TUDO É INEVITÁVEL - CLTS 27

Leonel sofreu a emboscada no topo da torre da antiga prefeitura, entre as ruas Max Colin e Dr. João Colin, no centro da maior cidade catarinense. Seu pelotão dispersou-se às 17h e 11 minutos e não conseguiu mais se reagrupar para responder aos ataques do inimigo. Uma bomba de fabricação caseira arruinou a barricada que os protegiam dos contra ataques e os possibilitavam recarregarem suas armas.

Ele foi o primeiro líder insurgente a ser capturado pelo governo recém instaurado e auto proclamado. Suas diretrizes eram muito claras, para todos os seus subordinados e ele da mesma forma as acataria. O suicídio, ao cair nas mãos dos seus algozes, não era uma simples opção, mas uma questão de segurança nacional.

— Não tire os olhos dele nem por um segundo. Está ouvindo, Jonas? Precisamos agir como um tribunal de exceção. Estamos oficialmente em guerra e se não tirarmos dele tudo o que ele sabe, abriremos mão de uma vantagem única e o futuro da guerra e consequentemente da humanidade, estará perdido para sempre!

Cosme era um general linha dura. Tinha ciência do seu importante papel frente àqueles acontecimentos e do quanto precisava dominar a situação, tanto no seu território, quanto no do inimigo.

— General. As notícias dão conta que a resistência não poupará esforços para obstruir qualquer tentativa que vier por parte do Continente Imperial em impedir que o prisioneiro se extermine. Se não usarmos tudo o que temos, não conseguiremos impedi-los.

— E existem duas grandes operações em andamento. A retomada do Golfo Pérsico e a conquista do território Franco-germânico. Precisamos, subtenente, de uma boa estratégia para vencê-los. Não são números que vencem batalhas. Não é o contingente, mas sim a inteligência. Você sabe disso, soldado. Vamos, mexa-se! Traga-me uma solução, imediatamente!

— Sim, senhor! Nos reuniremos em quinze minutos no QG para deliberarmos as questões!

A sala exígua e o ar pesado e pestilento, causavam dor de cabeça em Cosme. Serviu-se de café do bule e deu um gole, mas o gosto era tão intragável que logo cuspiu tudo fora e jogou a xícara longe. Aquele cinza sujo das paredes, os móveis de madeira, os utensílios e objetos grosseiros, de ferro fundido, latão ou cobre. Tudo tão primitivo. Esse é o futuro? Pensava consigo mesmo. Era assim que nossos tataravós viviam ou antes deles ainda. Tinha certeza que bem antes. Mas não queria mais pensar sobre isso. Abstrações desviavam do verdadeiro foco. A guerra.

— Merda! Isso foi um tiro? Pelotão? Formar. Formar agora! Cadê vocês?

— Ataque aéreo, senhor. Fomos surpreendidos. Nossos radares não mapearam a esquadra rival.

— Avise a base, agora, soldado. Peça para mandarem tudo o que temos.

Jonas agiu rapidamente para obedecer as ordens e corria o quanto podia, protegendo-se e desviando-se dos tiros das metralhadoras dos aviões. Cosme entrou em um velho galpão abandonado para se proteger e tentar achar a rota de túneis subterrâneos que penetravam a cidade como veias irrompendo a terra, feito filamentos de fungos raivosos e destrutivos. Era um labirinto escuro e fedido. Com destroços e desmoronamentos por toda a parte. Pedaços de corpos humanos apodrecidos e frescos também. O General pensou por um momento que levar um tiro de metralhadora seria melhor que aquilo. A claustrofobia, o mal cheiro insuportável. Decomposição, xixi e merda, tudo misturado, disse em voz alta, enquanto preparava-se para confeccionar uma tocha, antes de despencar no chão, como um saco, que está mais vazio que cheio.

O fenômeno era milagroso. Uma visão fantasticamente absurda. Um homem, parado, em suspensão, uns 5 metros do chão, de quem irradiavam-se luzes amarelo-esverdeadas. Os sons e a intensidade do brilho eram insuportáveis. Fechava os olhos e os ouvidos, pedindo clemência, como um condenado do inferno. No meio do turbilhão ele gritava, lunático, Leonel, Leonel? É você, Leonel? Enquanto o efeito estroboscópico se intensificava, até desaparecer do nada, da forma que surgiu.

