PELAS FRESTAS DE UM SEGREDO - CLTS 27

Fazia quatro anos desde que Venceslau fora ordenado ao presbiterato. A curta vida de vigário afogara seu viço juvenil no marasmo dos ofícios religiosos, mas a última designação em que os superiores o investiram surgiu feito chama na algidez da vocação frustrada. Nomearam-no responsável por assistir as freiras de um convento a ser fundado na região, onde duas religiosas já viviam.

À vista de Venceslau, através do para-brisas do carro em movimento, os contornos da ermida revelaram-se no cimo do outeiro. Este, circundado por arvoredos, dominava o cenário em derredor, onde só o farfalhar das folhas e os trinados da passarada violavam a mudez daqueles sítios onde a natureza, fechando-se nos séculos, atravessava as eras em profunda hibernação.

Menos aprazível, no entanto, foi a chegada, uma vez que não poderíamos omitir a presença de Belzebu.

— Vamos, saia logo daí. Lugarda está ansiosa por te ver.

Mas o pinscher mantinha-se impassível, ladrando alucinadamente, obstinado a permanecer na caixa.

— Sim, sim... Eu também não vou com seu focinho — dizia Venceslau, ao lograr a retirada do bicho — Não foi à toa que Lugarda te deu esse nome. Belzebu. Se houver um inferno para os cachorros, você irá ocupar o mais profundo dos círculos. Mas agora estou livre: ficará com sua dona.

Ele achou por bem prender o cão à entrada do bosque que se estendia além fundos da igreja e dirigiu-se à porta, imponente estrutura de carvalho à qual se afixava uma aldraba. Venceslau chocou a argola de bronze contra a madeira por três vezes. Em poucos segundos, alguém assomou à porta.

— Padre Venceslau! Quanta alegria recebê-lo por aqui! — exclamou a freira, osculando a mão do sacerdote — Sua benção, reverendo.

— Que Deus a abençoe, Madre Perpétua.

— Venha. O senhor pode deixar as maletas de Lugarda na sacristia.

Com quase quatro décadas de vida religiosa, Madre Perpétua fora nomeada a superiora do convento. Ali devotava sua vida ao serviço da Igreja e à instrução das noviças, que futuramente viriam.

A sacristia não passava de um cômodo exíguo, acessado pela porta à esquerda do altar. Quando deitou as maletas, Venceslau surpreendeu-se. Ao lado de um armário, uma estreita passagem abria-se na parede e penetrava o subterrâneo por dezenas de degraus, ao fim dos quais sólida porta gradeada bloqueava o caminho para um corredor que se estendia no breu.

— Padre Venceslau, por favor — a Madre apareceu à porta.

— Definitivamente, este é um belíssimo templo. Quanta história não narra essa cantaria de pedra! Mas... Parece que falta algo ali.

Venceslau apontou para um buraco rente ao chão, aberto na parede do lado direito, oposta à sacristia.

— Ninguém sabe explicar por que falta um bloco de pedra naquela parede — respondeu Perpétua. — A falha existe desde que o templo foi erigido, há mais de dois séculos. Jamais se comprovou que ela oferecesse algum risco à estrutura; pelo contrário, muitos dizem que esse buraco traz boa sorte.

— Besteira. Superstições...

— O senhor tem razão. A nossa sorte está em Deus. A propósito, quero me confessar.

O confessionário recebia a luz de um janelão. O padre acomodou-se a uma cadeira de pau tosco e sentiu o rumor da freira que se ajoelhava do outro lado. Persignou-se e inquiriu suavemente:

— Quais são os seus pecados?

Diversa da voz amável que escutara até então, Venceslau surpreendeu-se com a rispidez das palavras de Perpétua:

— Vamos direto ao ponto, garoto. Lugarda está sendo mantida em cativeiro nos subterrâneos desta igreja.

O outro gaguejou uma pergunta, mas foi logo interrompido.

— Sim, é na cripta. E sei que você já descobriu a entrada. Basta descer os degraus ao lado do armário da sacristia. Num gancho próximo à porta gradeada, você encontrará a chave para abri-la.

Ao fim dessas palavras, Perpétua se levantou e saiu apressada. Dentro do confessionário, Venceslau procurava assimilar o que lhe fora dito.

