IRMÃOS MORTE - CLTS 27
IRMÃOS MORTE - CTLS27
— E se a gente matasse algumas pessoas? — sugeriu Sinval, dono da única funerária da cidade, a seu irmão, Deusdete, o marceneiro que fabricava os caixões.
Os negócios iam mal, pois não se morria mais em Gouvelândia, pequena cidade do interior de Goiás. O prefeito havia comprado duas ambulâncias bem equipadas e, ao menor sinal de gravidade, os médicos encaminhavam os pacientes para Quirinópolis. Os óbitos voltavam já dentro de um caixão. Os irmãos estavam sem clientes.
Qualquer pessoa sensata repudiaria essa sugestão absurda, mas os dois compartilhavam da mesma morbidez. Desde jovem, o sonho de Sinval era abrir uma funerária, ele gostava de ver gente morta, quanto mais despedaçados estivessem os corpos, melhor. Deusdete, já na infância demonstrava falta de compaixão a tudo. Ele se divertia levando animais capturados em caixas e gaiolas a Sinval, que abria os bichinhos só para eles verem como eram por dentro.
— Matar? — perguntou Deusdete com um sorriso diabólico.
— É, uai! A gente não tá precisando de morto? Ninguém vai sair daqui pra comprar caixão no Quirinópi.
— Mas e se a gente for pra cadeia? — O sorriso de Deusdete se desfez ao franzir a testa.
— Quanto a isso, é só fazer direito que ninguém vai prender a gente.
Pelo olhar satisfeito de Deusdete ao ouvir a proposta, já ficou claro, o acordo estava feito. Precisavam definir a primeira vítima. Concordaram que não poderia ser alguém influente, pois, caso cometessem alguns deslizes, haveria uma investigação e eles poderiam ser pegos.
Cogitaram os cortadores de cana que vinham do norte para trabalhar na usina de álcool. Nem pensar! Eram fortes demais, além disso, sem famílias ali, quem negociaria o velório? Por fim, esses trabalhadores andavam sempre em bandos. Muito arriscado e de pouco retorno.
Prostitutas, talvez? Não eram fortes, mas viviam cercadas de gente. Além do que, não impulsionaria muito os lucros. A cafetina era avarenta e não tinha compaixão por aquelas moças, não teria acanho em barganhar uma urna chinfrim. Inicialmente não era viável, mas no futuro talvez fosse um público a ser “trabalhado”.
— Quem então? — perguntou Deusdete já ansioso para saber em qual pescoço passaria sua faca.
— Por que não um mendigo? Fraco, vivendo sozinho em rua escura.
— Mas não tem ninguém pra vender caixão.
— Parente, não, mas lembra quando morreu aquele senhor que vivia abandonado? A prefeitura comprou um caixão bonito pra ele, nem pediram desconto, aliás se a gente falar que dá uma gorjeta, eles vão querer pelo maior preço possível.
Pensaram logo em Zezinho, um rapaz esquizofrênico consumido pelas drogas que vagava pelas ruas da cidade. A assistente social tentava ajudar levando-o para um abrigo, mas ele sempre fugia e voltava às ruas. Era a cobaia ideal, ninguém para reclamar sua morte e, se algo errado acontecesse e ele escapasse, não lhe dariam ouvidos, seria só mais um delírio de Zezinho.
— Comé que a gente vai fazer? — perguntou Deusdete quase lambendo os lábios e vidrado nos argumentos do irmão.
— Calça, camisa, chapéu e uma capa com gola alta, tudo preto. Facas, uma marreta e duas armas, no caso dele tentar fugir.
— Quando?
— A noite, qualquer noite.
— Hoje?
— Por que não?
Providenciaram os itens, jogaram tudo no porta malas do Chevrolet Caravan preto que Sinval usava nos funerais e, ao anoitecer, começaram a dirigir pela cidade. Não demorou muito para encontrarem o rapaz deitado em um banco na rodoviária. Eles então estacionaram na esquina e, após meia hora, Zezinho levantou-se e saiu caminhando, os dois então o seguiram até uma rua escura, foi quando Sinval deu sinal de luz.
— Boa noite, Zezinho! Tá indo pra onde? — perguntou Sinval em tom amigável.
— Zé só tá andando. Só andando mesmo, tá o Zé.
— Tá procurando droga pra comprar, né?
— Não, tá doido? Zé quer droga não!
— Uai, que pena! Fiquei sabendo que largaram um monte de droga ali. — Sinval aponta para trás.
— Onde, onde? — Zezinho arregalou os olhos fissurados.
— Ali no… ah vou te contar não. Cê falou que não quer.
