O monstro do final da história - CLTS 27
O padeiro todo dia dava leite para uma ninhada de gatinhos que tinham deixado na porta da padaria. Os bichinhos ficavam em uma caixa de papelão na frente do estabelecimento, e os moradores próximos sempre davam leite e ração, era como se todos sentissem como se fossem donos deles um pouco. Porém naquela noite encontrou a caixa vazia, ficou no primeiro momento preocupado, depois pensou que algum vizinho deveria ter levado os gatinhos para casa. Em nenhum momento pensou que algo poderia ter ocorrido, principalmente naquela cidade tão quieta em que todo mundo era amigável.
Não muito longe dali, um garoto carregava dentro de um saco de pano os gatinhos que ainda miavam, um miado fraco. Ele foi propositalmente por uma rua deserta que não tinha muitas pessoas naquele horário, mas mesmo assim vez por outra o menino olhava para trás, como se temesse está sendo seguido, mas mesmo que ele olhasse para trás milhares de vezes não conseguiria me ver.
Depois do garoto andar um pouco, chegou em uma praça que ficava sem ninguém naquela hora, ele tirou o saco com os gatinhos e colocou em cima de um dos bancos de cimento vazio. Passou a procurar algo em sua mochila e depois de um tempo retirou o que parecia ser um martelo.
Ele olhou para o martelo e depois olhou para o saco de pano com os gatinhos, foi quando sem fazer cerimônia o garoto começou a bater com o martelo em cima do saco de pano, não demorou muito para sangue começar a manchar o que antes era branco e os miados pararem para sempre, porém mesmo assim ele continuou martelando o que tinha sobrado dos animais, enquanto martelava se ouvia um barulho baixo como de graveto se quebrando. Foi quando de repente um grito vindo não se sabe de onde o assustou. Olhou ao redor e viu que um ciclista que passava o encarava totalmente assustado, na garupa da bicicleta uma menina gritava enquanto encarava a cena sangrenta na frente dela.
O garoto se virou ainda segurando o martelo, sem reação, pois não esperava por aquilo, pensava que aquele lugar era isolado o suficiente, mas aparentemente sempre tinha alguém por perto. Ele recuou lentamente alguns passos antes de se colocar a correr em direção a floresta ainda segurando o objeto. Deixando para trás o saco ensanguentado que era prova do seu crime contra os gatinhos.
Não demorou muito para os gritos da menina atraírem outra pessoa que passava e demorou ainda menos para a história se espalhar pela cidade. Todos ficaram horrorizados com o ocorrido, os moradores não falavam de outra coisa e como ocorre com toda história logo começaram a aumentar o ocorrido, o que já tinha sido brutal se tornou ainda mais assustador.
Para piorar a situação a polícia da cidade fez buscas pela floresta, porém não conseguiu encontrar o menino. Os moradores estavam com medo do garoto sair do meio das árvores e a qualquer momento atacar alguém com o martelo ensanguentado que ele segurava, por isso evitavam andar sozinhos por áreas com árvores. Quando se passaram horas e o menino não foi encontrado, foi quase como se ele virasse uma nova lenda urbana da cidade.
Uma sensação de insegurança tomava conta das pessoas, principalmente porque a foto de como os gatinhos tinham ficado tinha se espalhado pela cidade. Os moradores comentavam que uma pessoa que tinha martelado bichos até que eles virassem uma massa sem forma de sangue e ossos, era capaz de qualquer coisa e que poderia fazer a mesma coisa com seres humanos.
A história já era sangrenta suficiente, mas o povo cada vez que contava o caso passou a acrescentar ainda mais sangue e vítimas imaginárias. Não demorou para na segunda noite, alguns moradores passarem a alimentar o medo do garoto invadir as casas durante a noite para bater nos moradores adormecidos. Alguns chegaram a colocar grades, algo raro na cidade.
Nesse clima de medo, que era aumentado pelas histórias que aumentavam o ocorrido, um grupo de moradores resolveu que iriam atrás do menino eles mesmos. Armados com espingardas entraram na floresta, eram homens que eram caçadores da região e um deles já tinha protegido a cidade de um ataque de onça. Resolvi os seguir para ver onde aquilo ia dá. Enquanto andavam um deles se gabava de conhecer a floresta melhor que ninguém e outro comentava que sentia que mais alguém tinha entrado com eles na floresta.
Vi o garoto muito antes deles. Ele estava escondido na parte alta da floresta,perto de uma nascente de água. O menino ficou visivelmente nervoso ao ver aquele grupo de pessoas o procurando, com um dos homens até mesmo falando de forma provocativa enquanto andava pela floresta:
-Apareça, garoto. Vamos ver se o seu martelo se garante contra a minha espingarda.