Nesse cenário de caos e horror, a cela parecia um lugar confortável e Leonel procurava descansar, enquanto concatenava o seu plano lúgubre. Não que tivesse muitas opções além do enforcamento. O que não era uma forma muito fácil para se alcançar o objetivo pretendido. Com sorte o pobre diabo quebraria o pescoço antes de penosamente sentir seus pulmões se espremerem ou se sufocar com o próprio sangue. Esses pensamentos retardavam a sua ação. Até que as paredes rugosas e duras da cela pareceram confortáveis, como um ninho aconchegante para o filhote. Ele era o filhote. Sem conhecer nada do mundo. Com medo de sair. Sentado no chão, abraçou os joelhos e chorava copiosamente, balançando-se como um louco.

Queria gritar, mas não tinha forças. Tinha de ser o homem com quem todos contavam. O líder. Aquele que não vacila. Mas os momentos finais provaram-se tão difíceis. Até aquele momento pelo menos, mas algo aconteceu. Lentamente.

Começou como um barulho. Arranhões raspando as pedras. Eram incisivos, bruscos, como se procedessem de uma fonte poderosa.

Mas não eram tão longos no começo. Interrompidos por hiatos, que passaram a ser preenchidos com as batidas do coração de Leonel. Toda a cela ecoava os golpes e os arranhões. Que cresceram e viraram pancadas. Poderiam ser feitas com alguma ferramenta, ele não sabia. Uma picareta talvez? Era provável.

Levantou-se e quando parecia que tudo desmoronaria, fendas se formaram na parede. E dessas fendas uma luz amarela e brilhante, como o próprio sol transpassava-se. E uma porta apareceu. Erguendo-se dos escombros ele viu alguém estranhamente igual a ele, vestido como ele. Era ele. O espanto o fez cair sentado. E aquele homem, o seu sósia, carregava no colo um cadáver. O corpo sem vida foi cuidadosamente depositado sobre o chão. Uma corda amarrada no pescoço. Também era ele, morto. Ele no futuro. Porque na realidade isso ainda não tinha acontecido. Ou tinha? Confusão. Colapso mental. Leonel desmaiou.

Jonas era dedicado. O jovem negro sabia que deveria se esforçar mais do que qualquer outro do pelotão por causa do racismo impregnado como uma toxina mortífera nas mentes da maioria deles. Não havia esperança. O mundo não se tornou um lugar melhor, pelo contrário. A utopia de uma irmandade boa e justa estava longe de ser a realidade daqueles dias difíceis. As câmeras. Tinha de olhar. Não confiava naqueles incompetentes do Ministério das Comunicações para observarem. Ele fora testemunha dos seus descuidos, das distrações, da incompetência. Mas então o alarme soou. Ele correu para antigo prédio Deville, onde agora fortificava-se aquela prisão. Como uma coroa de concreto bruto feita às pressas. Toda a cidade erguia-se sobre si mesma com fortalezas e muros. Ferros de construção, correntes, Zinco. Um emaranhado esquizofrênico e feio, como trapos remendados. Mas que no fim, provavam-se mais fortes e intransponíveis do que as próprias antigas construções.

O alarme foi dado por alguém do Ministério das Comunicações. Jonas correu para lá e quando chegou, havia uma turba incontrolável circundando a sala de monitoramento e a aglomeração ia até quase o final do corredor. Mas o soldado ia abrindo passagem no meio da multidão, mostrando a insígnia do Governo Imperial e todos prontamente obedeciam. Ninguém queria correr o risco de se indispor com o Governo.

— O que foi que aconteceu aqui?

— Você é um oficial superior? Apresente a sua patente!

— Eu sou subtenente da divisão Sul-Sudeste, represento a segunda província.

— Tudo bem, soldado. Seu comandante, o General Cosme está ali. Foi como o encontramos. Em estado catatônico. Ele não diz coisa com coisa. Não sabemos o que o deixou assim.

— Como pode? Como aconteceu? Nos falamos há menos de uma hora. Pode ter à ver com o prisioneiro? Essa conspiração que está sendo tramada?

Jonas não compreendia. Cosme falava sozinho, sentado numa cadeira de palha, virado para a parede. Um homem tão saudável. Enfático em suas opiniões. Brutal, às vezes. Agora assim. Mas o sujeito mal-educado o tirou dessas distrações dos seus pensamentos.

