João

 

 

A última lembrança que tenho de minha vida foi mais ou menos do ano de 1989, eu deveria ter uns 7 ou 8 anos. Aaah! Que lembrança gostosa. Devo retratar esse comentário, minha última lembrança feliz foi desse ano, com essa idade.

Eu e meus irmãos vivíamos numa cidade do interior, pacata, crianças brincando nas vielas, jogando bola, catando bugigangas pelos terrenos vazios, subindo em árvores para comer seus frutos ou por diversão mesmo.

Lembro-me de dias de chuva, corríamos por ruas lamacentas, nossos risos e travessuras infantis, olhares de alegria pairavam no ar. Os pés descalços, pisando na lama, espalhavam respingos por todos os lados. Nossos cabelos e rostos lambuzados de respingos de lodo, suor e alegria. A cada corrida os pés escorregavam no lodo, criando uma sensação de liberdade (até chegar em casa e mamãe nos ver). Lembro de mamãe de braços cruzados na porta de casa, batendo o pé em forma de reprovação. Ali nós sabíamos, tínhamos certeza de que o chinelo voador dela acertaria o alvo. Podíamos correr, fazer curva, que sua sandália com uma espécie de imã nos alcançaria.

Tudo isso ficou num passado, ficou num limbo. Eu corro nos dias de chuva, porém a água não me molha, eu me jogo na lama e ela passa por mim como se eu não existisse mais. Talvez não exista, talvez seja apenas uma lembrança de um menino pobre, que perdeu a esperança de se livrar das amarras do destino.

Todos os dias de chuva eu corro para a mesma rua, bato na porta de casa para chamar meus irmãos, mas eles não me ouvem, posso gritar, chorar, suplicar e eles não me conhecem mais. A vida seguiu seu destino, eu parei no tempo à espera de uma libertação. Por culpa de uma ingenuidade. Acreditei na bondade de um homem, e por isso estou aqui preso na espera de que alguém venha me libertar.

Vou contar o que me aconteceu naquele dia. Não estava chovendo, estava fazendo um dia de sol, o céu estava azul e sem nuvens. Ele, lembro perfeitamente dele; aos olhos da comunidade ele era a gentileza em pessoa, sempre educado e cordial. Sua face era uma máscara perfeita de simpatia. Olhos castanhos, de expressão doce, passavam a sensação de bondade, junto com um sorriso amigo. Por trás dessa encantadora personagem inventada por ele, vivia um ser diabólico, coração frio e maquiavélico. Manipulando pessoas com habilidade, usando de sua aparência de bom moço para ganhar a confiança da vizinhança. E poder conquistar suas vítimas com tranquilidade. Embora suas vítimas fossem crianças, ele conseguia articular suas ações para que os parentes delas nunca suspeitassem de que era ele quem estava por trás dos crimes que aconteciam ao seu entorno. Sem deixar suspeitas ou rastros de suas maldades praticadas por onde quer que passasse.

Ele sabia exatamente como usar palavras de conforto, ninguém poderia imaginar que essas palavras eram vedadas de sarcasmo, veneno doce e articulado.

Nos momentos em que deixava sua máscara cair, seu olhar se transformava em gélido. Tive um vislumbre desse olhar antes de minha alma deixar o corpo. Nesse breve momento pude constatar a frieza violenta e a crueldade em seus olhos. Que de um castanho amendoado se transformou em escuro como uma noite sem lua. Aquela imagem de bom moço caiu por terra. Fiquei me perguntando por algum tempo: Será que alguém conseguiu perceber que, por baixo daquela fachada, habitava um ser tão repugnante? Será que alguém notou que, atrás de suas palavras doces e encantadoras, se encontrava um ser desprezível, mestre em manipulação?

Eu estava voltando da escola, ele estava à espreita, à minha espera. Nos observava de longe, vínhamos brincando pelo caminho. E no parque perto da escola, cada um pegou seu caminho de volta para suas casas. Seu rosto calmo como sempre não levantou suspeita, simplesmente por ser amigo da família. Perguntou como foi meu dia na escola, disse que gostaria de voltar a estudar, mas tinha vergonha. Tirou do bolso um punhado de bala envolto em um pano, perguntou se queria uma. Claro que uma criança de 8 anos queria uma bala. Aproximou-se lentamente e com um movimento rápido colocou o pano na minha boca e nariz. Não sei explicar que produto havia no pano, só lembro que o cheiro era repugnante. Meus olhos se arregalaram de surpresa e pavor. Levantei meus olhos para o céu azul e pensei: “pena que não está chovendo”.

Uma sensação de tontura, fraqueza, pavor, tomou conta de meu ser. Minha visão escureceu e não sentia mais minhas pernas e braços. O mundo ao meu redor começou a girar, tentei lutar contra a vontade de dormir, porém incapaz, meu corpo desfaleceu numa escuridão. Como se estivesse caindo num poço sem fim.

Não tenho noção de quanto tempo fiquei desacordado, só lembro de que a primeira coisa que vi foi ele.