Depois daquela frase o garoto saiu em disparada para fora do esconderijo. Pegou o caminho que dava para o lago e não para a cidade, como pensei que ele faria. Por um momento pensei que a presença hostil daqueles homens tinha feito surgir nele uma súbita vontade de se entregar para a polícia, pois pela lógica a delegacia era o lugar mais seguro para ele. Somente quando o garoto começou a correr notei que ele ainda segurava o martelo.
O lago para onde ele foi era muito conhecido na cidade. Tinham muitas histórias sobre o lugar, narrativas envolvendo um certo portal que diziam ficar no fundo do lago ou aliens, mas principalmente envolvendo um ser misterioso que diziam ter morado no fundo daquelas águas. Já tinha ouvido na boca do povo várias versões e histórias sobre o ser do lago, alguns detalhes mudavam conforme quem contava, porém os pontos principais das narrativas eram mais ou menos os mesmos. A narrativa contava basicamente que um ser misterioso morava no fundo do lago, alguns diziam que o ser era proveniente de um disco voador que caiu e afundou nas águas e outros diziam que tinha vindo de um mundo paralelo, alguns ainda diziam que talvez o tal ser sempre morou nas profundezas das águas desde antes da cidade ser fundada.
Apesar das divergências, todas as histórias concordavam que certo dia o ser misterioso saiu das profundezas do lago e andou pela cidade, interagiu com alguns moradores e gostou tanto da experiência que resolveu ficar na cidade de forma disfarçada, como um humano normal, entre os moradores. E as histórias sempre encerravam dizendo que o portal seguia abandonado no fundo do lago e que a criatura que morava lá podia ser qualquer ser humano. Logo que cheguei na cidade olhava para os moradores tentando imaginar qual deles seria a criatura misteriosa. Se o tal ser realmente existia, ele conseguiu se esconder até de mim, o que seria muito difícil.
Essa história fazia praticamente parte da cultura da cidade, tanto que tinha até mesmo algumas brincadeiras de rua inspiradas nessa lenda, em que uma das crianças corria atrás das outras gritando ser a criatura do lago e quem ela pegasse passava a correr atrás dos outros, era uma variação do pega-pega. A verdade era que histórias sobre portas escondidas para outros mundos e visitas de supostos alienígenas era algo quase cultural na cidade, alguns até usavam isso para atrair a atenção de turistas, tanto que pelas ruas era possível notar algumas estátuas e pinturas que faziam menção a extraterrestres, uma delas mostrava um alienígena comendo um dos pratos tradicionais do principal restaurante da cidade.
Os turistas que ouviam as histórias ficavam curiosos para conhecer o lago.Muitas crianças da cidade também gostavam de mergulhar no local procurando o tal portal ou brincando que uma delas era a criatura do lago. Geralmente o local estava cheio dos alunos que saiam da escola meio próxima e naquele dia em que o garoto correu com o martelo não foi diferente, tinha algumas crianças brincando nas águas do lago e alguns conversando na margem.
Os mais velhos da cidade nutriam um medo crescente do menino com o martelo, porém isso não era notado entre os mais jovens, que encaravam as falas dos mais velhos como exageradas e continuavam a rotina normal, mesmo com os prováveis alertas dos adultos. Na verdade, pelo horário, o grupo que estava no lago devia ter saído bem mais cedo da escola ou fugido das últimas aulas. No meio das brincadeiras eles demoraram para ver o garoto segurando o martelo, um menino que estava um pouco mais longe foi o primeiro a notar e gritou chamando a atenção dos outros. Fez menção de gritar uma segunda vez, porém o martelo o acertou antes que tivesse tempo.
Se o garoto com o martelo fez isso para passar despercebido, não funcionou, pois a atitude dele fez o pânico se instalar totalmente. Os alunos fizeram coro ao grito do colega e por um momento foi como se o tempo parecesse parar, apenas por um momento, pois logo o menino começou a correr atrás dos que estavam mais próximos dele, acertando alguns com o martelo. Os ataques pareciam aleatórios e descoordenados, pois a mão do garoto parecia tremer. Os dias na floresta talvez tivessem cobrado um preço.
Alguns alunos fugiram ou entraram no lago, os que tentaram lutar contra ele acabaram atingidos também, pois o garoto devia ter uns quinze anos e os alunos entre dez e doze,por isso ele tinha vantagem de força e tamanho. Além do fato do desespero tornar o ataque das pessoas contra ele menos eficaz.