Perambulou uns instantes pela nave, com os olhos amortecidos de pasmo. Os toques dos sapatos sobre o chão ecoavam nas paredes de pedra, e aquele ambiente, lúgubre como um túmulo, tornou-se-lhe odioso.

Quando saiu, a brisa invadiu suas narinas com delicioso atrevimento. Um hausto inflou os pulmões, e a calma aplacou os nervos convulsionados. Apoiando-se ao carro, Venceslau recitou um Padre Nosso, recomendando-se aos sempre acertados desígnios da Providência.

Conquanto estivesse mais sereno, ainda não era capaz de admitir aquele absurdo. Também ignorava se Perpétua dizia a verdade. Bastava que fosse à sacristia, descesse os degraus e descobrisse a realidade por si mesmo. No entanto, estava impedido de fazê-lo; também a Madre o sabia. Era impedido pela Igreja. Mas o que se pretendia ganhar com tudo aquilo? O dinheiro do resgate? Então por que Perpétua revelara o cativeiro, instruindo-o mesmo a acessá-lo?

— Padre, ei, padre!

Venceslau assombrou-se ao escutar, outra vez, a conhecida voz da Madre. A doce voz de sempre. Ela o chamava à entrada da casa das freiras, ao lado da igreja, onde vivia com Lugarda.

— Preparei um café. O senhor partiu cedo de Praga; não deve ter se alimentado bem.

Diante daquela nova conduta, estava claro que Perpétua fazia um jogo duplo. Mas ele não poderia recusar o convite; o que é dito no confessionário, fica preso entre suas paredes. Assim aprendera.

A casa das freiras era modesta. Sentado à mesa, Venceslau foi servido de café.

Ocupando o lado oposto, Perpétua mordiscava uma côdea de pão e fitava o padre de esguelha. Como o silêncio já se ia tornando embaraçoso, ela se pôs a divagar:

— Quantas graças nos concede o sacramento da Confissão! Só poderia ser obra de um Deus sumamente bom e misericordioso. Que grande alívio não sinto agora!

O padre a observava, estarrecido com tamanha desfaçatez.

— E o sacerdote? — ela prosseguiu. — Investido da Pessoa de Nosso Senhor, jamais revela o que lhe é contado. Quem verdadeiramente escuta os pecados não é o padre, é Cristo! Eis a doutrina católica. O ministro deve preferir a morte a violar tão santo sigilo!

Perpétua levantou-se e deambulou pelo recinto, a organizar objetos aqui e ali. Enquanto esticava o lençol da cama de Lugarda, parcialmente ocultada por um biombo, sentenciou:

— E não é bastante que o padre silencie sobre o pecado revelado. Ele também está proibido de agir em função do que escuta em Confissão, mesmo que tal impeça o cometimento de um crime, mesmo que seja para salvar sua própria vida! Não é verdade?

— Sim, Madre. Exatamente — Venceslau bufou, desolado.

— Ah, mas em que desgraça não cai aquele que trai a confiança dos que o procuram no confessionário... Excomunhão! Torna-se imediatamente um membro extirpado do Corpo Místico de Cristo, a Santa Igreja Católica!

Venceslau, por fim, compreendeu o propósito da mulher: ela o queria fora da Igreja, um excomungado, por isso o instava a resgatar Lugarda por meio do segredo de Confissão.

Sentando-se outra vez, Perpétua deitou duas colheres de açúcar em seu café.

— Mas... Mudemos de assunto: Lugarda me disse que vocês são amigos de infância. Que bela coincidência o senhor ter sido escolhido para ajudá-la com mais... proximidade.

Ele tentava evitar os olhos maliciosos com que a outra o fixava.

— Éramos vizinhos, em Praga. Quando eu tinha quinze anos, minha família faliu e fui mandado à casa de uma tia em Roma. Ela me queria padre, e por lá fiquei até a ordenação. Depois de um tempo, mandaram-me de volta à Chéquia.

— Sua família amargou uma falência que foi notícia em toda a Europa. Você acha que conseguirão se restabelecer?

— Ninguém ainda pode dar uma resposta. Os prejuízos foram milionários.

Venceslau se levantou.

— Preciso retornar a Praga, Madre. Ainda tenho de resolver algumas pendências do convento. Fique com Deus.

— Vá, reverendo. Lute pelo futuro da nossa instituição.

