FOI ASSIM - CLTS 27

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"Não escolhi estar aqui, mas se estou, é o lugar certo", eu dizia a qualquer palpitante, mas no íntimo da montanha, sabia que fora enganada. Joguei sem saber as regras e quem conhecia tirou o quanto pôde de mim.

Quando cheguei na capital, jjá era veterana de bordel, mesmo assim, a maldade da cidade grande me assustou. Os clientes não queriam apenas algumas horas de fuga, de prazer, de bebedeira, eles nos matariam, se pudessem.

Margareth me avisou na primeira semana ali na avenida Principal. "Cuidado, flor, os homens não se contentam em te comer, eles querem te comer de verdade" e deu aquele sorriso bonito com seus dentes branquinhos, causador de inveja em muitas das meninas.

Só fui entender a "brincadeira" quando apareceu um sujeito que mordeu minha perna ao ponto de sair sangue e grito.

Para minha sorte, não me deixei ser amarrada. Alguma coisa me assustou ou avisou, não sei dizer. "Não, amor, assim não, agrado mais toda livre", disse com a voz de batom de falsa promessa. Ele concordou, mas quase me arrancou um pedaço, talvez para compensar.

Doeu muito, coisa ruim é dente de gente, mas pior foi a ação seguinte do infeliz.

Levantou a cara besuntada de sangue e colocou o indicador da mão direita sobre os lábios, deixando escapar o ar num shhhhh prolongado. Não bastasse, com a outra mão tocou minha boca ligando-nos de alguma forma nesta perversão do inferno. Limpou o rosto e boca no lençol. Saiu após vestir-se, tranquilamente. Ninguém procurou saber o motivo do barulho, ninguém se importou. Apenas a bela Margareth soltou um "Falei ou não falei ?" ao passar por mim no corredor. Na outra semana, o bandido estava de volta e bem recebido como sempre. Do canto do bar, ele me viu e levantou o copo de cerveja num arremedo de brinde ou cumprimento. Senti uma fisgada no local da marca que o diabo plantou.

Há instantes assim quando algo me dói que arranco da memória algum dia de quando eu era pequena, morando com minha mãe e irmã mais velha três anos, num barraco de três cômodos, perto da Praça Lafayete, onde a gente brincava de noite se mamãe deixasse, lembro que era bom aquele tempo ou tenho querido lembrar desse jeito. Não recordo de muitos dias diferentes, eles se repetem nessas vezes que os caço para cobrir alguma dor presente, mas não tem importância. Existe um dia desses que gosto muito, volta e meia, meia e volta, corro para lá.

Fazia frio quando amanheceu. A noite foi muito gelada. Nós três dormimos juntas na cama de casal da mamãe que de casal só tinha o tamanho. Nosso pai nunca dormiu nessa cama, nenhum outro homem também. Foi comprada depois que ele foi morto. "Mataram ele lá no pé da Bica da Mangabeira", ela dizia toda vez que alguém perguntava. "Briga de pinga". E o assunto encerrava. Mas não é isso que me leva para esse dia, na verdade, eu vejo tudo direitinho. A maninha virada de costas para mim, eu no meio e mamãe dormindo com as mãozinhas sobre a barriga. Apenas eu via e sentia o calor das cobertas tentando sair e formando uma fumacinha de vapor. Assim como minha respiração e da maninha e da mamãe criavam pequenos seres com capa esvoaçante fugindo de nossas bocas. Pensei logo que a gente parecia um recheio de bolo no forno, tão quentinho, tão gostoso. Era domingo e logo mais nós iríamos assistir à missa, depois passar na feira para comprar banana e laranja, talvez um frango, quando o dinheiro dava e nesse dia, compramos mesmo. Depois veio o almoço, um pouco de televisão velha sem graça, brincar na rua e mamãe conversar com os vizinhos na calçada. Quando a noite chegou, banho tomado, janta no bucho, nós dormimos todas sorrindo de uma conversa besta da maninha sobre um rapaz que tinha entregue uma flor branca para ela e saiu correndo. Minha maninha contava doze anos de idade, eu tinha nove. Se eu era bonita, maninha era linda demais.

Essas horas desse domingo perdido lá na travessa esquecida do canto da cidade, tem me embalado muitas vezes e me entrego tanto nessa viagem que nem sinto onde estou. E não foi diferente naquele momento ao ver o tarado que havia cravado as presas em mim, como se não fosse muito ter que suportar o bafo, o suor, a baba e a coisa lá embaixo cavoucando, cavoucando, até reunir força para cuspir dentro de mim sua imundície de vida.

