DOIS LADOS - CLTS 27

Prefácio

Há momentos na vida em que as sombras parecem se alongar e as luzes, que outrora brilharam intensamente, começam a vacilar, ameaçando apagar-se. Nesses instantes de fragilidade, o corpo cede ao peso da existência, afrouxando a rigidez dos músculos e entregando-se à introspecção. É uma rendição silenciosa, uma busca desesperada por respostas que expliquem o porquê de estar ali, naquele exato segundo, envolto em um véu de incertezas e emoções arrebatadoras.

O quarto silencioso, exceto pelo som constante do monitor cardíaco, que mantinham as batidas regulares, agora começaram a espaçar, e a respiração que era suave se torna desarmoniosa, até cessar por completo. Razões...

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De ponta cabeça...

Naquela noite sombria e enevoada, Leandro caminhava pela rua deserta, voltando para sua casa. Sua mente estava tumultuada por preocupações e temores, alimentados por dias de insônia e ansiedade. O rumo incerto que sua vida tomava após a recente separação e a distância crescente entre ele e seu filho, pesavam como sombras inquietantes sobre seu horizonte.

Ao virar a esquina de uma rua estreita, sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Uma sensação de ser observado o envolveu, fazendo-o caminhar mais rápido, mas cada passo parecia ecoar como um bater de tambores em seu peito. Subitamente, um vulto emergiu das sombras, surpreendendo-o, que o fez recuar instintivamente.

Diante dele, um homem estranho e sinistro empunhava uma faca reluzente. Seus olhos eram como duas brasas ardentes em meio à escuridão. Leandro recuou ainda mais, sua mente turbilhonando em pânico, o fazia tremer. Antes que pudesse reagir, a lâmina da faca foi lançada em sua direção, cortando o ar com um assobio agudo.

Uma dor lancinante irrompeu abaixo de seu peito. Leandro cambaleou para trás, mas logo voltou e atacou seu vilão, agarrando-o com um mata-leão, utilizando-se da experiência com artes marciais, a faca caiu e o agressor foi dominado. Seu coração batia descompassado, uma torrente de sangue manchava sua camisa; entretanto, sua vontade por respostas o manteve, enquanto apertava o pescoço do agressor, questionando sobre o verdadeiro responsável pela facada, ou seja, o mandante. Tinha certeza de que não era ação aleatória. Sua força muscular fez com que o agressor perdesse os sentidos ao mesmo tempo em que balbuciava o nome de uma mulher que ele não conhecia.

– Verônica!

E, então, como se o mundo tivesse desaparecido ao seu redor, Leandro viu duas figuras etéreas surgirem das sombras, uma ao seu lado direito e outra ao seu lado esquerdo.

Uma era uma mulher vestida em um manto branco, seu rosto era suave como a lua cheia e seus olhos irradiavam uma luz tranquilizadora. A outra era uma criatura sombria, envolta em trevas, com olhos sem pupilas que pareciam absorver a luz ao redor.

Enquanto Leandro lutava para manter-se consciente, as duas entidades falavam com ele em murmúrios sussurrantes. A figura sombria sussurrava palavras de desespero e agonia, tentando arrastá-lo para as profundezas do medo. Enquanto isso, a figura luminosa oferecia palavras de conforto e esperança, envolvendo-o em uma aura de calma e serenidade.

Entre delírios de dor e confusão, Leandro lutava para distinguir a realidade das alucinações. Ele sentia a mão gelada da morte pairando sobre ele, enquanto as entidades disputavam por sua alma. Com um último esforço, ele se concentrou na luz radiante ao seu lado, afastando as sombras que o envolviam.

Então, num instante de claridade, as figuras desapareceram e ele continuou caído no chão frio da rua, a faca ainda brilhava perto de seu corpo, junto ao rastro de sangue. As últimas palavras da entidade luminosa ecoaram em sua mente, um sussurro de esperança em meio ao caos: "A luz sempre vence a escuridão".

Foi nesse exato momento que, como um relâmpago cortando a escuridão, ele viu na figura da mulher brilhante o rosto do seu pequeno e amado filho. O menino o fitava com olhos inundados de lágrimas, cada gota carregando a dor e a esperança de um reencontro. Ao lado dele, na sinistra criatura das trevas, a sombra de sua ex-esposa emergia das profundezas de suas lembranças, trazendo consigo um turbilhão de emoções. A luz e a escuridão, o passado e o presente, colidiam diante dele, desafiando-o a enfrentar seus maiores medos e desejos.

