ASSUNTO DE FAMÍLIA - CLTS 27
Com certa dificuldade, Esperidião caminhava rumo à janela do imponente palacete, construção colonial que dava o charme aristocrático à rua do Ouvidor. O octogenário estava atado a um cilindro que lhe permitia usufruir de uma dose extra de oxigênio, enriquecendo assim sua respiração, uma vez que desregrado, o tabaco inflingiu-lhe profundos danos ao passar de cada outono.
Penetrando úmido pelas narinas, o sopro de vida amenizava a rouquidão do peito ao caminhar no interior do quarto, lá fora dependia de Daniel seu secretário e única pessoa com quem trocava mais de três palavras.
Quem via figura tão decrépita e conhecia a história do homem, amaldiçoava a teimosia que o mantinha entre os vivos. Tantos de melhor índole partiram cedo demais, porém apenas sua sombra bastava para fazer tremer os pobres artífices da Companhia de Tecidos, dona não só dos melhores imóveis, mas também da alma daqueles que decidiam os rumos da cidade.
Da sacada do terceiro andar, sem temer o golpe de vento do fim de tarde, ele observava o poente avermelhado. Ao pensar na visita aguardada, uma pequena crise de tosse o fez buscar proteção fechando a grande janela.
Batista caminhava pela rua centenária, poucos carros circulavam naquela hora, os casarões se fechavam para o jantar. Suas mãos suavam temendo o encontro. Em casa, meteu-se naquilo que julgava ser o melhor traje que possuía. Em sua cabeça, revisitava todas as memórias possíveis. Sem indícios do motivo do peculiar convite, respondeu de forma melancólica a intimação, em pouco mais de quinze anos nunca ousou encarar o patrão.
Ao sentar-se aos pés da cama, Esperidião encarou sua esposa, com rosto sério ela retribuiu seu olhar. Aquele encontro era uma abominação, ela o proibiu de forma enfática. No Palacete da Rua do Ouvidor, aquela gentalha nunca poria os pés, enquanto ela estivesse viva, jamais permitiria.
Agora já não era mais o caso, breve o taciturno senhor daria seu brado de rebeldia. A coragem enrubescia-lhe as faces, foram anos sob o julgo da megera, muitas vezes teve rompantes de quebrar as correntes, mas quando deu sua alma em troca do cargo na fábrica não sabia quanto seria perdido. Tornando-se diretor do conglomerado, também se tornou cativo. Com o poder veio o status porém perdeu-se a alegria e com o passar veloz dos anos a alforria tornou-se impossível.
Como último suspiro, desejava romper naquela noite os laços que os mantinha unidos, partiria como uma alma livre.
A mulher sabendo de suas intenções, ergueu-se investindo contra o homem quase indefeso.
Esperidião caiu sobre a cama, o ar tão precioso começou a lhe faltar, seu coração batia em longas pausas, numa tentativa de recolocar o oxigênio, arranhou seu próprio rosto deixando um pequeno filete rubro fluir.
Após alguns longo segundos, provando que ainda não desejava partir, num esforço quase sobrenatural alcançou a pequena campainha, foi salvo ao acionar o botão de pânico. Contrariando Daniel, estava resoluto, não adiaria a entrevista. Enquanto está cena quase grotesca se desenrolava no aposento principal, lá embaixo, nos bastiões do palacete, a governanta recebia um grupo de três pessoas alheia a quase morte do patrão.
Respirando de forma suave, cadenciando o pulmão ferido, Esperidião era fustigado pelo olhar inquisidor da esposa, não havia necessidade de palavras, ela tentava estreitar ainda mais os grilhões que o atavam àquele hediondo destino.
Segundo recomendações do patrão por ordens transmitidas através de seu secretário, a governanta conduzia os visitantes de ternos escuros pelos corredores ornados por telas que estampavam a rica genealogia da dona da casa. Uma porta larga escondia a biblioteca. Os três indivíduos buscaram assento em frente a uma mesa de mogno, um deles tamborilava com os dedos o couro de uma pasta sobre os joelhos.
A tarde se tornou sombria, Batista enxergava seu destino, o grande casarão, não o seu futuro e isso o deixava inseguro. Se fosse sua demissão, deveriam tratar na empresa, não ali. Não havia dicas, apenas se dirigia ao desconhecido.
