O Coração de Julieta

Ao longo de todos esses anos vi e vivi muitas coisas porém nenhuma se compara aos acontecimentos daquele dia.

Eu preciso da ajuda deste diário para relembrar certos fatos, mas a morte de minha amada me corrói a sanidade pouco a pouco e a cada vez que me olho no espelho, menos pareço com quem um dia eu fui.

As linhas que se seguem não devem ser lidas por ninguém mais além de mim. Logicamente não faz sentido, pois quando se escreve algo é para que seja lido por outrem, mas preciso apenas uma forma de extravazar meus pensamentos quando eles não podem ser divididos em respeito à memória de minha Julieta.

Nos conhecemos bastante jovens, pois nossas famílas eram amigas e não tardou para que meu pai arranjasse nosso noivado. Julieta não se sentia intimidada a demonstar seu descontentamento, assim como sempre me mostrei indiferente pois meu orgulho estava acima de um pequeno sentimento. Aos poucos encarei o noivado de forma diferente e me sentia mal ao ver que seus sentimentos em relação a mim não tinham mudado.

Um dia, fui à cidade comprar um presente para ela. Enquanto olhava a vidraça de uma loja, um homem parou ao meu lado, como se também estivesse escolhendo algo. De repente olhou para mim e disse:

- Meu senhor, realmente ama sua noiva?

- No que isso te diz respeito?

- E realmente não deve ser difícil amá-la...

- Onde quer chegar?

- Caso me dê 3 moedas de ouro poderei contar tudo o quê sei.

Fiz o que ele disse, que prosseguiu

- O empregado de uma residência ao lado da sua está apaixonado por sua noiva e eles se encontram a cada três dias, perto da colina. A propósito...provavelmente amanhã eles se encontrarão.

- Você está mentindo.

- Não acredita em mim? Então vá ao tal local amanhã e você verá.

Mesmo depois de descoberto o romance de minha noiva com um empregado, ainda assim comprei o presente. Entrei na joalheria e escolhi a mais cara... um anel de ouro com diamantes.

Voltei para a casa de meu pai completamente confuso, sem saber em que pensar. Cheguei a dizer para mim mesmo "O que um empregado tem que eu não tenho? Sou rico, jovem e tenho boa aparência! Porque não eu?"

Como sabia que se encontrariam no dia seguinte, mandei um criado de confiança sondar a casa vizinha o dia inteiro e apenas um dos empregados saiu e obviamente foi devidamente seguido. Ele foi para a colina. Sabendo de quem se tratava, mais uma vez mandei meu criado em uma missão, mas dessa vez seria a de descobrir algumas informações. Ele havia trabalhado na residência dos pais de Julieta antes de ir embora sem explicações. Logo concluí que a saída se deu para que não desconfiassem da relação deles. Mas seria mais que suspeito os dois estarem fora sempre no mesmo horário.

Não consegui dormir durante duas noites seguidas.

Antes do dia amanhecer, levantei sem ser visto. Coloquei o anel que havia comprado em meu bolso e saí pela janela. Fui para a colina, descobri um local de onde poderia observar sem ser visto e ali aguardei. Algumas horas depois, não sei ao certo quanto tempo passou, apareceu um rapaz e ficou ao lado de uma árvore. Logo chegou aquela mulher sem sua criada de companhia.

Ela sorria para ele de uma forma que nunca havia sorrido para mim. Não tenho lembranças de jamais ter sentido um ódio tão profundo quanto naquele momento. Um turbilhão de sentimentos e pensamentos ruins tomaram conta de mim. Tirei meu punhal e caminhei em direção a eles, que não perceberam minha aproximação, e os golpeei várias e várias vezes... não entrarei em mais detalhes sobre esse momento doloroso.

Logo após me senti incrédulo pois não acreditava que eu estava de frente para dois cadáveres que eu mesmo... como pude fazer isso?

Escondi os dois em meio a vegetação e voltei para casa, precisava pegar uma carroça e alguns lençóis.

Enrolei os corpos com os cobertores que consegui encontrar e os levei para bem longe, passei quase um dia inteiro em cima daquela carroça até chegar a uma fazenda abandonada onde atrei o cadáver do maldito em um poço e depois me detive a observar pela última vez o rosto que pertenceu à ela. Coloquei em seu dedo o anel que comprei, peguei novamente o punhal e fiz uma incisão em seu peito, retirei seu coração. Deixei seu corpo em um rio e a correnteza o levou e nunca foi encontrado.

O bispo me disse que Deus a chamou para transformá-la em um anjo do céu. Uma grande mentira cruel... como eu gostaria que fosse verdade... ela não se transformou em anjo. Ela está morta e eu mesmo a matei.

Mas agora seu coração está em uma caixa embaixo do piso e minha cama está logo acima, onde eu posso guardá-lo, posso tomar conta e ter a certeza de que será só meu e sempre estará ali. Agora tenho o que sempre sonhei: o coração de Julieta.