O outro lado...

Bip... bip... bip...

Leandro sentiu sua vida se esvaindo e, num piscar de olhos, percebeu que o lugar onde estava não era nem o céu nem o inferno, mas, sim, o meio do caminho. Ele via almas de todos os tipos, algumas procuravam a luz, outras a escuridão e a maioria, não tinha futuro definido. Percebia pessoas sendo levada por seres de luz e de escuridão, sorrisos e súplicas, vidas e mortes. Não sabia exatamente para qual lado preferia ir, ou também, se essa decisão partiria dele ou de seus atos anteriores.

Enquanto caminhava por aquele estranho limbo, cada passo ecoando como um sussurro entre o véu do desconhecido, notou uma alma inquieta, uma figura etérea que parecia estar em constante movimento. A alma dançava entre a luz e a sombra, flutuando graciosa e dolorosamente como se estivesse presa em um perpétuo dilema. Fascinado e intrigado pela beleza e tristeza daquela visão, ele sentiu seu coração acelerar. Aproximou-se cautelosamente, quase como se temesse quebrar a frágil harmonia da cena, e com uma voz carregada de curiosidade e compaixão, perguntou:

– Por que você se move assim, entre a luz e a escuridão?

A alma parou por um momento, fitando-o com olhos que pareciam refletir tanto a esperança quanto o desespero.

– Eu sou como muitos aqui – respondeu ela, com uma voz que ecoava suavemente. – Ainda não encontrei meu caminho. Na vida, fiz escolhas boas e más. Agora, preciso encontrar meu verdadeiro destino. Talvez precise voltar.

Leandro sentiu um arrepio. Ele se perguntava qual seria o seu destino. Olhando ao redor, viu uma ponte ao longe, que parecia ligar o limbo a um outro lugar, um portal que irradiava uma luz suave e acolhedora. Seria o “céu” que todos falam ou seria a volta para a terra?

Determinado a descobrir mais, começou a caminhar em direção à ponte. Sua alma, que há pouco era leve, por algum motivo, sentia como se seu antigo corpo ainda o rodeava, algo que gerava dor intensa, seus membros que não existiam naquele plano ardiam e sua mente foi inundada de ânimo. A palavra “voltar” retumbou no ar.

Decidiu que retornaria ao mundo dos vivos. Não como um espectro sem forma, mas como uma força a ser reconhecida, guiada pela necessidade de justiça e vingança.

Com um último olhar para o cenário ao seu redor, sentiu sua alma sendo levemente arrastada e se despediu do reino além da vida. Com cada passo de volta à sua existência anterior, ele sentia sua determinação se fortalecendo, alimentada pelo desejo de proteger aqueles que amava e punir aqueles que os ameaçavam.

Ao atravessar de volta para o mundo dos vivos, Leandro emergiu com um propósito claro. Ele sabia que a estrada à sua frente seria árdua e perigosa, mas estava disposto a enfrentar qualquer desafio para alcançar a justiça que buscava.

A volta...

Bip... bip... bip...

Abriu os olhos naquele quarto frio e claro, percebendo rapidamente estar no hospital. Levou a mão abaixo do peito sentindo o curativo cobrindo o ferimento, não sabia há quantos dias estava ali, tampouco, qual a gravidade da ferida, mas sua ideia de vingança era clara. Não tinha certeza de sua quase morte ou, de sua viagem espiritual, entretanto, usaria dessa força para voltar a ficar em pé e prosseguir com sua vida.

O tempo passou, a vida continuou, mas Leandro ainda precisava resolver o detalhe mais importante: quem o queria morto?

Já recuperado da cirurgia, decidiu confrontar sua ex-esposa. Por telefone, marcou encontro, ela, mesmo sem entender e sem gostar do que ouvia, aceitou o convite. Dois dias depois, lá estavam eles, frente a frente. Após segundos de olho no olho, a primeira pergunta saiu da boca dele:

– Como está meu filho?

– Bem! – Respondeu friamente.

– Onde ele está?

– Em casa. – Continuou sem nenhum sentimento.

– Quero vê-lo.

– Vou pensar.

– Por que mandou me matar?

Nesse momento, o semblante otimista e soberbo da mulher, desapareceu, ela rapidamente franziu a testa, bebeu um gole de água e respondeu:

– Quem disse que mandei te matar?

– Quem é Verônica?

– Eu mesma! – Disse quase gargalhando.

– Então foi você mesma, mas por que?

– Cansei de você.