Venceslau não pôde deixar de ouvir um tom de mofa naquele pedido, mas assentiu e caminhou para o carro.

Na volta, o desespero aliou-se a frustração. Viera inflamado de desejo: planejava uma noite idílica com Lugarda. Enquanto a

velha ressonasse em seu leito casto de religiosa, os dois se entregariam às delicias de seu amor antigo. Mas a alegria idealizada convertera-se num trágico infortúnio.

As mãos tremiam-lhe ao volante. O sol subia, mais e mais, até chegar ao zênite. Era meio-dia quando Venceslau entrou em Praga.

A tarde transcorreu arrastadamente. Após resolver alguns assuntos burocráticos, o padre se pôs a flanar pelas ruas da velha capital. Mas a vista dos monumentos que orgulhavam o povo tcheco era incapaz de mitigar sua grande aflição. Respirava custosamente; a cabeça, em turbilhão, provocava-lhe vertigens a cada passo. E foi num tal vaguear incerto que chegou à Ponte Carlos.

Dos dois lados, estátuas de bronze sucediam-se gloriosamente. Santos boêmios, que entregaram suas vidas à obra de Deus, eram reverenciados através de artísticas representações. E nenhuma atraía mais o interesse do que a de São João Nepomuceno, localizada no exato ponto de seu martírio.

A história era célebre. Um rei ciumento, desejoso de conhecer o que a esposa contara ao Padre João Nepomuceno em confissão, ordenou que este lho revelasse. Diante da recusa cabal, o heroico sacerdote foi torturado e atirado nas águas do Moldava.

Comovido ao ver sua situação tão bem representada pelo que viveu aquele santo, Venceslau caiu de joelhos e chorou diante da estátua. Era um pecador; pretendia ter relações proibidas com Lugarda. No entanto, fora forte e não rompera o sigilo da Confissão, submetendo o desejo carnal ao dever que a Igreja impõe aos seus ministros. No fundo, orgulhava-se, e aquele brio sustentou a fé vacilante. Então se pôs de pé, decidido a confiar nos planos de Deus.

Quem passa diante da escultura vê, no pedestal, placas onde imagens em relevo retratam a vida de Nepomuceno. Numa delas, é representado um cavaleiro de armadura junto a um cão, que simboliza os suplícios pelos quais o santo passou antes de morrer.

— Belzebu! — Venceslau imediatamente recordou.

Tamanho tinha sido seu desnorteio ao deixar a ermida, que se esquecera do animal. Afligia-se. Com a noite já caindo, decerto o cão passaria fome e frio. Viu-se obrigado a reparar erro, e dentro de uma hora já estava outra vez a caminho do lugar.

Era noite alta quando chegou. A fauna noturna assombrava com pios, estrídulos e uivos distantes. A lua irradiava o seu clarão argentino, do alto do firmamento. Não havia sinal de gente na casa ou na igreja, atrás da qual rolos de névoa flutuavam.

Venceslau se dirigiu à entrada do bosque, para a árvore onde havia prendido o cão. Surpreendeu-se quando examinou a corda e a viu esmigalhada na ponta que se atava à coleira. Belzebu a roera e fugira, concluiu.

O que se seguiu foi um perambular frenético. Venceslau assobiava, chamava o sinistro nome na escuridão, mas tudo era baldado.

Ao mirar o interior do bosque, que parecia engolir as árvores numa garganta de trevas, o padre caiu assombrado. A névoa entre os troncos, com seus movimentos imprevisíveis, configurou-se numa figura de cabeça e chifres, na qual dois olhos pareciam se recortar.

Estivesse instalado em seu gabinete, rir-se-ia da descrição de fenômenos tidos por sobrenaturais, consignados nas páginas dos tratados de demonologia. Porém, diante do bosque, atribuiu aquele prodígio à ação do demônio.

Mas a bruma, curiosamente, recordou-lhe a pele de Lugarda, e os supostos olhos, antes pavorosos, atraíam-no inexplicavelmente. Sua mente engendrava pensamentos através dos quais afirmar-se-ia que Venceslau experimentava o ardor dos beijos da amada, tão reais eles eram. E ainda permaneceria nesse lúbrico mesmerismo, tão mais intenso quanto mais se aproximava a figura satânica, se um brilho repentino não o desviasse do delírio. Logo identificou: era a medalha de São Bento que pendurara à coleira de Belzebu. Apanhou-a e, movido por novos propósitos, recitou a oração milenar: “Crux Sacra Sit Mihi Lux. Non Draco Sit Mihi Dux...”

