O Cavalinho Azul Parte - V - Gerônimo -
Gerônimo ao fugir entrou em uma estrada vicinal e após horas dirigindo chegou a um pequeno município. Pensava em provar sua inocência, voltar e se casar com Helena. A primeira providência foi mudar a aparência: cortou os cabelos, fez a barba, tirou o excesso das sobrancelhas e deixou de usar as roupas que tanto gostava. Cansado e com fome teve a atenção voltada para uma placa onde se lia "ARMAZEM DO COCADA".
Cocada era um homem calvo que por conta de uma dentadura solta falava com dificuldade:
- Em que posso servi-lo? Perguntou ao ver o rapaz se aproximando do balcão:
- Um pão com qualquer coisa e uma caneca de café. Respondeu apontando o dedo para a garrafa vermelha em uma mezinha no canto da parede.
- São quase três da tarde, caso seja do seu agrado ainda temos almoço...
- Comida? Pode caprichar!
Dona Elsa, uma senhora na casa dos setenta anos veio lhe atender. Trouxe um prato contendo arroz, feijão, peixe frito e um generoso pedaço de angu. Entretanto, após servi-lo a mulher disse:
- Moço, há um quarto vago nos fundos do armazém, caso queira seguir viagem mais tarde está à disposição. Melhor descansar um pouco antes de pegar estrada, não acha?
- E tem como tomar um banho?
- Claro! falou a mulher enquanto lhe entregava os talheres.
- Sendo assim, para ser mais sensato, seguirei viagem amanhã bem cedo.
O pequeno cômodo era pintado de branco e um cheiro bom de limpeza pairava no ar. A mobília composta por cama de solteiro, guarda roupas e criado era robusta e bem cuidada.
***
O parque nunca esteve tão cheio e Gerônimo sorria. Mas o carrossel ganhou vida e sua alegria se dissipou no momento em que as crianças começaram a ser dilaceradas. O sangue absorvido pela terra fez brotar seres horrendos. Vísceras se prendiam aos pés dos cavalinhos que sapateavam arrancando intestinos, pulmões, fígados e rins. Corações ainda palpitantes pulavam escorregadios tentando se livrar das terríveis criaturas que, insaciáveis, vieram das profundezas do inferno. As bestas projetaram imensas asas de suas corcundas escamosas e voaram em direção a roda gigante. Aos gritos todos despencaram lá de cima. Muitos ficaram presos às ferragens, mas os monstros alados com força descomunal arrancavam os corpos. Braços e pernas atados à colossal estrutura sangravam. Outras aberrações desprovidas de asas, mas com imensos olhos projetados, aguardavam o néctar cair em suas bocarras escancaradas.
Gerônimo aterrorizado se debatia até que conseguiu se soltar. Foi então que sentiu o corpo girando em infinitas direções, enquanto desvirginava um abismo de escuridão.
***
Abriu os olhos assustado, estava ainda preso no mastro. Olhou para baixo e a seu redor tudo era coberto por uma espécie de névoa, mas que aos poucos começou a ser afastada por uma corrente de ar frio. Um pântano de sangue foi revelado e os brinquedos do parque, mesmo sendo feitos de ferro, agonizavam enquanto eram puxados para o fundo. Às margens sobre a lama coagulada milhares de cadáveres emolduravam aquele cenário de horror. Grotescas criaturas emergiram-se do rubro lamaçal e foram em direção aos corpos.
O banquete começou e o barulho voraz da carne sendo mastigada era ensurdecedor. Trituravam os ossos com suas mandíbulas poderosas quando um deles olhou para cima, alçou voo e salivando pousou sobre o mastro; ao sentir o ruflar das asas Gerônimo tentou gritar, porém, ao abrir a boca a demoníaca figura introduziu o dedo em sua goela e de forma circular lhe revirou as entranhas, e tudo que tinha por dentro veio agarrado a um imenso gancho de açougueiro.
Acordou se afogando no próprio vômito. Caído aos pés da cama de imediato não conseguiu se levantar. Estava enrolado aos lenções e só depois de se acalmar foi que se soltou. Foi ao banheiro, sentia o suor escorrer por todo o corpo, tomou outro banho e ainda apavorado voltou para a cama.
Quando despertou já eram quase onze horas da manhã e ao entrar no armazém todos falavam sobre a morte dos integrantes do Parque São Sebastião. Um caminhoneiro que parou para almoçar trouxe a trágica notícia. Disse que todos estavam armados e se rebelaram contra a polícia e que...
Gerônimo não quis ouvir detalhes. Temia perder o controle e com um grito entalado na garganta voltou para o quarto. Ao retornar estava aéreo, com os olhos vermelhos. Sentia a cabeça latejar com a explosão de pensamentos criados pelo espírito da vingança que, enclausurado, tinha pressa em se libertar.
***
Helena depois de confirmada a gravidez desistiu de morrer e João dos Anjos passou a lhe cercar de cuidados. Dizia que o neto herdaria o seu patrimônio e seria criado com todo amor do mundo. Ingênua acreditava que ele estava arrependido de todo sofrimento imputado ao filho morto e agiria diferente na criação do neto. Em contrapartida, João dos Anjos tinha o coração transbordando de ódio. A certeza de que o bastardo era do tal Cigano lhe tirava o sono. Passava boa parte da noite pensando nos dois fodendo sendo observados por André: aquela marica que só lhe fez passar vergonha. As cenas não saíam de sua cabeça e excitado rolava na cama: era pecado se masturbar.
Helena teve uma gravidez de risco, os sangramentos eram frequentes e segundo recomendações teve de passar os últimos meses em total repouso. O parto foi difícil e João dos Anjos chegou a pensar que a perderia. Foram dois dias de intenso sofrimento até que os Gêmeos nasceram.
Ao ver os meninos o avô foi tomado por uma excitação que até então não conhecia e, tendo uma crise de riso: pensou. "A infeliz tem agora dois bons motivos para desejar a própria morte".
Continua...