O barulho de um tiro interrompeu o ataque sangrento. O garoto somente largou o martelo no momento em quando caiu no chão sangrando. Porém quando os caçadores chegaram o estrago já estava feito. Um cenário sangrento se mostrou diante dos olhos deles, haviam crianças ensanguentadas pelo chão, na margem. Outras assustadas no lago ainda gritando. Uma criança que tinha tido a perna quebrada com o martelo se arrastava na direção dos caçadores como se pedisse ajuda ou conforto. Naquele momento os homens perceberam que tinham chegado tarde demais para impedir o ataque.
Nenhuma criança morreu, apesar de duas em estado mais grave terem sido transferidas para outra cidade. Os ataques aleatórios quebraram ossos, mas não feriram nenhuma criança de forma realmente mortal, porém mesmo sem mortes a cidade ficou muito abalada, nunca tinha ocorrido algo assim. Quem também não morreu foi o garoto do martelo. O tiro tinha o deixado desmaiado e os caçadores na correria para socorrer as crianças não foram conferir se ele tinha realmente morrido.Provavelmente eles achavam que o tiro tinha sido fatal, pois com a raiva que estavam se suspeitasse que o menino tinha sobrevivido era perigoso eles terem dado outros muito tiros.
Ficou um clima de tensão e tristeza na cidade, muitos moradores foram para a frente do hospital onde as crianças estavam internadas para apoiar os pais e familiares das vítimas. A imprensa de todo o Estado tinha vindo para a cidade cobrir o caso, assim da noite para o dia a rotina daquela cidade tinha sido alterada. Passei rapidamente pelo local, pois meu foco estava no garoto do martelo. Devido ao tiro e a raiva da população ele tinha sido transferido para um hospital da capital, onde seria interrogado assim que acordasse. Entrei na ambulância em que ele foi transportado, pois queria acompanhar a confissão, entender o que se passava pela mente dele. Quando a ambulância passou em frente ao hospital da cidade, muitas pessoas reagiram com indignação. Em meio aquela multidão, uma garota olhou com raiva em direção ao veículo, o olhar dela se fixou em minha direção por poucos segundos e durante esse momento foi quase como se aquele olhar furioso fosse direcionado para mim. Balancei a cabeça para afastar esse pensamento, dizendo para mim mesmo que terráqueos e até mesmo outros alienígenas não conseguem me ver a menos que eu queira.
Enquanto esperava o garoto acordar e o tão esperado depoimento, aproveitei para andar pela capital. Durante um desses passeios tive a sensação de ter visto aquela garota de olhar furioso em meio a multidão, porém quando olhei novamente ela não estava mais lá. Essa sensação apareceu de novo outra vez, no momento em que o garoto acordou e deu seu primeiro depoimento.
-Foi culpa do lago. O ser do fundo do lago que mandou. - tinha respondido o menino enquanto era avaliado pelos policiais e depois repetiu a mesma história para um psiquiatra que foi chamado.
Quem gostou dessa versão foi a imprensa que fez um sensacionalismo em cima disso, principalmente porque na cidade sempre se contava histórias sobre o tal ser do lago, jornalistas que estavam na cidade entrevistaram moradores e tentaram culpar essas histórias, e as respostas realmente surpreenderam.
-O senhor acha que todas essas histórias que contam na cidade sobre aliens e sobre um ser do lago podem ter afetado a mente do menino e o levado a acreditar que a chamada criatura do lago o mandou fazer o que fez?- uma jornalista perguntou para um dos moradores.
-É óbvio que o garoto está mentindo. Conheci a criaturinha do lago e ela nunca mandaria ele fazer algo assim. - respondeu um homem idoso surpreendendo a jornalista e me surpreendendo mais ainda.
-O senhor diz que também já viu a tal criatura?
-Muita gente já viu e conversou com ela, principalmente quem tem mais de cinquenta anos, porque faz uns anos que ela saiu do lago e morou na cidade. -disse o homem e completou - Depois ela se mudou para outra região e não vem na cidade tanto quanto antes, mas quando vem vai no restaurante principal da cidade.
Muitos outros moradores idosos apareceram para acusar o garoto de mentir e dizer que a criatura do lago nunca mandaria ele fazer algo assim, alguns até disseram que o tal ser ficou com raiva quando veio visitar a cidade e soube do ocorrido. Aquilo me deixou muito curioso, porque até aquele momento achava que o ser do lago era apenas uma história, pelo menos encarava tudo que os moradores falavam dela como lendas ou invenções, nunca pensei que eles estavam realmente falando sério. E me perguntava se a criatura existia o que garantia que ela não havia mandado o menino fazer o que fez? Com essa pergunta maquilando na mente resolvi voltar para onde o garoto estava internado, pois algo me dizia que a criatura podia aparecer por lá, porque segundo um dos moradores ela provavelmente ficaria com raiva quando soubesse que ele estava a acusando.