— Afasta-te, Satanás! — bradou. — É mau o que me ofereces. Bebe tu teu próprio veneno!

O sutilíssimo leitor atribuirá a alguma corrente de ar o sucedido, mas fato é que a figura se desvaneceu assim que Venceslau terminara a oração. Ato contínuo, um ganido fez-se ouvir na mata, e o padre seguiu em direção ao som.

Avançando dezenas de metros em meio aos troncos, alcançou uma gruta. Em seu interior, a imagem desoladora: preso pela coleira na fenda formada por dois blocos de pedra, o pinscher sufocava. O padre imediatamente tentou afastar os blocos, e de fato conseguiu, após algum esforço, mas não a tempo de impedir que o animal tombasse inerte. Às apalpadelas, procurou sinais vitais pelo corpo. Inútil. Belzebu estava morto.

Venceslau não tivera tempo de se afeiçoar ao cão. Lugarda o incumbira de cuidar dele enquanto não obtivesse autorização de levá-lo para o convento. Essa apatia, entretanto, não impediu ao sacerdote desejar que o bicho gozasse o descanso eterno em algum céu dos cachorros.

Ali permaneceu a acarinhar a pelagem negra, mas num gesto de apoiar-se o solo, sentado como estava, o homem sentiu sua mão resvalar em falso, e seu corpo mergulhou de súbito numa câmara subterrânea.

Acontecera que, ao afastar os blocos, Venceslau revelara um fosso que dava acesso à cripta. Não notara de pronto, por conta da escuridão cerrada do bosque, e teve de descobri-lo de maneira dolorosa.

Ao levantar-se, tomou consciência de onde estava ao divisar inscrições pelas paredes — nomes, datas, cruzes. Pôde notá-las porque de um aposento próximo, após a curva do corredor, vinha um clarão que jogava luz sobre onde estava. Seguiu até lá, cautelosamente.

— Eu sabia que você não demoraria, querido. Venha, estava ansiosa por te encontrar.

Na câmara ampla, em cujas paredes tochas ardiam, uma mesa imponente sustinha jarros de prata, cálices plenos de vinho e bandejas com iguarias apreciáveis. Na parede oposta, sob a luz do fogo, Lugarda ocupava um rico cadeirão.

— Como está abatido, Venceslau. Me abrace, venha. Finalmente estaremos juntos, e para sempre.

— Lugarda... O que... O que significa tudo isso? — indagou o padre, após vencer o pasmo.

— Pode ser o nosso lar, às ocultas de toda essa baboseira de convento. Teremos dinheiro, conforto, tudo o que precisamos para nossa felicidade.

— Mas como você conseguiu tudo isso? Eu pensei que você estava presa aqui dentro!

A mulher jogou a cabeça para trás, gargalhando gostosamente. A cabeleira agitava-se no ritmo do riso que escapava por entre os lábios de carmim.

— Isso tudo é uma longa história. Você terá tempo de ouvir. A propósito... — e ela vinha na direção de Venceslau, com ares sedutores — Tenho muitos pecados para dizer ao seu ouvido.

O homem queria retorquir, falar que ela estava louca, que se afundara no pecado, mas o perfume a desprender-se de suas carnes o mantinha mudo, e aqueles protestos de paixão eterna infundiam-lhe ao espírito brasas de desejo.

Em outro canto havia uma cama sobre a qual se acomodava, coberto por lençóis brancos e perfumados, um fofo colchão que convidava ao torpor do sono e aos amplexos do amor.

— Aquela é a nossa cama, querido — apontou. — Vamos nos deitar. Perpétua, traga roupas limpas para Venceslau.

Só então a figura antes oculta na penumbra se revelou. De olhos baixos, Perpétua não disse nada, nem se moveu.

— Está surda, velhota? Faça o que mandei.

A Madre ergueu a cabeça e arrostou a outra com decisão, falando:

— Que Deus ainda tenha misericórdia de sua alma, escrava de Satanás!

— Hum. Pelo visto, a surra que você levou não foi o bastante.

— Mesmo que me mate, jamais renunciarei a Jesus Cristo.

