VV - BURN AFTER READ - CLTS27
— Muuuuuugh!
O meteorito precipitou-se sobre o celeiro, perfurando a cobertura de telhas, depois o feno estocado e o piso de madeira do mezanino. Finalmente, furou o rabo da Mimosa antes de se enfiar na terra a pouco mais de quatro centímetros de profundidade. O mugido do animal despertou John Clayton, que caçava uma raposa há dias. O homem deu um pulo da cama disposto a eliminar o animal que vinha atacando sua criação.
— Corre, Ferd! É a mardita! Agora nóis pega ela! — disse ele ajeitando as calças de pijama antes de retirar a espingarda da parede.
— Tôino pai.
Ferdinand estava sonhando quando o pai esmurrou a porta do quarto para despertá-lo. O estrondo da prancha de madeira sem maçaneta batendo na parede, foi alto o suficiente para derrubá-lo da cama.
A correria de nada adiantou. Não havia raposa. O celeiro não era o alvo do pequeno predador. Ao entrarem, a vaca batia a pata no chão e bufava incomodada. As lâmpadas do teto não forneciam iluminação suficiente e a lamparina de mão não ajudavam muito também.
— Si num fô cobra, deve di cê iscorpião. Ranca ela e as otra daí. Põe dotro lado. Vô oiá o feno. Os fiadaputa deviditá moitado aí.
— Ara Pai! Dexa pámanhã, sô. Deve di tê esmagado o bicho.
— Sas bosta pocria muleque! Vão agora — ordenou o pai erguendo a voz. Agora Ferdinand!
O garoto não contestou. Não era aconselhável fazer isso quando o tom subia. E muito menos quando o pai dizia seu nome completo. Removeu os animais do cercado e só então notou o rabo ensanguentado da Mimosa.
— Óiqui pai. Ispia. Purisso berrô.
— Osh! Qui praga é essa, agora?
John Clayton apreciou o machucado sob a luminosidade da lamparina.
— Furô o trem, sô! Avimaria — seus olhos percorreram o espaço onde a vaca se deitava para dormir.
Passou os olhos sobre o feno no chão. Viu o feno chamuscado e a pedrinha brilhante do tamanho de um caroço de azeitona, num círculo escavado no meio da terra seca. Recolheu-a na palma da mão e mostrou-a ao filho.
— Será possive? Dondéqui veio isso? — perguntou olhando para o alto.
— Será qui du céu? Sei lá, pai? — respondeu o garoto, admirado com o brilho metálico.
Recebeu a lamparina e não registrou como importante o fato dele limpar o suor da testa, antes de capturar o cristal entre os dedos indicador e polegar da mão esquerda. A pedra quebrou-se naquele aperto delicado, tão logo entrou em contato com a umidade. Partiu-se ao meio e um sopro diminuto e branco de gás escapou e espalhou-se diante dos olhos de ambos.
— O trem é oco, Oiá Ferd.
Dia Zero
Serafim era um Appallosa malhado de pernas grossas e crina longa. Todos os dias puxava a pequena carroça entre o Rancho Stonewald e Lovington. A carga era o leite produzido pelas vacas e o destino, a queijaria dos Robinson. A tarefa só não se repetia aos domingos, quando trazia a família de Ferdinand para a igreja.
Cecilia, a filha de Henry Robinson, era apaixonada pelo cavalo. Guardava sempre uma maçã ou uma cenoura para seu “amigo”. Adorava interagir com ele e escovar o pescoço com os dedos, enquanto o pai e Ferdinand cuidavam do leite.
Naquele amanhecer, Serafim invadiu as ruas de Lovington sem seu condutor. Como tinha o caminho guardado na memória, conduziu a carroça até a rua detrás da queijaria, para ganhar o seu “lanche”. Henry achou aquilo estranho e refez o caminho até o portal de entrada da cidade, buscando o jovem Stonewald. “Pode ter parado em algum outro lugar” — pensou. O Sol surgia já na altura dos telhados e o relógio ainda não marcava as sete. O comércio estaria todo fechado, mas ele decidiu apostar na curiosidade do moço.
Ao chegar até o limite da área urbana, viu-o a uns oitocentos metros de distância sentado no chão de terra batida da estrada. Não soube o que pensar de imediato. Apertou o passo até o alcançar. Imaginou no caminho, a possibilidade de o garoto ter caído da carroça e estar acabando de descobrir isso, ainda zonzo pelo tombo.
