O CONFESSIONÁRIO - CLTS 27

O CONFESSIONÁRIO - CLTS 27

Valéria Guerra Reiter

Dias de sol, dias de luz, dias nublados ou chuvosos e Olavo segue os mesmos passos diários: escova os dentes, toma um banho morno e senta à mesa para um bom café sortido. Ele observa atentamente a mulher vestida de negro, que coloca açúcar em sua xícara branca.

A camisa alva que traveste Olavo combina com sua calça escura. Os cabelos do meão estavam úmidos e mui bem cortados. Uma mecha branca o deixava com o melhor ar religioso.

Raquel havia completado 88 anos há uma semana. Mãe e filho só faltavam à missa de domingo, em casos extremos.

Durante cinquenta e cinco anos Olavo viu este cotidiano ser um rito em sua existência

E com sessenta anos recém feitos, o jovial filho único da zeladora da Igreja - a progenitora Raquel – percebeu que ambos só faltaram à missa dominical das 6 da tarde, duas vezes: quando ele nasceu, e quando seu pai faleceu há dois anos.

Olavo - Mãe, refletia eu aqui relembrando todos os dias das nossas vidas, que só foram alegres diante do altar do Senhor. Raquel levantou a cabeça, recolheu as xícaras vazias de café, virou de costas, e foi até a pia reluzente da ampla cozinha, e respondeu ao filho: - Não se esqueça que a alegria também habita o coração do diabo.

O homem sorriu de canto de boca, com um fino sorriso assustado, como se tivesse ficado perplexo com a postura refratária de sua mãe; e então replicou baixinho: - A alegria do SENHOR é a nossa força.

Raquel, girou o corpo rapidamente, e deu um soco na mesa retangular de madeira rústica, herança de família, ainda do tempo da colonização. O artefato, segundo informações do livro da família foi confeccionado nos idos de 1600, em Portugal, e chegou às terras brasileiras para ocupar a sala da família Sá.

Raquel foi a última membra do clã, a quem coube herdar a peça colonial. O soco não fez sequer cócegas no jacarandá de lei. O tradicionalismo de esta família principiava em seus móveis.

A igreja estava impecável, todos os adornos e paramentos perfeitos. O confessionário lustroso, e os fiéis ocupavam seus lugares ansiando pela palavra. O sino badalou, e a Ave Maria foi entoada. E Olavo, sentado na segunda fila fez o sinal da cruz.

Sua mãe chegou ao pequeno púlpito, lateral ao principal, e iniciou a leitura das intenções aos falecidos e também a lista de ações de graça. O olhar de Olavo se encheu de orgulho. Logo, logo o padre assumiria a homilia e enfim, o ritual se iniciaria. Raquel, parecia uma rainha, ao se calar diante da fala do sacerdote. Não encarava os membros do Templo centenário. Parecia estar em um palco teatral, ou no Olimpo.

A pregação e os ritos transcorreram fidelíssimos à tradição católica, apostólica e romana. Raquel também recolhia os valores doados no ofertório e quando se encerrava a missa, ela auxiliava o padre Rafael com os “finalmentes”: trancar portas, guardar os objetos religiosos e etc.

Naquele início de noite de junho, a chuva brindou o epílogo do dia. Raquel procurou Olavo e não o viu. A chuva ficou mais densa. E a mulher foi até a secretaria para oficiar seu trancamento e aguardar Olavo para retornar a casa

Trancou o cômodo e seguiu até o confessionário, antes de chegar à peça antiquíssima, de cedro. A senhora escutou um som atípico, que parecia um grunhido. Ao mesmo tempo que viu uma fumaça saindo de dentro do aparato religioso. Ela sentiu uma forte tonteira; e caiu se segurando em um banco próximo...

A casa antiga estava cheirando a mofo. Mas um aroma de café invadia as narinas de Raquel, ela estava recostada em uma cama rústica, e no criado mudo, ao lado do móvel de dormir: havia uma caixa de madeira, uma vela, em um candelabro, além da bíblia católica.

- Mãe, como se sente? O rosto da anciã parecia retorcido, e seus cabelos cinzas e alvos estavam desgrenhados.

O homem puxou uma banqueta e sentou próximo a dama acamada, ele afundou uma colher de sopa no fundo de uma cumbuca belíssima de porcelana repleta de mingau de aveia; levando até a boca de sua mãe àquela primeira colherada. Ela recusou o alimento questionando: - Onde você estava quando desmaiei?