— Conta, uai! Zé quer saber.
Sinval se virou para o banco do passageiro trocando sorriso com Deusdete, ele pega um isqueiro no porta-luvas e entrega a Zezinho: — Lá no laticínio abandonado. Sabe onde é?
— Zé sabe. De lá da rodovia.
— Isso mesmo. Corre lá!
— Zé vai lá — e partiu com um sorriso maníaco no rosto, o passo acelerado e as mãos trêmulas acendendo o isqueiro.
No outro dia, acharam o corpo só depois do almoço, a fronte afundada e um corte no pescoço que quase separou corpo e cabeça. Um morador notou vários urubus no local e foi até lá conferir. À tarde, uma funcionária da prefeitura procurou Sinval para comprar um caixão. O plano havia funcionado.
E assim começaram os assassinatos em série ocorridos em Gouvelândia na década de oitenta. Ninguém fazia ideia de quem cometia aqueles atos. Sempre que possível, a noite eles saiam para matar.
Suas próximas vítimas foram pequenos fazendeiros. Estavam sempre armados, então os irmãos utilizavam um arsenal ainda maior, adquirido com um primo de São Simão, que trazia contrabandos sem fazer muitas perguntas.
Paravam o carro longe e caminhavam com cautela até o casebre no meio do mato, fuzilavam quem reagisse. Com os que se entregavam, Sinval experimentava as ferramentas que Deusdete usava na marcenaria, dilacerando os corpos a seu agrado, sem nenhuma lógica anatômica, assistido pelo irmão que se deliciava.
Esse nicho tinha o benefício de estar em local isolado, depois que dominavam os moradores, saiam para o terreiro e observavam se alguém passaria na estrada. Davam no pé se percebessem qualquer movimentação, mas geralmente ficavam quase até amanhecer, explorando os corpos das vítimas. No outro dia vendiam três, quatro, quiçá cinco caixões.
O negócio ia de vento em popa, eles pegaram gosto e matavam mais por prazer do que pelo lucro. Era hora de “investir” nas prostitutas. Deusdete entrava sorrateiramente pelos fundos de um cabaré, invadia o quarto e golpeava um casal com marretas e facas. Os gritos de pânico e dor não são tão diferentes dos gemidos de prazer quando são abafados pelo som alto de uma jukebox.
Nesse caso, logo dava-se falta dos mortos e a cafetina ia no quarto saber porque eles se calaram, mas ainda não haviam saído para o salão. A fuga tinha que ser rápida, Sinval circulava pelo bairro tentando calcular quanto tempo Deusdete levaria para completar a missão, voltava à rua dos prostíbulos e encontrava o irmão pulando o muro ou saindo detrás de um arbusto, esse então entrava rapidamente no carro e sumiam. Isso gerava ainda mais emoção na dupla.
Apesar de terem estimado uma baixa rentabilidade para os velórios das meretrizes, esse tipo de crime tinha vantagens: a venda não se resumia ao modelo simples que a cafetina comprava para velar a moça. Os irmãos se divertiam com a notícia no outro dia, de que fulano, mesmo se dizendo homem sério, havia morrido no cabaré. A esposa quase sempre escolhia qualquer caixa velha, mas logo caia no choro e era estimulada por um parente a perdoar e comprar um caixão decente para o marido traidor. Por fim, vendia-se o que havia de mais chique.
Após um tempo, começaram a investir em bêbados saindo de bailes. Simplesmente encontravam uma pessoa sozinha em uma rua escura e passavam atirando. Certa vez, mataram um tal de Gabriel, rapaz simples que trabalhava como vaqueiro em um rancho próximo a cidade. Seu patrão se chamava Batista, um viúvo cinquentão de aparência forte que recebeu a propriedade de herança do seu pai. Dez anos antes, ele era pistoleiro no Paraná, gostava de matar e, mais do que isso, de prender e torturar suas vítimas.
No dia seguinte à morte de Gabriel, Batista foi até a funerária, comprou um caixão de Sinval, velou o jovem e, no fim da tarde, após enterrá-lo, pôs se a raciocinar sobre o ocorrido. Seja lá quem estivesse fazendo aquilo, ou era muito doido, ou ganhava alguma coisa, ele pensou. Mas se fosse doido, já teria sido pego. Esse aí sabia o que estava fazendo. Mais um pistoleiro na cidade? Provavelmente não, quem estaria pagando por aquelas mortes? Eram aleatórias, movidas mais pela vontade de ver sangue, tripas e ossos do que para eliminar pessoas específicas, conectadas de alguma forma. Também não matava por odiar um estereótipo peculiar: mendigo, fazendeiro, prostituta, bêbado; não havia um padrão.