– Está assumindo que é a responsável por isso? – Leandro levantou a camiseta mostrando a cicatriz que marcava sua barriga.

A mulher viu, além da cicatriz, o fio que atravessava da cintura até a parte de cima da roupa. Percebendo que estava sendo gravada, ela retira de sua bolsa uma arma e aponta para Leandro.

– Pode atirar – Disse, apontando seus dedos para a própria cabeça. – Sei pra onde vou, mas você será presa e se existe justiça, nunca mais sairá da cadeia.

A mulher, com o coração disparado e os olhos faiscando de determinação, baixou a arma por um breve momento. Ao seu redor, dezenas de olhares atentos a observavam com uma mistura de medo e fascínio, e as câmeras estrategicamente distribuídas pelo ambiente capturavam cada movimento, cada respiração. Ela sabia que aquela cena estava sendo transmitida, eternizada em gravações que não deixariam espaço para erros. A tensão no ar era palpável, a expectativa crescendo a cada segundo. A vontade de atirar aumentava dentro dela como uma chama ardente, consumindo suas dúvidas e hesitações. Ela sabia que, se decidisse apertar o gatilho, teria que ser absolutamente certeira. Dois tiros, apenas dois, mas eles precisariam encontrar seus alvos com precisão letal. Ela respirou fundo, tentando acalmar o turbilhão em sua mente, e sentiu a pressão do momento pesar sobre seus ombros.

Ele mais uma vez avista os seres, a mulher brilhante foi para sua frente como se fizesse um escudo e esticou as duas mãos em direção da ex-mulher que se reforçava com o ser sombrio, e lentamente levava sua mão até a dela, pronto para apertar o gatilho. A cena durou segundos até que um tiro foi ouvido. A gritaria e correria tomou conta do ambiente, seguido apenas pelo eco daquele estampido.

Enquanto Leandro passava as mãos pelo corpo, procurando sangue, sua ex-mulher caia em sua frente com um fio fino de sangue escorrendo pela testa. Ele olhou para o lado e viu um homem com uma arma na mão e a mulher de branco ao lado. Era a polícia.

O mundo todo girou, a visão de Leandro escureceu e ele tombou.

Bip... biiip... biiiip...

Acordou sendo levado na ambulância, os dois seres permaneciam um a cada lado. Em uníssono disseram:

– Ainda resta o seu filho! Ele precisa de você! É psicopata como a mãe! É apenas uma criança! Que vai crescer! Talvez, não!

Leandro não entendia o que eles queriam, o certo é que havia apenas um rumo, e precisava saber se seguiria o ser de luz ou a escuridão. Se viu diante de uma encruzilhada, onde a decisão que tomava poderia moldar o destino não só dele, mas também o de seu filho.

Enquanto a ambulância avançava pelas ruas da cidade, ele refletia sobre os eventos que o levaram até ali. As palavras das entidades que o acompanhavam ecoavam em sua mente, lembrando-o do que realmente importava: seu filho, sua inocência e sua necessidade de proteção.

Ao chegar ao hospital, Leandro foi rapidamente levado para a emergência, onde uma equipe de médicos e enfermeiros trabalhava freneticamente para estabilizá-lo. Enquanto isso, as entidades permaneciam ao seu lado.

Enquanto recuperava a consciência, Leandro sentiu uma mão pequena segurando a sua. Ao abrir os olhos, viu seu filho olhando para ele com um sorriso iluminado. Era um momento de conexão poderosa, um lembrete do amor que ainda existia em sua vida. Logo sumiu.

A revelação...

A entidade de luz baixou a cabeça com tristeza, enquanto a alma sombria caminhava até a porta e voltava ao lado do médico.

– Sr. Leandro?

– Sim, sou eu.

– Fizemos os exames, seu desmaio foi emocional, seu corpo mesmo ainda se recuperando da cirurgia, está em ótimas condições. Entretanto...

– O que aconteceu, doutor? Sinto que há algo errado. Disse, Leandro, com a voz embargada.

A entidade de luz encolhia-se em posição fetal no canto do quarto, enquanto o ser das trevas abria a boca cheia de dentes, numa gargalhada silenciosa.

– Pode entrar policial Antunes. – Disse o médico.

O coração de Leandro parecia em erupção, tentando sair pelos poros do peito, enquanto o ser de luz derretia-se, espalhando seu brilho pelo chão, que lentamente apagava no piso frio.

– Sr. Leandro, eu sinto muito, é sobre seu filho.