Quando saí da lembrança reparadora feliz da minha infância, dei de cara com o monstro vomitando alguma besteira para mim, esperando uma resposta, não sei. Apenas sorri por força da profissão. Ele agarrou minha mão, entendendo minha ignorância como um sim e puxou-me para o rumo dos quartos. Nessa hora, não sei o que me deu, talvez um alerta novamente, puxei o braço com força e quando ele se virou, empurrei meu chute mais equino nas partes desse desgraçado. O que veio depois foi uma confusão só. Risadas, música alta, xingamentos, tabefes e o diabo a quatro ou de quatro igual ao pateta na minha frente. Nesse dia, minha vida mudava de novo, eu só não sabia ainda.

Quem nunca frequentou ou conheceu um cabaré, não conseguirá imaginar a opressão que esse lugar causa. Não importa se for chique ou de ponta-de-rua.. Muitos sofás em todos os cômodos, um bar ou dois expondo garrafas de bebidas e copos ansiosos para serem preenchidos, nem sempre muito limpos. A luz ambiente é de penumbra, sempre em tons mais escuros. Há mesas e cadeiras em profusão. Mulheres seminuas e maquiadíssimas. Bêbados e outros homens, em sua maioria, mau encarados. Por todo o lugar aquela sensação de morte ao som de músicas embaladas por álcool, muito álcool. Nunca haverá outro espaço onde a desesperança é tão real, tangível, concreta, invasiva, aliás, talvez apenas no cemitério o sentimento seja parecido.

Em contraste com esse espaço de malícia, sempre lembro da vez em que meus doze anos de vida chegaram e junto uma festinha de aniversario. Mamãe estava muito mais empolgada que eu. Usava um vestido rosa sem estampa e de mangas curtas. O decote quadrado nas alças nos ombros decorava seu colo de maneira perfeita, pensei mesmo que minha mãe era uma mulher maravilhosa. Um par de brincos dourados em forma de semi-lua completavam o encanto contrapondo o cabelo preto e longo. Além dos meus colegas de escola mais chegados, alguns vizinhos e outras crianças, mamãe convidou o dono do açougue e adultos que eu nunca tinha visto. Enquanto as crianças brincavam, o restante bebia e conversava. Todos pareciam bem alegres. EU estava muito alegre. Houve presentes. Um mundo de sonho que nunca tinha sonhado. Maninha já havia me dado tantos abraços que nem lembrei de procurá-la na festa. Mamãe não sabia ou se sabia não se importava, coisa era que maninha estava de namorico com o rapaz que trabalhava na farmácia. Ela tinha quinze anos e ele parecia ter encontrado os vinte anos todos de uma vez num atropelamento de caminhão. Maninha não gostava dessa comparação. Ao soprar as velas do bolo de morango e creme de abacaxi pensava somente que eu era muito sortuda. Três meses depois dessa comemoração, fomos morar na casa do dono do açougue. Não recordo de termos dormido abraçadas novamente, minha mãe, eu e maninha.

Depois de ter levado um chute no rabo, o doido que me mordera sumiu. E minha rotina estabeleceu-se sem problemas. Muitos clientes, muitas horas de cama, pouco tempo comigo mesma . Quando não estava trabalhando, estava no shopping, mais precisamente nos cinemas. Por que não? A fantasia já salvou muita gente. Depois dos filmes, um lanche, um sapatinho de cristal novo e voltava eu para o castelo.

Em um retorno desses, esperando o ônibus passar, um carro chique parou. O motorista abaixou o vidro e, sorrindo, perguntou se eu precisava de carona. Talvez fosse a pouca iluminação da rua, atrapalhada pela fina chuva, mas aquele homem me lembrou aquele canibalzinho vagabundo e minha coxa doeu onde ficou a cicatriz. Fechei o guarda-chuva, abri o sorriso e entrei no veículo estranhamente perfumado.

