Caminhando no escuro

Pancadas na porta o despertaram quando estava quase adormecido. Sentou-se na cama e reuniu os últimos vestígios de ânimo e pôs-se a buscar com os pés os chinelos que por ali deixara.

“Quem, diabos, vem me acordar em meio a uma tempestade?”.

Com uma vela em punho, abriu a porta.

Retornou rapidamente com um passo para trás, ao constatar que não havia ninguém, ficou surpreso ao descobrir pegadas de lama que vinham desde a entrada da fachada até a soleira da porta, sem sinais de retorno.

Rapidamente fechou as trancas da porta e verificou as janelas. Sim, todas estavam devidamente fechadas. Através de um estreito vão em uma das janelas de madeira envelhecida, pôde distinguir as silhuetas dos postes na rua, cujos lampiões há muito haviam se apagado pelo vento forte e a chuva que caía abundantemente, formando poças enormes nas calçadas de pedra.

A chuva pesada sacudia os galhos da árvore que seu finado pai plantou décadas antes de partir, fazendo com que a mesma arranhasse a janela de forma desagradável. Por um momento, um medo infantil invadiu seus pensamentos quando se pôs a imaginar os galhos como portadores de vozes lamuriantes a implorar passagem. Afastou essas bobagens ao olhar mais uma vez para a densa escuridão da rua, quebrada apenas pelo reflexo do luar e se perguntou se acaso o mundo estaria parado naquela noite.

Apoiou a vela acesa dentro de um prato, que deixou em uma pequena mesa ao lado de sua cama confortável. E de lá, ficou a observar a chama bruxuleante e as tênues sombras projetadas pela pouca mobília que possuía.

Sem uma amante naquela noite, estava solitário e insone. Em uma tentativa de amenizar o silêncio, ficou a conversar sozinho e em alta voz, mas sempre com o receio de distinguir alguma resposta entre os gemidos do vento.

Imaginou seus amigos poetas, ébrios e adormecidos sobre uma mesa de taberna após mais uma noite de boemia. Ficou desanimado ao pensar na própria situação e com esses pensamentos afundou no colchão, sem saber que ele também estava em uma festa, não como convidado, mas como anfitrião.

Olhos ordinários não são capazes de enxergar os convidados que ali estiveram, posicionados em volta daquela cama como se estivessem em uma mesa, esperando apenas o momento para servir seus pratos.

O cobertor amarelado, que antes o aquecia, tornou-se incômodo. O colchão macio tornou-se desconfortável e em seu interior, ele sentiu crescer o ímpeto de saltar dali, abrir todas as portas e se fundir à escuridão na rua, mas ao mesmo tempo em que queria sair, ainda queria permanecer onde estava.

Rosto sereno e respiração regular. Em poucos minutos adormeceu e sonhou com o seu simples quarto, levemente distorcido pelos delírios oníricos. Ao lado esquerdo de sua cama, ele viu um homem tão velho quanto seu avô. Suas mãos manchadas e enrugadas se apoiavam em um cajado tosco, em conseqüência de suas costas encurvadas sobre as quais caiam cabelos longos e emaranhados que oscilavam em uma cor entre o branco e o amarelo. O pouco que pôde distinguir do rosto na escuridão foram seus olhos profundos e abatidos, uma barba mal aparada e ausência de sua boca. Conforme o homem movimentava seus braços, o vento soprava com diferentes vozes e de diferentes maneiras, mas a confusão do sonho não o permitia distinguir os sons. Ao lado direito da cama, uma mulher dançava sem par a estranha melodia que o vento agora declamava. Dançava como se fosse uma rainha no salão de seu palácio, trajando um longo vestido vermelho que destoava da sua maquiagem borrada. Ela, ao contrário do que se pensa, é inatingível à falta de luminosidade e nenhuma sombra tem permissão para repousar sobre sua imagem, que têm brilho próprio, como uma jóia que possui apenas uma pedra preciosa.

O sonho não o perturbava, apenas um estranho vulto que se originava por cima do dossel de seu leito, reproduzindo sua silhueta na parede oposta. Imagens surreais e pensamentos desconexos ocupavam sua mente, girando como em um redemoinho e descendo por um funil, o conduzindo para a inconsciência.

O vulto movimentava-se de forma fluída, deslizava pela parede como uma serpente. Desceu até o colchão e repousando por cima do pedaço de carne adormecida e verbalizou com a boca humana: “Amigo poeta... procurou-me durante anos. Quando se entregava à suas amantes ou degustava sua dose de absinto era a mim que desejava e não podia enxergar que sempre fui sua companheira. Estive sempre contigo, bastava olhar de relance para trás e ali estaria eu, sussurrando-lhe aos ouvidos cânticos em minha homenagem. Vamos para a nossa última travessura agora”.

O pedaço de carne adormecida pôs-se de pé e abriu as portas daquele quarto que o pertenceu. Caminhou em direção ao escuro.

A chuva não mais caía, deixando somente vestígios de sua passagem ao encher os pulmões com um ar ligeiramente frio. Chapinhando os pés descalços nas poças da áspera calçada de pedra, caminhou sem rumo.

Não muito distante, um mendigo com os pés cobertos de lama espreitava atrás de um muro, no qual usava uma faca para fazer alguns riscos. Avistou o proprietário da residência que pretendia invadir e estranhou o fato de um homem estar caminhando tão tarde trajando apenas roupas de dormir, mas não poderia deixar passar aquela oportunidade dourada. Permaneceu onde estava ao notar que o homem caminhava na direção de onde observava. Segurou o braço e o agarrou pelas costas, puxando o cabelo para trás. A lâmina afiada cortou suavemente a carne macia, maculando de sangue a camisola branca. Notou a ausência de resistência de sua vítima e percebeu que agiu covardemente em vão, quando não ofereceu chances de defesa. Mas agora era tarde e ali o deixou agonizando ao relento, sendo acariciado pelas folhas que caíam da árvore de seu falecido pai.

Foi encontrado assim que o sol nasceu. Rostos horrorizados se deleitavam em sua tragédia, transeuntes viravam o rosto ao vislumbrar o rosto estático e inexpressivo do corpo que pertencera ao poeta e que agora repousava retorcido sobre um leito de sangue. Uma multidão logo se formou em torno dele para assistir seu último espetáculo. Não trazia um soneto para declamar, mas sim um grito surdo em sua boca escancarada.

Os guardas logo chegaram e dissiparam a turba e ainda puderam ouvir algumas senhoras de famílias de bem comentarem entre si: “Ainda bem que está morto, homem indecente! Esses poetas sujos e ébrios vivem de perturbar a ordem e ofender os bons costumes em companhia das suas meretrizes. Que o diabo o tenha”.