Quando se encara a morte, a vida passa diante dos olhos como numa tela de cinema. Há anos o dono da mansão enganava suas limitações acrescendo minutos à sua existência. Teve muito tempo para rever seus passos, avaliar os tropeços. O casamento que lhe deu como dote a administração daquele pequeno império roubou-lhe a vida. Tornou-se um escravo dos afazeres e só a morte o libertária.
Mais que a dor de ser recluso em seu próprio reino, era a dor de ter abandonado o amor, e por toda sua existência isso corróia-lhe a alma. Quando a oportunidade lhe caiu no colo, pensou ter tirado a sorte grande. Era um simples estudante de contabilidade que por sorte foi indicado por um dos professores e na fábrica faria seu estágio.
Com os cabelos negros reluzentes devido ao zelo e um creme de aroma adocicado, ia e vinha pelos departamentos, levando ou trazendo documentos. Muito rápido aprendeu todos os caminhos produtivos, as operárias baixavam os olhos e suspiravam ao vê-lo passar. Os homens de tato rude, viam nele uma pessoa um tanto afetada. Em meio ao suor do trabalho, seu perfume lhe dava ares delicados.
Sua sorte não teria revezes, seu destino lhe trouxe uma grande oportunidade.
Sempre que passava naquela rua, observava admirado a fachada do casarão. O palacete lhe atraia, chamava seu nome até que o tão sonhado desejo de atravessar seus portões foi apresentado.
O dono da fábrica despacharia em sua residência, precisava de alguém como assessor. Além de ter as habilidades necessárias, naquele momento, o estagiário era dispensável, poderia lhe servir pelo resto do dia.
Bastou uma tarde para que a filha do patrão fosse tomada de amores. Sempre pelos jardins, tinha pouca convivência com outras pessoas além dos empregados da casa e das colegas do colégio para moças.
Esperidião despertou na jovem inexperiente uma grande admiração, depois daquela tarde a doce senhorita apresentou um forte interesse pelas ocupações do pai. Mesmo com o empresário acreditando que o lugar da filha não fosse um escritório cercado por pessoas interesseiras, ele a recebia ao dar expediente na fábrica. Por sua vez, a filha sempre conseguia atenção do jovem que de estagiário, muito rápido se tornou efetivo, e com a mesma eficiência, quase indispensável ao futuro sogro .
Enquanto descia as escadas amparado por Daniel, que também se incumbia do pequeno cilindro de ar, Esperidião fitava friamente a esposa que lhe retribuía com o mesmo desdém.
Mais uma vez ele a afrontaria com outro capricho, sua vontade era arrancar do secretário aquele frasco de oxigênio, a âncora que ainda mantinha o esposo no mundo vivente. Porém não seria assim que desejava seu fim, queria algo mais, desejava vê-lo perder tudo aquilo que almejou, só assim teria prazer.
O jovem ambicioso de fino trato, tinha não só o coração da herdeira da fabrica como também fazia sucesso entre as colegas de trabalho. Em especial, passava boa parte do dia pelo setor dos teares, como uma ave cortejando sua parceira. De forma cômica assediava uma novata de pele morena e olhos verdes, uma perfeita combinação para uma mulher de pouca instrução.
O destino tem maneiras de enredar diversos personagens, um homem rico tendo sua única filha como herdeira, um rapaz ambicioso de boa aparência e uma humilde, porém bela mulher.
Todos os ingredientes para um drama épico foram apresentados, é claro que a ambição falou mais alto. O amor é efêmero, apesar do que atestam os românticos, ele jamais será eterno, pode ser sempre substituído. Com esta convicção, abraçou seu tão sonhado destino. Tornou-se o único proprietário daquele pequeno império.
No ardor da juventude, o belo rapaz, desejava ter uma família numerosa. Queria ver seus filhos correndo pelos jardins do casarão, sonhava ensina-los a andar de bicicleta, matricula-los nos colégios que não pode frequentar.
Mas eram apenas sonhos. Sua bela esposa era seca, não lhe deu filhos, só decepção.
Em pouco tempo, a paixão da mulher pelo promissor marido se transformou em obrigação, depois convivência. No fim o casal vivia um tormento, o ódio era mútuo.