Ferdinand estava sentado no leito da estrada e seu estado era deplorável. Seu nariz estava muito vermelho. A secreção escorria descontrolada sobre a boca e o queixo. Molhara a gola e as mangas da camisa ao se limpar. O desespero com a dificuldade de “puxar” o ar para os pulmões era evidente. Dedos azulados e manchas avermelhadas pela pele. Um inchaço sob os olhos. Henry não pensou duas vezes: colocou o garoto nos braços, e correu como pode, de volta para a cidade, gritando por socorro enquanto rumava para o hospital.
No Rancho Stonewald, o pai estava na mesma situação, prostrado num canto do celeiro, sem forças para gritar por socorro. Margareth, sua esposa e a menina Bianca, lutavam para controlar uma crise de espirros sucessivos. Os animais pareciam nada sentir, apesar de estarem agitados além do normal. Pressentiam o mal rondando seus cuidadores. Ninguém aventaria a possibilidade de medir-lhes a temperatura para verificar, por acaso, se o problema nos humanos também os afetaria.
Meia hora depois, Henry Robinson e Bonnie — uma égua de sua propriedade — entravam no rancho conduzindo Serafim e a carroça de Ferdinand. Diante daquela situação, embarcou os membros da família na carroça e retornou à cidade rapidamente. As pessoas que tiveram contato com Ferdinand no hospital, Henry, sua filha Cecilia, sua esposa Amélia e outros seis cidadãos, apresentavam os mesmos sintomas ali pelas nove da manhã.
Irritação na mucosa nasal, espirros, falta de ar e febre alta. O Doutor Osborne, ao ver o número de pacientes se multiplicar, ligou um alerta. Conhecia os problemas enfrentados pelo pai na Filadélfia, quarenta anos antes. A Gripe Espanhola dizimou milhões de vidas americanas. Alertou as autoridades do Centro de Controle de Doenças — o chamado CDC — em Washington, informando os sintomas e suas estimativas relativas à infecção, contágio e disseminação do vírus.
O prefeito de Lovington prontificou-se em ajudar e regateou a respeito de isolar a cidade. A chefatura de polícia atuou nesse sentido, mas seis pessoas haviam saído da cidade antes do horário do almoço, com destino a Hobbs.
Dois técnicos do CDC e três oficiais do exército chegaram em um helicóptero UH-1, aumentando a apreensão entre os cidadãos. Os quarenta leitos do hospital estavam tomados por infectados e havia gente nos corredores e macas móveis. Os UH-1 se multiplicaram nos céus, trazendo tropas do CDC e do exército. A intenção era isolar Lovington, mas casos em Hobbs foram informados antes das dezesseis horas daquele mesmo dia e as ações foram tomadas em conjunto em diversas cidades. Temiam haver casos comprovados em Denver City, Brownfield e até em Roswell. A ameaça de uma epidemia parecia real.
*****
Na manhã seguinte, no Hospital Municipal de Lovington, o Doutor Osborne alarmava-se. Os procedimentos básicos de segurança para os atendimentos chegaram tarde e várias pessoas se contaminaram. Enfermeiras, médicos e voluntários inclusive. A situação era caótica. Nenhum dos medicamentos testados parecia funcionar. Trinta e oito mortes registradas durante a madrugada, incluindo todos os integrantes das famílias Stonewald e Robinson.
Os esforços para isolar a área ao redor de Lovington prosseguiam. Os técnicos do CDC e as tropas do exército multiplicavam-se na região. Ações de contenção foram postas em prática. Restrições implementadas para conter a propagação já englobavam um perímetro de oito cidades. Os cientistas se depararam com algo completamente diferente do esperado. Atestaram não se tratar de uma variante do Influenza Tipo “A”, mas algo completamente novo.
A cronologia era semelhante, mas apenas isso. Uma irritação nas vias aéreas superiores a partir da primeira hora após a infecção — tempo muito menor que o registrado para o H1N1 da Gripe Espanhola. Espirros sucessivos. O muco abundante, congestionavam o aparelho respiratório com o passar da meia hora seguinte. O metabolismo reagia, aumentando a temperatura até provocar tremores e delírios. A cianose surgia entre duas e três horas após o contágio. O paciente apresentava dificuldade de respirar desde o início. Doses de antialérgicos e descongestionantes promoviam um alívio mínimo, mas o quadro de falta de oxigenação dos tecidos prosseguia. O paciente apresentava coloração escarlate na mucosa nasal e inchaço sob os olhos e o pescoço. A morte ocorria entre seis e oito horas.