Quem estava fazendo aquilo, ganhava com a morte e não com essa ou aquela em particular. Qualquer uma. Quem ganha com a morte? O coveiro? Não, ele é funcionário público. Na verdade, ele reza por vida longa a todos os habitantes. Quanto menos pessoas morrerem, menos trabalho e o salário é o mesmo. O dono da funerária então? Talvez. Lembrou que o dito era irmão do marceneiro fabricante dos caixões. Era uma possibilidade, resolveu então tirar a prova.
Sábado a noite ficou rodando pela cidade. Por volta de uma da manhã, viu o carro da funerária indo rumo aos cabarés. Batista parou em um bar no começo da rua e aguardou. Menos de meia hora depois, viu o carro preto voltando um pouco mais acelerado. Deusdete, no banco de passageiro, usava uma capa e um chapéu preto. No outro dia veio a notícia que uma prostituta havia sido assassinada. Horário provável da morte: duas da manhã. Batista não teve dúvida, eram eles.
No dia seguinte, Batista foi até a funerária encomendar um caixão. Inventou uma história de que tinha uma tia-avó já muito doente em Quirinópolis e queria deixar o velório organizado.
— Já quero tá com tudo pronto, com o caixão lá em casa pra receber ela.
— Mas pra que isso? Deixa o caixão aqui, uai! No dia que ela infelizmente se encontrar com Deus, a gente a recebe e organiza tudo — disse Sinval, já pensando na possibilidade de vender algo mais, como coroas de flores e, quem sabe alugar o salão.
— Não, não! É pedido dela. O corpo vai ser levado lá pro rancho, e lá mesmo vamo organizar e velar, só familiar vai ter contato. Ela pediu assim, não posso negar um último desejo, né?
— Tá certo! Mas me diga aí como quer esse caixão? Sabe as medida?
— Pode ser retangular. Sei que esses formato diferente só serve pra encarecer.
— É um jeito de demonstrar um cuidado a mais com o parente que tá indo descansar. — Sinval esbanjava sofismo.
— Ela não tem luxo nenhum, só preza por conforto. Faz um caixão retangular, como uma caixa de sapato. Se possível, que até consiga ficar de pé.
— Uai, em pé pra quê?
— Ela é do tempo em que se tirava foto dos morto. Eu quero um caixão que eu possa erguer.
— Mas e se o corpo cair? O velório vai ser uma desgraça.
— Manda colocar umas corda nas alça passando por dentro do caixão, assim basta amarrar pra firmar o corpo. Ah! Faça largo, viu? Ela é gordinha e não quero que fique apertada.
— Um metro?
— Tá bom.
— E a altura?
— Mais ou menos igual a sua — disse Batista olhando Sinval do pé a cabeça.
— Um e setenta, então… — Sinval desenhava em um papel — vamos fazer um e noventa pra caber os estofados.
— Faz bem fino, melhor deixar ela espaçosa.
— Perfeito, em alguns dias estará pronto.
— Uma última coisa — disse Batista sorrindo e apertando a mão de Sinval —, ela quer que o fundo do caixão seja de vidro.
—Ah sim! Por onde a gente vê o rosto do morto, né?
—Pode por esse vidrim na frente também, se puder, põe redondo, de uns quinze centímetro, só. Mas tô falando do fundo mesmo, o lugar onde ela vai deitar, todo de vidro temperado.
Sinval estranhou o pedido, mas viu a oportunidade de inflacionar o preço do produto junto ao vidraceiro e não questionou. Alguns dias depois, um funcionário foi até o rancho avisar Batista, o caixão estava pronto. Ao retornar à funerária para buscar a encomenda, ele puxou assunto com Sinval, disse que estava sozinho na fazenda desde a morte de Gabriel, havia vendido sua arma e precisava comprar uma nova. Sinval desconversou, disse que não entendia de armas, mas Batista percebeu o peixe mordendo a isca. À noite, os irmãos viriam para matá-lo.
Batista levou o caixão em sua camionete e ao chegar no rancho, o transportou até a sala da casa, saiu para o terreiro e, logo em frente à entrada do pomar, cavou um buraco com sete palmos de profundidade, deixando o monte de terra logo ao lado. Já anoitecia quando ele terminou a empreitada.
Apressou-se para tomar banho e, após vestir-se, foi até a dispensa e tirou de uma caixa de ferramentas, um martelo e uma lanterna, os pendurou em sua cinta e apagou todas as luzes da casa, deixando apenas a do quarto de hóspedes ligada. Ele então arrastou o caixão colocando-o de pé no vão do portal, com o fundo de vidro voltado para o lado dos quartos, onde ele se situou, e a abertura do caixão para o lado da sala.