O homem olhou fixamente aqueles dois olhos redondos, verdes e cansados e balbuciou: - Como já lhe disse antes mãe: bebendo água com o padre Rafael, na cozinha do subsolo

Ela retrucou: - E quem grunhiu e fumegou dentro do confessionário? – Não sou louca, e não estou caduca. Eu ouvi o gemido e vi a fumaça.

- Sim, mãezinha eu acredito. Por isso resolvi chamar o padre aqui hoje para jantar conosco. Quero relatar o fato com cuidado, afinal é grave. Alguém nada amistoso entrou no confessionário, naquela noite de domingo, há quinze dias. Ela retrucou quase irritada: - " não amistoso”? era um monstro, no pior sentido do termo Olavo.

Olavo - A senhora está certa, por isso convidei o padre.

Raquel – E ele virá? É tão ocupado. O homem olhou a mãe, com algum desdém, e fingindo carinho, retrucou: - claro, não esqueça que ele é exorcista.

Raquel informou ao seu único filho, que em função das náuseas que ainda sentia; tomaria apenas sopa. Ele meneou a cabeça positivamente.

Às sete horas a campanhía tocou e Olavo olhou pela janela da sala visualizando o rosto do padre Rafael, e então acorreu para abrir a porta. O padre trazia dois pacotes e um guarda-chuva encharcado. Olavo imediatamente pegou seus pertences com carinho, levando o guarda-chuva à área interna da residência, e o abriu para que secasse. E quanto aos dois pacotes; guardou em cima da cristaleira, na sala de jantar.

Rafael perguntou por Raquel; e o ex-coroinha, hoje catequista, disse (um pouco trêmulo): - está no banho, e já virá “vossa caridade”.

Padre Rafael também tinha sessenta anos; alto e forte, barba grisalha e tez morena, sorriso largo e bem humorado; era pároco da Igreja de Nossa Senhora, há vinte anos.

Além de sacerdote também era filósofo. Ministrou aulas em diversas universidades. E seus sermões eram bastante elogiados pelos frequentadores do templo encravado naquele largo da zona sul do Rio de Janeiro, desde 1838.

Olavo escutou o chamado da mãe perguntando: - O padre chegou? Então Olavo pediu licença a Rafael, puxando um lugar na cabeceira da larga mesa de mogno que fica no centro da imensa sala de jantar da casa de Raquel. O padre disse: - grato meu nobre Olavo; agora vá buscar sua mãe!

Três católicos inveterados tomavam canja quente, naquele dia frio e chuvoso. Nas cabeceiras: o padre e Raquel; já Olavo ocupou outro local lateralmente. Após o jantar, os varões levantaram, atitude de respeito à senhora Raquel, que levantou e se dirigiu à sala de estar, sentando em uma poltrona de couro marrom, em frente a um sofá também de couro. Rafael e Olavo sentaram em frente a meã.

Um silêncio avassalador perdurou por longos dois minutos, e só foi interrompido com a tosse da mulher; e em seguida pela voz trêmula de Olavo que perguntou ao padre, se ele queria chá...

Rafael respondeu que preferia café, se não fosse incômodo. Raquel disse ao filho que se apressasse, pois precisavam conversar. Após aquele momento especial, de chá e café, Raquel em tom de preocupação narrou o acontecimento horripilante que a quedou tão enferma.

O religioso ficou atônito e prometeu a Raquel e a Olavo, que trocaria o confessionário atual por outro. A carola ficou assustada com tal decisão, que julgou muito superficial. Ela lembrou que o santo Padre Pio, em certas ocasião recebeu no confessionário, o próprio diabo

Rafael, ficou desconcertado com o conhecimento daquela mulher e comentou: - a senhora tem toda razão; irei investigar o local das sagradas confissões com exímia estratégia. Além disso irei contar com a ajuda do meu estimado catequista, seu filho, a estar amanhã ao meio-dia, me auxiliando em uma sessão de exorcismo no confessionário, caso seja necessário.

Raquel achou aquilo curioso, mas se calou. O padre saiu, após resgatar seus pacotes e o guarda-chuva. Despediu-se da mãe e do filho, e seguiu seu rumo: a igreja.