— Sua alma já é propriedade do diabo. Você quis assim. Isso não se apaga.

— Só o que não se apaga é a marca do meu batismo na Santa Igreja Católica. Eu renuncio a Satanás e às suas obras.

Venceslau se impressionou diante de tão convicta profissão de fé. Perpétua, por sua vez, já havia notado que ele vacilava diante das investidas de Lugarda, e disse:

— Padre, não vê como agiu a Providência, trazendo-o aqui sem que violasse o sigilo da Confissão?

— Providência é uma ova! Fui eu que prendi Belzebu naquela gruta — gargalhou Lugarda.

— E aquelas orações tão piedosas que fez na Ponte Carlos, diante do Padroeiro dos Confessores? — a Madre insistiu.

— É, nós fomos informadas de que o Reverendíssimo Padre estava agindo feito tolo diante de um boneco de bronze — disse a outra. — Não seja estúpido, Venceslau! Abandone toda essa besteira e entre para a Organização. Temos banqueiros ao nosso lado. Você será um homem rico; poderá tirar sua família da lama. Basta renunciar à Igreja.

— Padre — Perpétua retomou —, o senhor teve todos os motivos para violar o sigilo da Confissão, mas não o fez. Não é um excomungado, apesar do meu maldito propósito de torná-lo um, hoje cedo.

— Cale a boca, imbecil! — gritou Lugarda. — Ele só pôde entrar na cripta porque eu planejei tudo. Eu!

— E se está aqui é porque há uma alma arrependida que deseja voltar para Deus. Padre, preciso dos sacramentos, vamos embora.

— Querido, não dê ouvidos a essa velha. Já está caduca. Você fica comigo?

Perpétua sorriu ao escutar a resposta do padre.

— Não renunciarei a Cristo. Sou Católico Apostólico Romano.

— Malditos! — Lugarda ficou furiosa. — Depois de tudo o que eu fiz?! Não, não sairão daqui vivos. Irão daqui para o inferno. Você, velhota, porque é uma avara incorrigível. E você, padreco, por ser luxurioso como um sátiro.

E apanhou uma tocha, gargalhando convulsivamente, enquanto incendiava lençóis, cortinados e roupas. Não demorou para que as chamas se alastrassem pelos móveis. Perpétua e Venceslau se viram rodeados de fogo; Lugarda dançava eufórica, por meio de contorções macabras.

— Padre! — chamou Perpétua. A saída que dá para sacristia ainda está livre. Vamos!

O homem correu para a direção apontada, e os dois alcançaram um corredor, o corredor mergulhado em trevas que dava na porta gradeada. Mas ele não contava com o fato de que as paredes, cobertas por tapeçarias, serviriam um substancioso repasto às chamas.

— A chave, padre. Estique o braço através das grades e pegue!

Seja por não ter os braços longos o bastante, seja pelo açodamento, Venceslau tocou a chave com a ponta dos dedos e ela caiu. O homem deitou-se, estendeu-se o mais que pôde, mas foi em vão. Ao mesmo tempo, as chamas já lambiam a tapeçaria e se aproximavam dos dois.

O sacerdote desesperou-se e esmurrou as grades, proferindo impropérios e blasfêmias.

— Então foi para isso que deixei Lugarda? Para morrer carboniza...

Ele não concluiu. Do interior da cripta ardente, ouviram-se os últimos berros da infeliz.

— Não desesperemos. — Perpétua segurava um choro aflito. — Vamos rezar pela salvação de nossas almas.

Venceslau bufou com impaciência. A Madre, por sua vez, persignou-se. E tão logo a penitente mulher concluíra o gesto, ouviu-se um som familiar: era um latido. Belzebu! O pinscher desceu os degraus à toda brida, empurrando involuntariamente a chave ao parar diante da porta.

Quando amanheceu, policiais saíram da cripta carregando, no saco preto, um corpo carbonizado. Mas o que todos se perguntavam era como o cão entrara na igreja, se estava trancada.

O interior do templo fora destruído por completo; somente resistiram os seculares blocos de pedra. E parados na lateral direita da ermida, Venceslau e Perpétua se convenceram de que aquele buraco na parede trazia boa sorte.

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 23/05/2024
Reeditado em 23/05/2024
Código do texto: T8069668
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