O infectado tornava-se um vetor de transmissão em um espaço de tempo muito curto também. O primeiro espirro, significava um despejo de carga viral no ambiente. Os “Red Nose” — a principal característica dos infectados era o nariz muito vermelho — se multiplicavam pela cidade. Conseguiu-se estimar entre quinze e vinte minutos o tempo de sobrevida do vírus fora do corpo humano, flutuando no ar. Máscaras cobriam o nariz e a boca, seja de tecido sintético ou de pano. Descobriram que não surtiam efeito, pois a mucosa dos olhos também era suscetível ao contágio.
Com o passar do tempo, o número de óbitos cresceu. Os técnicos do CDC recomendavam e distribuíam trajes completos de isolamento para lidar com os pacientes. O parâmetro adotado, era medir a temperatura. Qualquer alteração além de 36,6º, já bastava para encaminhar o cidadão ao Isolamento Nível 1. O maior problema, no entanto, era que as medidas preventivas, os medicamentos e tratamentos comumente utilizados para surtos viróticos com aquelas características, não surtia efeito.
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Theodore Nistelrooy não tinha a menor ideia de como lidar com o Red Nose. Não por não ter conhecimento de possíveis estratégias para combate. Tinha se formado em medicina com especialização em virologia, justamente para momentos como esse. O caso é que estava desnorteado. Nunca vira um agente patológico como aquele. E não era para menos.
A estranha pedra recolhida por Henry Robinson a pedido de Margareth Stonewald e sua composição, recebia uma análise mais minuciosa. Tratava-se de um meteorito. O interesse crescia, pois numa primeira análise, tudo indicava origem extraterrestre. Essa dúvida ainda não fora compartilhada com as Forças Armadas, pois o CDC ficaria de mãos atadas, sem ter como tentar salvar os habitantes se isso ocorresse.
Ted acreditava que um artefato extraterrestre, ainda que comprovadamente prejudicial à raça humana, seria considerado assunto ultra secreto e todos os esforços de contenção da epidemia nas últimas quarenta horas, seriam desconsiderados. Provavelmente, isolariam a região deixando os cidadãos à mercê da sorte e eliminariam os registros da ocorrência. Sabia que essa “insubordinação”, não duraria muito tempo. Logo tomariam conhecimento da origem do problema e estenderiam suas garras sobre o trabalho do CDC, eliminando qualquer registro “pelo bem da ciência”. A segurança nacional sempre era mais importante.
Analisava o interior da pedra de onde escapara o gás — segundo o relato colhido junto aos cidadãos de Lovington. Era liso e concavo, parecendo moldado para acondicionar uma substância. No microscópio, uma das metades dissolveu-se ao entrar em contato com a água. Os testes indicavam uma estranha combinação de quantidades de ferro, manganês e fósforo, diferente dos compostos de ferro fundido produzidos na Terra. Nada parecia indicar possibilidades de desenvolver um antígeno vindo dali. O “aparato” fora produzido para manter o vírus “vivo” ou em estado de latência.
Outro ponto, era ainda mais aterrador: o Red Nose era idêntico ao que infectara John Clayton Stonewald. Ted já havia comparado as amostras colhidas em vários pacientes. Inclusive amostras colhidas em Hobbs e Denver City. Isso o assustava. Vírus de RNA costumam apresentar mutações em 99% do processo reprodutivo. Ao menos era isso o que ocorria com o Influenza. Aquela “peste”, no entanto, parecia desconsiderar essa “regra”.
— Não sofrer mutações significa dizer não tem vida longa. É nisso que temos de acreditar — anunciava ele aos outros virologistas e geneticistas no laboratório.
*****
O número de mortes cresceu na região com o correr dos dias. A população alarmada tentava de todas as formas se proteger do contágio e obter mais informações. No entanto, as aglomerações favoreciam a disseminação do vírus. Alguns, mais exaltados, investiam contra as barreiras do exército e mortes foram registradas por conta de conflitos com armas de fogo nas “fronteiras”.
O boletim entregue ao Alto Comando do Exército no final da primeira semana, informava números aterradores. A população total estimada para a região, naquela época, era de 67 mil habitantes. Foram registradas pouco mais de mil e oitocentas mortes e contavam-se seis mil leitos ocupados. As mortes no caso, incluíam os óbitos em tentativas de fuga da “quarentena” imposta.