Lá chegando procurou o sagrado confessionário, entrou, sentou , orou e ligou seu celular realizando um telefonema. Ainda dentro do móvel santificado, abriu os pacotes que trazia, e de lá retirou um corpete vermelho e um par de meias finas escuras; arrancou a batina e vestiu a estranha idumentária.

Passados trinta minutos a porta da igreja fora aberta e depois trancada. Alguém se aproximava. Rafael tremia e viu alguém adentrar o recinto confessor trajando sunga e portando um chicote em punho.

Várias chibatadas estalavam nas costas do padre exorcista. A noite seguiu entre sussurros e afagos.

Na manhã seguinte, Raquel levantou mais cedo e percebeu que seu filho não havia feito o café. Algo inusitado. Foi até seu quarto e escutou o barulho do chuveiro. Então disse: - Estás bem? Irás a missa das 7 h?

-Sim, mãe. Me perdoe, mas hoje perdi a hora. Raquel respondeu: - em meia hora teremos café.

Tomaram o desjejum, e depois seguiram para o destino seleto. O padre Rafael irradiava alegria durante o ritual. E o olhar de Olavo parecia saltar das órbitas ao mirá-lo na malemolência do evento missal.

A igreja estava cheia. E após a missa, exatamente às 8 h, as crianças seriam catequizados por Olavo. Tudo transcorreu bem.

Ao meio-dia em ponto, Raquel que havia ido em casa fazer o almoço, retornou à Igreja curiosa em relação ao possível exorcismo, entrou pé ante pé, desembocando próximo à entrada do centenário confessionário. Ela não escutava som, e resolveu entrar no interior e sentar no lugar que normalmente é ocupado pelo padre.

Fez o sinal da cruz e cerrou os olhos para rezar; foi quando escutou alguém sentar e dizer: - Vim me confessar. Ela empalideceu; aquela voz, aquela voz era do Alex.

Seu coração disparou. A voz insistiu: - preciso lhe contar tudo Raquel, a respeito de minha morte.

Mesmo assustada a mãe de Olavo resolveu ouvir seu esposo morto ha dois anos em uma narrativa inusitada, que trazia imagens obscenas e pecados.

A mulher chorava em silêncio, quando foi surpreendida por dois homens que abriram o local e jogaram água benta sobre ela gritando: - Saia do corpo desta mulher impostora da fé!

Ela por sua vez vociferava: - Assassinos! vocês deram arsênico ao Alex, quando ele pegou vocês em pecado neste confessionário. Como pode fazer isto Olavo?

Um cheiro de enxofre invadiu o ambiente, e uma sombra gigantesca se assenhorou do recinto. Um grunhido absurdamente alto ensurdeceu a todos, exceto Raquel.

Foi quando Rafael pegou uma imagem de Jesus Cristo no altar e atirou sobre Raquel, mas alguém invisível segurou a peça pesada no ar; fora o pai de Olavo, pois Raquel o viu.

E Olavo então gritou: - Vou te matar também sua velha louca, nosso amor é sagrado! Minha vida é o Rafael. Com um castiçal na mão o homem com nome de “origem” voou para cima da mãe e antes do golpe fatal, labaredas atiçadas foram lançadas sobre ele, o carbonizando instantâneamente.

Três meses depois, a igreja fora reaberta e os devotados comentavam sobre o incêndio acidental e triste, que ceifou a vida do catequista. A missa já iria começar e uma mulher vestida de negro dos pés à cabeça leu às intenções...era Raquel.

O padre entrou em cena para realizar a missa das 6 h do domingo. Na primeira fila havia um homem alto, de óculos, que olhou para o pároco de forma peculiar.

Ao final do culto a Deus o padre Rafael anunciou que as confissões voltariam naquele dia. Quando dona Raquel passou em frente ao confessionário viu que uma figura masculina de óculos havia entrado no local. Sentiu cheiro de enxofre, e fez o sinal da cruz, agradecendo por ter sobrevivido. Afinal o demônio salvou sua vida, e devolveu a paz ao espírito do Alex. Um dia a justiça será feita, seguirei segurando nas mãos do Senhor.

Com os olhos marejados, ela pensou alto: - “O caráter do homem é o seu demônio”

. Heráclito

CONFISSÃO

Valéria Guerra
Enviado por Valéria Guerra em 30/05/2024
Reeditado em 01/06/2024
Código do texto: T8075095
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.