Na biblioteca, ao entrar amparado pelo secretário, foi reverenciado pelos seus convidados. Com ajuda de Daniel, sentou-se por trás da grande mesa de trabalho. Passou os dedos pela madeira levando próximos aos olhos. Mesmo com a impecável limpeza, fez um gesto de reprovação.
A campainha tocou.
Em prontidão, a porta foi aberta pela governanta que sabia quem esperar. A passos tensos, Batista a seguia como se rumasse ao cadafalso. Após algumas suaves batidas como anúncio, se juntaram aos demais no luxuoso aposento.
Convidado a tomar assento, Batista se sentia constrangido.
Antes que o tabelião lesse o testamento, o detetive contratado para encontrar o filho da jovem operária contou sua história.
Uma densa névoa negra turvou a visão do incrédulo Batista. Como poderia ser o filho do homem que por muitos anos o desprezou? Sua família não era dali, veio em busca de trabalho que faltava em sua região. Seu pai e sua mãe nunca visitaram aquela cidade. Toda aquela história não passava de invenção, Batista se recusava a acreditar, mesmo com as provas apresentadas.
Anestesiado pela surpresa, sem saber o que era real, o funcionário do homem mais desprezível da cidade viu em seu futuro a possibilidade de grandes mudanças. A dúvida inicial se diluía a medida que os fatos iam se apresentando. Ouvindo dos lábios roucos do decadente Esperidião a última confissão de um amante arrependido, Batista começou a chorar. Agora todo aquele império seria dele, algo que jamais sonhou.
Retirando da pasta de couro os documentos necessários, cada um dos presentes assinou como testemunhas.
Num canto escuro, a esposa do velho arrependido sorria passando os dedos pelos cabelos desgrenhados, ela se movimentava como uma fera acuada, Esperidião sorriu por finalmente saber que se livraria daquele amargo fardo.
A governanta entrou trazendo consigo uma preciosa garrafa de champanhe. Daniel tomou a iniciativa brindando a saúde do novo milionário.
Ainda com lágrimas nos olhos, Batista não se conteve. Como um andarilho perdido no deserto, esvaziou a taça sem ao menos saborear o líquido. Servido novamente pelo secretário, agora poderia degustar com calma o precioso líquido.
Acostumado com bebidas baratas, era a primeira vez que tomava algo de qualidade. O sabor acre do líquido não lhe pareceu estranho.
Enquanto os convidados bajulavam o velho Esperidião, Batista sentia uma espécie de nó na garganta, seu coração disparou espalhando com violência o sangue pelas centenas de vasos pelo corpo. A taça caiu. Ele tentou apoiar-se na mesa, mas sua visão escureceu. Levou a mão no peito parecendo ouvir uma risada distante.
Vendo o novo herdeiro se debater em agonia, Daniel fechou a válvula do cilindro de oxigênio. Desesperado ante a dor do filho, Esperidião se esforçava em busca do ar que lhe faltava, aos poucos ele perdia as forças, na sua frente, a imagem da mulher eufórica desaparecia.
- Você tem certeza que ninguém vai procurar por ele, aqui eu sou o que mais tem a perder. O médico particular do milionário se dirigia de forma séria ao detetive.
- Está tudo certo. Ele não tem família, os pais morreram a alguns anos, ele nem sabia. Se alguém der falta, vão suspeitar dos agiotas. Deve quase todo mundo, vira e mexe é surrado por algum cobrador.
- E o velho? Perguntou o tabelião.
- Este hipócrita mesquinho, tratava a todos como lixo. Assediava e constrangia as funcionárias da fábrica que eram forçadas a cederem a seus caprichos. Nenhuma ousava lhe contrariar, precisavam do emprego. Daniel ao falar, parecia tirar um peso dos ombros.
- Para o velho vou atestar falência dos órgãos devido a parada respiratória, os remédios que demos a ele não serão detectados. Para este outro, veremos o que fazer se algum dia o corpo for encontrado.
- Então, qual sua primeira ação como novo proprietário da fábrica de tecidos. O detetive sorria ao questionar Daniel.
- Mandarei limpar e plantar algumas flores no tumulo da infeliz mulher deste traste que sendo ele estéril, a culpava por não ter filhos.
Naquele início de noite, os comparsas festejavam ao lado dos cadáveres a certeza da impunidade.
Tema – Alucinação, prisão