Além de conviver com um vírus mortal, os cidadãos não tinham energia elétrica ou comunicação com o resto do planeta. Patrulhas do exército inutilizavam veículos e confiscavam armas e munições. Drogas eram testadas, mas apenas prolongavam a agonia dos pacientes, sem eliminar a causa ou provocar reação adequada do sistema imunológico humano contra o inimigo.
O Alto Comando do Exército observava com extrema atenção a situação. Amostras do Read Nose estavam sob análise nos laboratórios de uma Base Americana no deserto de Nevada. A proximidade de Roswell — outro ponto de grande interesse para a mídia e o governo, num passado recente —, ligara um alerta nas Forças Armadas, ao ouvirem o nome de Lovington.
O General Devlin Martin Smith batucava os dedos na mesa de madeira de uma sala de reuniões vazia, com os olhos fixos em um aparelho telefônico. A porta se abriu e dois homens entraram. Sentaram-se nas primeiras cadeiras de costas para a entrada.
— E então? — indagou Devlin com olhar sério.
— O resultado é positivo, senhor — informou o homem de uniforme, com o nome Brown no crachá. O vírus foi eliminado em 100% das amostras.
— Qual a estimativa para a mobilização da estratégia de combate à epidemia?
— Trabalhamos com a margem de quarenta e oito horas para iniciar, senhor — respondeu o outro homem de jaleco branco e sem crachá.
— Aguardem o meu sinal. O pacote deve seguir apenas se eu ordenar.
Os dois deixaram a sala e Devlin puxou o aparelho, discando um número de nove dígitos. Levou o gancho ao ouvido e disse:
— Confirmado. É mesmo o Double Five.
Uma respiração pesada foi ouvida. A pessoa do outro lado da linha pareceu contrariada. Então disse:
— Lembre-se, Devlin: sem vazamentos. Temos um homem na frente de batalha?
— Andrews, senhor. Na equipe de Nistelrooy.
— Perfeito! Siga como planejado.
*****
Cerca de quarenta e seis horas após o “sim” do General Smith, Stewart Andrews foi abordado por um soldado sem identificação no uniforme, após o almoço. Fumava um cigarro na parte detrás do prédio da biblioteca, onde o CDC montara seu laboratório de análises em Lovington. O homem apertou sua mão e lhe entregou um cartão de papel, com uma fórmula rabiscada à caneta e uma sigla impressa em letras pretas: B.A.R.
Terminou seu cigarro, olhou para o cartão mais uma vez, registrando todos os componentes químicos e suas quantidades em sua memória fotográfica. Tirou o isqueiro do bolso e aproximou a chama do papel, observando-o queimar até o fim, sob o piso de concreto aos seus pés. Bateu a sola do sapato sobre o resultado até o vento espalhar todas as cinzas, sem deixar vestígios. “BURN AFTER READ”, conforme suas ordens.
Naquele final de tarde, uma das lâminas sob o microscópio do Doutor Nistelrooy, apresentou uma surpresa: amostras do Red Nose foram eliminadas de um cultivo de células humanas, graças a uma das substâncias testadas pelos virologistas. Devido a urgência nos testes, não era possível afirmar qual dos profissionais tinha “descoberto” a fórmula mágica. A cura estava a caminho.
*****
A epidemia deixou um saldo de doze mil trezentas e vinte e três vítimas fatais nas oito cidades atingidas por casos da virose. Lovington e Denver City foram as mais afetadas. Roswell, Lubbock, Artesia e Portales, apresentaram juntas menos de trinta óbitos durante o período. Cerca de treze mil pessoas foram infectadas e salvas pela vacina.
Passados trinta anos da tragédia, pouca gente na região pode confirmar a estória a respeito de um vírus vindo do espaço e de uma gripe chamada “Red Nose”. Não se encontra nada em registros na grande mídia.
A missão confiada ao General Devlin Smith continuou em curso mesmo após a “descoberta” da vacina e erradicação do vírus. Muitos dos homens e mulheres envolvidos na operação foram “aposentados”. No terceiro subsolo de uma instalação militar no norte do estado de Nevada, um galão com nitrogênio líquido conserva diversas ampolas. Duas delas estão marcadas com uma etiqueta onde se lê “Double Five”.
TEMA: EPIDEMIA