— Veja isso, subtenente. Estou aqui há trinta minutos vendo essas imagens repetidamente e ainda não entendo. Aqui, esse momento em que a imagem para, depois volta e está feito. Como acha que Leonel possa ter interferido nas câmeras para que não fosse registrado o seu suicídio? Tem o som, — Operador? Volte antes do momento do corte e aumente o som para nós, por favor, — pediu o homem.

Eles assistiram. Aproximaram-se mais membros do exército e do Governo. Ministros e Senadores. Era possível se ouvir um ruído áspero e seco que ia se tornando mais alto e estrondoso. Depois do que se percebia um clarão em uma fissura que acabara de se formar e então a câmera cortava para outro momento mais a frente. O timecode apontava exatamente para 15min e 27seg à frente e Leonel caído no chão, com a corda que o enforcou arrebentada e o total silêncio. Estava tudo acabado agora. Jonas chutou uma pedrinha do chão, com as mãos nos bolsos. Procurava respostas para esse mistério.

Na cela, outra cela, Leonel, desorientado, não sabia o que estava acontecendo, estavam os três. Ele, o seu raptor e o sujeito que já estava ocupando o local quando eles para ali foram tele-transportados. O sujeito, estranhamente, não se surpreendeu quando os outros, iguais a ele, apareceram.

— Ótimo, gênio. Você conseguiu dessa vez. E o que muda? Já fizemos isso duzentas vezes, não fez diferença alguma. Agora fará?

— Precisávamos entrar na terra primordial. Onde tudo se originou. Se pegássemos esse Leonel, tudo estaria concluído. Foi o que fizemos agora. Você não percebe, L-116? Está feito.

— O que está acontecendo? Porque você o chamou assim? E que história é essa? Quero respostas.

— Não é óbvio, L-001? Ele é você, somos nós, na Terra 116. Eu sou da Terra 009, por isso L-009. E precisamos evitar que uma catástrofe de proporções cataclísmicas aconteça. Porque é o que acontece quando o L-001, no caso você, se mata. E essa foi a primeira vez depois de umas centenas de tentativas fracassadas, que obtivemos sucesso. Ainda não sabemos o que acontece, mas toda a nossa esperança está neste ato. Entende agora?

— Que absurdo. Tudo isso é real mesmo? Eu os via cochichando. Pessoas do governo, do exército. E tinham os boatos. Nunca acreditei neles. Pensava que não passavam de teoria tola de conspiração. Mas é verdade. E o que temos que fazer para saber se deu certo?

— Esperar. Infelizmente estamos presos. Não me pergunte agora como conseguimos viajar no tempo ou entre os mundos, mas não nos é possível aparecer em outro lugar que não seja essa cela. Para onde quer que formos, é sempre aqui em alguma terra possível, que iremos parar. Na prisão.

L-116, o prisioneiro original daquele mundo, fatigado, nos limites da sua força, levantou-se com os braços caídos, rentes ao corpo e foi até o canto da cela. Começou a bater forte com a cabeça na parede. E quando L-009 tentou impedi-lo já era tarde demais. Foram cinco golpes certeiros o bastante para tirar-lhe a vida. Seu escalpo desprendeu-se junto com uma boa tira de pele e carne. Seu olho esquerdo totalmente esfacelado e alguns de seus dentes caídos no chão, numa poça de sangue e alguns filamentos de músculos do seu queixo e dos lábios.

— Merda, merda, merda! Seu grandessíssimo filho da puta. O que você fez? Pôs tudo a perder agora. O que faremos? O que faremos?

Leonel, o verdadeiro, caiu ajoelhado com as mãos espalmadas e a feição da descrença. L-009, chorava abraçado com a sua outra versão. Ele não acreditava que estando tão perto, mais do que nunca antes, algo assim, tão inesperado, tivesse acontecido.

Sem nada que pudesse ser feito, além de continuar viajando pelos mundos, até que encontrasse uma versão sua com conhecimento suficiente para solucionar todo esse paradoxo temporal, L-009 devolveu o Leonel original ao seu mundo, de volta à sua cela. Mesmo que isso pudesse gerar uma desordem descomunal e sem precedentes. O pior já estava feito. Era o que pensava.