Maninha quase não esperou completar dezoito anos para assumir casa com o empregado da farmácia ali do bairro. "Menina boba", eu pensei, "tão bonita, foi se apaixonar por esse bobão sem eira nem beira". Para minha surpresa, mamãe parecia feliz com a saída dela lá de casa, da casa do dono do açougue, na verdade. Ele era bacana com a gente, pelo menos comigo. Quase não brigava com mamãe e de um jeito ou de outro, nossa vida tinha melhorado. Eu usava roupas mais novas, não tinha que trabalhar na casa dos outros ou esperar mamãe trabalhar enquanto eu ficava quieta num canto. Foi ruim não. Até na praia a gente ia uma vez por mês. Antes de juntar os trapos com o rapazinho lá dos comprimidos, íamos nós três e o homem. Na última vez que fomos, já estávamossó mamãe, eu e o homem. E bem nessa volta do passeio, nosso carro capotou numa curva esquisita. Eu fui atirada para fora, mamãe e o dono do açougue morreram presos nas ferragens. Nem gritaram. Foi rápido.

Fui morar com maninha no barracão que arrumaram pertinho da nossa casinha antiga. A gente chorava o dia inteiro lembrando da mamãe. Isso durou uns quarenta dias, depois fomos nos acostumando a viver de novo. Maninha foi engravidada e ajudei a cuidar dela e do meu sobrinho nascido. Havia esperança de novo, mas um dia, já de noite, o homem da maninha inventou de passar a mão na minha perna. Ela viu. Brigou com ele, brigou comigo. Nunca ela tinha me dito tanta coisa feia nessa vida nossa e ainda disse para eu arrumar outro canto. Eu estava com dezoito para dezenove anos, fui para casa duma prima de mamãe num distrito mais para o fim do estado. No dia da partida, maninha chorava mais que no dia que mamãe morreu.

O marido da minha prima era cachaceiro e batia muito nela, então ele aproveitou e pensou que podia bater em mim também, só que na segunda vez que ele veio para me acertar um tapa no rosto, dei uma paulada na fuça dele e fugi. Correndo e andando, com medo de tudo, acabei entrando na casa das quengas e ali fiquei. Aquelas meninas me adotaram. Comecei a carreira.

Ele nem perguntou para onde eu estava indo. Colocou uma música baixinha e saiu ligeiro. "Tá lembrada de mim, não, meu anjo?", perguntou com a cara de palerma que nãoesqueci nunca. "Claro que lembro, você foi o tonto que mordeu minha perna, me confundindo com pedaço de frango, não foi?" Parece que ele não gostou da resposta. Acelerou mais e se calou.

À medida que a estrada passava debaixo das rodas do carro, eu pensava na minha mãe, na maninha que fazia anos não via, em como estaria meu sobrinho, será que tinha irmãos? Lembrei que ela gostava de pudim de pão e de doce de goiaba com creme de leite. Minha maninha que amo tanto. Minha mãezinha que amo tanto. Onde vocês estão?

Ele entrou no primeiro motel que surgiu, nem disse nada para mim. Não me preocupei.

"Hoje eu desconto o chute que você me deu, cachorra", foi a primeira coisa que gaguejou uma vez dentro do quarto. Ele era forte, não era feio, o que o prejudicava bastante era a carniça do suvaco que ele tentava compensar com litros de desodorante, o que só piorava. "Vai me morder de novo?" aticei fazendo cara de safada. Aquilo o confundiu. Ele esperava cara de medo. "Vou sim, e vou morder com força dessa vez", respondeu. Tirei minha blusa e pedi para contar um segredo antes que ele enfiasse os dentes em mim. Ele concordou e trouxe o ouvido pertinho da minha boca. Nesse instante, voltei ao passado naquele dia mesmo em que estávamos dormindo, bem quentinhas, eu, mamãe e maninha. Não me canso desse dia. Quando saí dessa saudade maravilhosa, o infeliz estava deitado no chão, segurando o pescoço ensaguentado de onde fontes de sangue pareciam querer inundar o mundo. Seus olhos estavam tão esbugalhados que tive medo que fossem explodir. Os seus movimentos foram diminuindo lentamente até cessarem por completo. Olhei no espelho grande da parede e me vi sorrindo abertamente enquanto o líquido viscoso daquele malandro escorria por meu queixo e peitos e barriga.

Tomei um banho demorado, vesti-me, avisei à recepção que meu amigo ficaria até amanhecer, pedi um táxi e paguei o motel adiantado com o dinheiro dele, claro. Em casa, dormi como um anjo.

A polícia me encontrou três dias depois. O advogado disse que agi em legítima defesa. Estou esperando o julgamento. Não sei de nada e nem me importo, só sei que a cada dia, a vontade de me defender legitimamente desse bando de canalhas tem crescido muito, ganhado gosto. E é um gosto bom.

Suspense

Tema: Confissão.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 25/05/2024
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