Ele estava ali me observando; abri os olhos lentamente, me sentindo desorientado, com a cabeça pesada. Minha visão estava embaçada, nada tinha forma definida ao meu redor. Estava numa cama dura, sentindo frio, e meu corpo tremia sem parar. Aos poucos fui me ambientando com o lugar, uma luz fraca que iluminava o quarto, ela parecia tremer, o ar estava pesado, o cheiro de algum animal morto fez com eu começasse a tossir sem parar. E ele ali, sem falar ou esboçar qualquer gesto. Mesmo que sua feição estivesse meio oculta, eu podia sentir seu olhar frio e cruel. Ele deu dois passos em minha direção e com uma voz metálica, um sorriso distorcido e uma falsa simpatia, não conseguindo esconder ou não querendo esconder a malícia, dirigiu-se a mim.

— Finalmente acordado! — Tentei me mover, mas foi inútil. Senti um pânico subir, meu coração parecia que saltava do peito.

Lentamente a realidade de minha situação começou a se formar em minha mente. O lugar macabro, ele me olhando com aquele olhar malicioso. Lágrimas se formaram em meus olhos, tentei segurar o choro, porém em vão. Meu sequestrador ficou de joelhos ao lado da cama, agora pude visualizar com perfeição sua face. Passou a mão nos meus cabelos suados e numa falsa tentativa de me acalmar.

— Não precisa ter medo. — suas palavras saíram assustadoras e claramente perversas. — Estou aqui por ti, para cuidar de “tu”, meu amiguinho.

Cada palavra pronunciada por ele fazia meu coração pular com mais intensidade. Senti tanto pavor que meu corpo paralisou, fechei os olhos tentando bloquear a presença dele, na minha cabeça infantil, se apertasse os olhos com bastante força, ele desapareceria. Deixaria de existir. E ele claramente se deleitava com meu pavor, seu prazer em me ver naquela situação era perturbador.

Continuei com os olhos fechados, porém o terror era crescente, comecei a rezar em silêncio, na esperança de alguém me encontrar ou acordar, poderia ser um pesadelo.

 

Há anos procuro o caminho para casa, a cidade se transformou. A paisagem ao meu redor não é mais a mesma. Altamira era dominada pela floresta tropical densa e exuberante, o rio Xingu margeando a cidade. As margens do rio eram um ponto de encontro para os moradores. Barcos de pesca e pequenas embarcações eram comuns, pescadores e moradores convivendo em harmonia no lugar. Altamira de 1989 era um lugar de contrastes, tradição e modernidade, a vida cotidiana era marcada pela beleza natural e os desafios que em breve enfrentaria com os impactos do futuro.

Hoje a cidade enfrenta uma combinação de problemas relacionados ao crescimento e desenvolvimento. As ruas já não possuem mais o cheiro de terra molhada quando chove. O único cheiro que consigo sentir é aquele fétido do monstro que roubou minha infância, que me impede de voltar para casa. De correr do chinelo de mamãe, de sujar os cabelos de lodo. De correr na rua descalço, de comer tucumã, subir nos pés de manga para fugir de mamãe.

Meu espírito caminha através de paisagens desconhecidas, movido por saudades e um desejo de voltar para casa. Transito por lugares onde memórias de outrora, vivas no meu coração, teimam em voltar à tona de tempos em tempos. Sempre que volto ao meu antigo lar sinto uma onda de solidão e desespero, segredos adormecidos. Saudade de momentos não vividos, amores que não tive, um lar que não existe mais. Paisagens que não conheço mais, que foram tão presentes e que hoje são apenas lembranças desbotadas pelo tempo. Meu espírito flutua por portas, paredes, lugares vazios e frios. A casa sem mamãe, sem vida, sem barulho, apenas objetos sem vida para contar uma história que foi e que nunca mais voltará.

Hoje apenas um desejo me move: encontrar a paz, retornar para o lugar de onde nunca deveria ter saído, meu lar. Quero poder sair desse looping entre passado e presente, me libertar da solidão. Quero ser criança novamente.

Minha alma tanto implorou por ajuda, que um anjo em forma de pessoa me libertou das amarras desse sofrimento.

Esse anjo, um perito policial intuito por alguma força oculta (um aparelho chamado GPS), conseguiu me encontrar. Lembro de ouvi-lo dizer: “estamos montando esse quebra-cabeças”.

Infelizmente não havia mais ninguém reclamando por meu corpo. Meus irmãos já partiram para algum lugar desse mundo de meu Deus. Ninguém soube que meu nome de batismo foi João, que tinha 8 anos, quando o assassino me levou. Que meu sonho era ser mecânico de carros. Que quando crescesse queria casar com Sandra, a menina que morava em frente à nossa casa e que usava tranças com laços coloridos. Que daqui de meu sofrimento pude ver se tornar uma moça linda e gentil.

Porém, ganhei um lugar de descanso, pude sentir uma leveza que envolveu meu espírito, desconectando da matéria que me prendia a esse mundo.

E finalmente posso ter a chance de voltar a ser criança novamente.

 

 

 

Conto escrito para antologia Fragmentos Históricos, disponível na Amazon. 

Juliana Duarte Honorato
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 12/06/2024
Reeditado em 06/09/2024
Código do texto: T8084008
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