Os dias transcorriam sem novidades. Os pensamentos nocivos que rodeiam nossa mente na prisão podem ser mais sufocantes do que a morte, o enforcamento. Manter a mente saudável era o mais difícil. E ele sabia que quanto mais tempo passasse ali, mais vulnerável ficava e menos tempo ele tinha, antes que o torturassem para que ele falasse. E o dia finalmente chegou. Pediram para que se despisse, antes que abrissem a porta. Depois ele foi arremessado com tanta violência contra a parede oposta que sentiu uma dor aguda, como se tivesse quebrado algumas costelas. O jato de água da mangueira de bombeiro era tão potente, que pareciam filetes cortantes de vidro penetrando sua carne. Secaram-lhe, jogaram pó para piolhos e vestiram-lhe um novo macacão. Geralmente faziam isso com os que entravam. Mas também com aqueles que entrariam no inferno. Uma ala da prisão, tão fétida e pestilenta, que podería-se morrer de tantas doenças ali, que não dava nem para mensurar.

Os instrumentos de tortura não eram limpos, nem esterelizados, o sangue seco de tantos torturados, causaram horror e nausea em Leonel. O torturador era um velho vesgo de óculos fundo-de-garrafa, parecendo um cientista nazista detestável. Sorriu para ele antes de colocar as luvas de latex.

— Não querria se matarr, seu merrdinha? Agora você vai implorarr pela morrte. Você vai. Pode terr cerrteza disso.

Quando a tortura começou, arrancaram as suas unhas com uma alicate, uma a uma, devagar, para que ele sentisse a dor de forma gradual, desde a raíz, até que ficasse sem forças nem para gritar. Só escorriam lágrimas caladas. Mesmo mediante tanta dor ele não reagia. Leonel superou seu próprio medo da dor, da morte. Ele resistia.

Depois foi afogamento. Seu rosto estava ficando azul. Cada vez que voltava a superfície ele parecia mais com um boneco de pano que o velho nazista controlava com as mãos. Queimaram suas costas com ferro em brasa. O fizeram deitar sobre cacos de vidro enquanto deixavam o seu corpo (besuntado de óleo, misturado à capim) ser pisoteado por uma capivara faminta. Os dentes afiados do animal beliscavam, mordiam, perfuravam. Leonel quase não estava mais aguentando. Começou a gritar com as forças que ainda tinha: “Me matem! Por favor me matem! Tenham piedade, eu quero morrer!”

O cientista, chamava-se Hildegart, ordenou que a tortura fosse interrompida e disse com satisfação:

— Eu sabia que esse momento chegarria. Soltem as amarras dos braços. Ele vai dizerr alguma coisa. Quero ouvirr.

Um dos homens desamarrou Leonel, o que permitiu que ele se erguesse e se sentasse. O cientista aproximou-se para ouvir-lhe a confissão e ele solenemente cuspiu na cara do homem, puxando uma posta de catarro bem grossa e grudenta.

Assim ele voltou para a cela, até que estivesse disposto a colaborar. Muita energia havia sido gasta ali e não tinha só ele de prisioneiro para se torturar. Precisaram fazer uma pausa.

Aquelas paredes. Novamente se pegava encarando-as. Dessa vez não pareciam confortáveis. Eram degradantes. O confinavam. O diminuíam. O espremiam. De repente ele voltou a ouvir aquele som. Aquele do começo. Mas diferente. Não aumentou de intensidade, nem era a sua amplitude como o anterior. Era baixo, quase na altura do chão. Uns quinze centímetros do chão. E se fez um buraco e uma pedrinha arredondada que o preenchia antes caiu no chão. Uma voz fraca se ouvia. Como um sussuro. Depois foi tomando corpo, até poder ser compreendida.

— Leonel, eu voltei. L-009. Eu consegui. Consegui.

— Como conseguiu estar em outro lugar que não essa cela? Você me disse que isso não era possível.

— Sim. Era o que eu pensava. Mas eu estava enganado. Sempre estive enganado sobre muitas coisas. Inclusive sobre você.

— Como assim? Do que está falando?

— Não é você que não deve morrer. Não é o Leonel da primeira terra. É o Leonel da última. Entende? Se ele morrer será o fim. Parece tão óbvio agora.

— Como descobriu?

— Foi você. Foi você. Através dos seus sonhos. Eu desvendei tudo ao navegar os seus sonhos. Sei que você é o único de nós, no futuro, que será capaz de resolver esse quebra-cabeças tão complicado. Fique atento. Proteja-se. Salve a sua vida. Você será importante. Eu estraguei tudo agora. Eles descobriram. Logo me matarão. E vão torturá-lo para que você fale. Você precisa fugir para se tornar o que você tem que se tornar. Salve-nos. Só você pode agora.

TEMA: PRISÃO