Batista foi para seu quarto e, de cima do guarda-roupa, puxou uma carabina, para caso houvesse intercorrências. Abriu uma pequena fresta na janela que era voltada para a frente da propriedade e espreitou por algumas horas.
Já era quase meia-noite quando um carro vindo da cidade parou na estrada principal, próximo à entrada do rancho que ficava há cerca de cem metros da sede. Um homem apeou e se embrenhou no mato, o carro deu meia volta e retornou rumo à cidade. Batista se encaminhou para o corredor, se posicionando de costas para o portal no qual estava o caixão e de frente para o fim do corredor, onde ficava um grande espelho que cobria a parede do chão ao teto e lhe ajudava a enxergar a sala. Colocou a carabina no chão e puxou a lanterna, a ligou e pôs-se a movimentá-la lentamente de um lado para outro.
Deusdete adentrou sorrateiramente a sala e percebeu o feixe de luz, se aproximou e viu Batista parado, de costas no corredor. É agora! Basta correr e lhe dar uma facada no rim. Ele avançou, mas imediatamente depois de cruzar o portal, deu de cara com o vidro, o caixão tombou e, desequilibrado, Deusdete caiu dentro dele. Rapidamente Batista se virou pegando o martelo em sua cinta e acertou a nuca de Deusdete que paralisou, de bruços, encaixado no ataúde.
Batista retirou de Deusdete, a capa que portava seus instrumentos e, movendo o corpo para um lado e para o outro, analisou o estado do vidro, estava parcialmente trincado, mas havia suportado o impacto. Ele saiu e observou a estrada, viu o carro preto passando e voltando algumas vezes, mas sabia que Sinval não entraria ali em busca do irmão.
Batista voltou a sala e arrastou o caixão até o quintal, utilizando um grande cobertor sob o vidro para não danificá-lo. Colocou a lanterna próxima às mãos de Deusdete, entre seu corpo e o fundo, encaixou a tampa e selou o caixão, amarrando-o em três pontos. Parou, olhou para a pequena janelinha circular de vidro, pensou um pouco e disse:
—Cê não merece morrer tão rápido.
Buscou na casa um cano de seis polegadas e quase dois metros de comprimento e o adaptou ao buraco formado na tampa ao quebrar o vidro. Com cuidado desceu o caixão na cova e depressa o cobriu com a terra, mantendo a saída da chaminé livre.
Deusdete não havia morrido, ele acordou, se sentiu imóvel, agitou-se e notou que havia algo em suas mãos cerceadas próximas a sua pelve. Naquela escuridão absoluta, seus dedos exploraram o objeto, até que com um click, a luz se fez. Sentiu esperança, ao pensar que poderia sair daquela situação. Mas que situação era essa? Só nesse momento ele se lembrou que foi para matar o fazendeiro e agora estava imóvel no escuro com uma lanterna nas mãos. “Por que não mexo? Estou amarrado?” Movimentou-se e sentiu as cordas atando seus úmeros e fêmures, mas não era só isso que o limitava, parecia estar cercado por todos os lados. Ele deu uma cabeçada para trás e com o impacto ouviu o som da madeira, e à sua frente, desferiu um peteleco produzindo o som do espelho. “Estou trancado em um guarda-roupa? Mas deitado de bruços? Será que é um baú?”
Ele olhou para frente e viu o reflexo de seus olhos. Os olhos que encaravam as pessoas antes de morrer, mas ele não morreu tão cedo. Em pânico, permaneceu por sabe-se lá quanto tempo. Toda madrugada, Batista ia até o sepulcro colocar água e comida no cano, que caiam na nuca de Deusdete. Um som tenebroso ecoava, vindo de dentro da terra. Como provocação, Batista pulava sobre a catacumba e notava um aumento dos gritos soando pelo cano como uma trombeta sendo tocada nas profundezas do inferno.
Sinval nunca reivindicou nada. Quando alguém lhe perguntava, dizia que o irmão havia sumido e não tinha nenhuma notícia. Até que um dia ele chegou na funerária e encontrou um caixão no meio do salão principal. Perguntou ao funcionário se alguém havia morrido, ele respondeu que aquele caixão não era da empresa e havia sido entregue pela manhã, com um bilhete para Sinval escrito assim:
“Te mando esse presente, meu irmão! Se vista para vir morar aqui comigo embaixo da terra.”
Sinval nunca mais foi visto.
TEMA: PRISÃO
Esse conto inédito fará parte do livro a ser lançado em breve:
O FANTASMA DO CAMINHONEIRO