Leandro manteve-se imóvel, sem piscar e quase sem respirar. Pelas reações das entidades que o acompanhavam, ele tinha certeza do desfecho.

– Está morto, policial?

– Infelizmente sim, depois que a perícia levou o corpo da sua ex-esposa, fomos avisar a família, chegando lá, o achamos no chão e sem vida. Ela é a principal suspeita, a perícia sugere que tenha sido antes do encontro de vocês.

Bip... biiip... biiiip...

O mundo desabou ao redor de Leandro. Cada palavra parecia um golpe, um choque elétrico percorrendo seu corpo. O ar tornou-se denso, difícil de respirar, enquanto o peso da perda esmagava seu peito. Seu filho, seu único raio de luz na escuridão, agora estava perdido para sempre.

As entidades ao seu redor permaneceram cada uma com uma reação. Uma em silêncio e a outra gargalhando sobre o resultado do mal. A entidade luminosa se desfez em uma névoa brilhante, dissipando-se no ar como uma estrela cadente, deixando para trás apenas o eco de suas palavras reconfortantes. O ser das trevas percorria pulando de canto a canto do quarto, caminhando pelo teto, sorrindo maliciosamente e se contorcendo lentamente, assumindo uma forma mais sinistra que a outra. Era como se a própria escuridão estivesse se regozijando com a dor de Leandro, alimentando-se de sua angústia e desespero.

Sentiu-se perdido em um mar de desespero, suas emoções tumultuadas como uma tempestade furiosa. Ele não sabia como continuar, como encontrar forças para seguir em frente sem seu filho ao seu lado. A dor era avassaladora, consumindo-o por dentro, ameaçando engoli-lo por completo.

Deveria ter ficado no limbo, talvez assim seu filho estivesse vivo, ou até o esperado para ajudá-lo a encontrar o caminho do bem. Mas, ao insistir em retornar, tudo se perdeu. A culpa corroía seu interior, cada decisão errada ampliava o vazio em seu coração. Agora, a escuridão parecia mais acolhedora do que a luz que outrora buscava. Em seus pensamentos, questionava-se incessantemente: "E se tivesse aceitado o destino imposto pelo universo? E se tivesse aceitado o limbo como sua morada final?" As memórias de seu filho eram um farol doloroso, iluminando os caminhos que não foram trilhados e as escolhas que jamais poderiam ser desfeitas.

A entidade de luz voltou ao quarto, irradiando uma energia quase palpável, e trazia consigo o filho de Leandro. Foi nesse instante que o ser das sombras, como se alimentado pela presença do garoto, pareceu ganhar uma força descomunal e uma raiva incendiária. Num movimento frenético e desesperado, lançou seu corpo sobre Leandro, pressionando seu peito com uma força brutal. Ele, ali deitado, não expressou qualquer reação, como se estivesse resignado ao seu destino, ou talvez, como se aquele ser maligno estivesse executando exatamente o que ele desejava no mais profundo de sua alma.

A criatura maligna apertou com crescente intensidade, até que o coração de Leandro cedeu e parou. O quarto, antes vibrante com a luz da entidade, agora parecia envolto em uma quietude sepulcral. O médico, com mãos trêmulas e rosto pálido, tentou desesperadamente ressuscitá-lo, aplicando todas as técnicas conhecidas, mas já não havia mais o que fazer. A vida havia escapado, levando consigo um mistério sombrio e uma paz inquietante.

biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiip...

Em definitivo...

Leandro volta ao lugar já conhecido. Lá o ser de luz o espera com aquela alma inocente ao lado. Não há lágrimas pelo que deu errado, mas sim, sorrisos largos por tudo que dará certo daqui para frente. Não tem ideia do que será, entretanto, sente que é o melhor que poderia acontecer depois de toda a turbulência terrena. Poucos passos depois e de mãos dadas com o filho, rumaram à luz da ponte. Do outro lado o ser sombrio arrastava pelos cabelos a sua ex-esposa, que gritava sem que saísse qualquer som e se retorcia-se como se o ar fritasse o que sobrara de sua existência. Seu filho não via, era protegido, enquanto ele, sem dizer uma só palavra, contemplava orgulhoso, concordando com o fim reservado a ela.

“A luz sempre vence a escuridão e todos encontrarão o caminho que procuram... ou mereçam”

Temas: Alucinação e confissão.

Cristian Canto
Enviado por Cristian Canto em 28/05/2024
Reeditado em 28/05/2024
Código do texto: T8073204
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