Nas primeiras noites não ocorreu nada, mas na quarta o que esperava ocorreu. Já era madrugada quando notei que havia mais alguém dentro do quarto, estava vestida como uma enfermeira, mas não ouvi os passos dela. Quando o garoto notou a aproximação do lado da cama, tentou apertar o botão para chamar a enfermeira, com a mão que não estava algemada. Ele parecia querer gritar, mas não conseguia.
-Não incomode as outras enfermeiras, vim apenas pegar uma confissão. - falou depois de uma longa pausa- E queria saber porque você atacou com um martelo os gatinhos e as crianças?
-O ser do fundo do lago mandou.
-Temos um problema aqui, porque você diz que o ser do lago mandou você fazer isso e eu não lembro de ter lhe mandado fazer nada. - disse ela mudando de aparência, assumindo a aparência daquela garota com olhar de raiva que tinha visto perto do hospital da cidade.- Não gosto que contem mentiras sobre mim ou que fique por aí dizendo que mandei fazer algo tão terrível com indefesos.
Toda a cor sumiu do rosto do garoto naquele momento, encarou a garota como se visse um monstro na sua frente, aparentemente ele assim como eu achava que a criatura do lago era apenas uma história. Finalmente conseguiu gritar, mas ninguém veio. A garota aguardou ele se calar e perguntou novamente:
-Porque você fez o que fez? Saiba que consigo ler mentes, sei da verdade antes de você falar, mas quero ouvir da sua boca. Fale verdade, ou vou ficar com raiva e você não vai gostar.
-Aqueles gatinhos me irritavam, toda vez que eu passava para a escola eles tavam lá miando e passei a imaginar como seria se um martelo esmagasse a cabecinha deles até o miado irritante parar. -apesar do pânico foi possível notar um sorriso no rosto do garoto enquanto falava dessas coisas, como se por uns segundos ele deixasse aparecer o monstro que ele era por dentro- E aquelas criancinhas, quando elas me viram me olharam estranho, então quis quebrar os ossinhos delas.
-Amanhã você vai contar a verdade para todo mundo, caso contrário venho aqui toda noite até você contar.
O garoto concordou lentamente com a cabeça. A garota andou pelo quarto e parou me encarando de frente, novamente tive a sensação como se aquele olhar fosse direcionado para mim.
-A questão é que a confissão dele não é a única que quero ouvir. - ela disse em uma língua nativa do planeta de onde vim. Um arrepio percorreu meu corpo.
Aquilo fez eu sentir algo que nunca tinha sentido: forte medo. Não era para ela conseguir me ver, sempre me senti superior por ter a habilidade me ocultar de outros seres, gostava disso principalmente para poder observar outras espécies, mas ela tinha quebrado a barreira invisível que nos separava e me perguntava olhando dentro dos meus olhos:
-Porque você não impediu os gatinhos de serem esmagados com um martelo? Porque você não impediu as criancinhas em pânico de terem os ossos quebrados e esmagados? Li sua mente e sei que você estava o tempo todo lá, acompanhando tudo como se o sofrimento das pessoas fosse um tipo de filme.
Senti um peso cair sobre mim, nunca tinha olhado as coisas desse modo. Em minha mente vinha as lembranças de tudo que ocorreu e de como apenas observei.
-Se eu estivesse na cidade teria impedido tudo isso, amo aquelas pessoas. Eu e você viemos da mesma dimensão, temos mais ou menos as mesmas habilidades, tenho umas que você não tem, mas mesmo assim acredito que se você quisesse poderia ter impedido tudo isso, mas talvez eu esteja enganada, por isso quero que me diga: Você não os ajudou porque não queria ou porque realmente não podia? - -perguntou ela indignada aumentando o tom.
Ela claramente estava com mais raiva de mim do que do garoto do martelo. Me encarava como se o grande monstro da história fosse eu.
Na quietude que se seguiu as perguntas dela penetraram em minha mente e as minhas lembranças pareciam me acusar. Porque eu não tinha feito nada diante das cenas de sangue e ossos quebrados? Não consegui sustentar o olhar dela e abaixei a cabeça.
Permaneci em silêncio pois qualquer coisa que falasse acabaria me acusando e minhas justificativas provavelmente soariam como uma confissão de culpa, apesar que meu silêncio e minha falta de ação me acusavam igualmente.
Tema: confissão