e jogou a latinha em mim, dizendo:

— Recolhe pra mim, ralé! E saiu rindo com as amigas. Riam e debochavam de mim, fazendo piadinhas infames e preconceituosas.

Se eu tivesse que ficar no mesmo cômodo que essazinha, seria pra encher a cara dela de bolacha, isso sim. Mas até que não seria mal e eu descobriria enfim o verdadeiro motivo dela, da mãe, a Nazaré, que com certeza não era a preocupação com a filha noa estudos, que até onde eu sabia, era muito boa aluna, em todas as matérias.

Quando a mãe chamou para jantar, eu concordei em estudar com a Verinha e Seu Osvaldo começou a me provocar com as piadinhas de sempre.

— Aí, filhão. É pra estudar. Heim? Não vá tentar tirar umas casquinhas. Esse daí é danado igual o pai na idade dele.

— Ah, vai. Para com isso, Osvaldo. E isso lá é exemplo de um pai para um filho? Seja homem. Não se comporte como um moleque na frente do nosso filho. Ele vai estudar aqui, na sala. Sem ousadias. Ele que nem tente.

Nossa. Eu via aqueles dois palhaços. Sinceramente. Falando aquelas asneiras. Não tava acreditando naquela cena. Eu tive um ataque tão estérico de riso que quase me mijei. Eles ficaram me encarando, meio bravos e meio incrédulos. Até que eu me acalmei e disse.

— Vocês podem ficar despreocupados. Que se tem alguém que eu não me interessaria, nem se fosse a última menina viva na terra, é a Verinha. Podem crer.

Eu havia terminado de comer. Levantei e fui escovar os dentes pra dormir. Quando ouvi a mãe soltar mais essa:

— Ué. Mas o que a menina tem de errado? É inteligente, bonitinha. Só está tendo uma dificuldade momentânea numa matéria. Qualquer garotinho se interessaria.

— Deixa ele, mulher. Adolescentes são assim mesmo. Completou o meu pai. Com a mesma frase clássica com que as conversas ao meu respeito naquela casa, eram encerradas.

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