O caso de Narciso - CLTS 27
Por viver se sentindo sufocado, Narciso resolveu tirar um tempo para si, o que serviu apenas para que chegasse à conclusão de que a causa do sufocamento era ele mesmo.
"Meu problema é que quanto mais eu penso em mim, mais vejo que não sou lá grande coisa", pensava sobre o motivo do mal-estar, o oposto da paz interior que planejava conquistar após mudar de cidade e se afastar de amigos e familiares.
O incômodo era tal que passou a evitar olhar-se demasiadamente no espelho, com receio de que, observando-se demais, acabasse encontrando algo que não o agradasse.
A asfixia na autoconsciência o fez lembrar-se de seu homônimo grego, o rapaz atraente que acabou se afogando na própria imagem, com a diferença de que a vaidade o fazia repelir o próprio reflexo, e não se apaixonar por ele.
A repulsa estava se tornando recíproca, tendo em vista que o reflexo também o olhava com um desprezo cada vez maior – ou será que o espelho apenas mostrava a cara feia que Narciso fazia para si mesmo sem perceber?
De qualquer forma, todo esse isolamento não estava fazendo bem para sua mente. Assim, decidiu que devia sair e dar uma volta – talvez fizesse novos amigos, quem sabe?
Em uma noite de sexta-feira que parecia promissora, ele entrou no banheiro com a toalha em volta da cintura e abriu a torneira para encher a banheira enquanto ele fazia a barba na pia. Ao terminar, ficou encarando o próprio rosto no espelho redondo e percebeu a expressão facial evoluir de desprezo a ódio mortal.
Narciso levou a mão ao rosto para ver se não havia perdido a sensibilidade na face a ponto de fazer careta sem perceber e, com assombro, notou que o braço do reflexo não repetiu o movimento. Toda a linguagem corporal do outro era diferente, como se fosse uma pessoa distinta separada dele por uma barreira de vidro.
Narciso se afastou; sua cópia, ao invés de também se afastar para o fundo, avançou de punho cerrado e desferiu um soco no vidro com uma força que fez chover estilhaços sobre a pia, alguns derramando-se no chão. No local onde ficava o espelho, restavam somente os azulejos brancos da parede, sem qualquer abertura ou espaço que permitisse alguém ver ou entrar no banheiro.
Os fragmentos, por sua vez, eram finos, sem qualquer indício de alguma tecnologia que transformasse o espelho em uma tela.
Narciso estava prestes a se aproximar deles para ver se a versão violenta dele continuava viva ou havia se desintegrado junto com o receptáculo que a emoldurava, quando os pés foram atingidos pela água que derramava da banheira completamente cheia.
Ele olhou para baixo e se deparou com a mesma imagem e o mesmo comportamento de instantes antes. O reflexo atingiu a sola dos pés e fez Narciso saltar para trás com o susto, escorregando e caindo na banheira.
Foi como se mergulhasse parcialmente no espelho, homem real e reprodução de luz lutando em uma refrega que espirrou quase toda a água para fora da banheira. Com o volume menor, parecia que o reflexo ficou com menos espaço para interagir com a realidade, não conseguindo manter sua contraparte submersa.
Narciso conseguiu se desvencilhar, caiu no chão e se arrastou para fora do banheiro, desviando-se dos golpes que recebia através do piso molhado. Jogou-se na cama, tentando recuperar o fôlego e a razão para assimilar o que tinha acabado de acontecer.
Era difícil acreditar que havia sido atacado pelo que não deveria ser nada a não ser sua imagem reproduzida em uma superfície. Era tão ridículo quanto crer que alguém pudesse receber uma punhalada da própria sombra.
Embora o quarto estivesse escuro e não houvesse nada que o refletisse muito bem, Narciso olhou em volta com algum receio, mas logo suspirou e se ergueu. Ele não podia se deixar levar por medos insanos.
Abriu o guarda-roupa e escolheu uma roupa para vestir. Em seguida, apagou as luzes do banheiro e entrou com cuidado para fechar a torneira da banheira.
No escuro, nada o atacou, nem sentiu o mínimo toque através da água. “Talvez tenha sido tudo uma espécie de surto ou alucinação”, cogitou. Por via das dúvidas, não demorou muito nisso. Pôs o que precisava no bolso e saiu do quarto com agilidade, achando que evitaria um ataque se fosse rápido o bastante ao passar por qualquer coisa lisa e brilhante no trajeto para a sala, onde pretendia esperar alguns minutos para ver se estava em condições de sair.
De pé e evitando a tela da televisão e os porta-retratos, ele olhou para a entrada da cozinha, considerando ir beber alguma coisa para se acalmar, mas não confiava naquele cômodo cheio de lâminas e materiais inox com algum grau de periculosidade, preferindo tomar um ar no quintal.
Pôs-se a caminho da saída parecendo não contar que iria se virar para o lado e se distrair com a larga janela que mostrava parte do jardim na lateral da casa.
Foi uma questão de segundos para que o reflexo no vidro saísse de sincronia com ele e se preparasse para o ataque igual a um criminoso prestes a invadir, embora não houvesse ninguém do lado de fora. Se o sósia raivoso quisesse saltar de algum lugar, deveria ser da camada cristalina em que era visto.
Ele se jogou em direção ao interior, e a janela se espatifou em inúmeros pedaços que se espalharam até os pés de Narciso.
Nenhum homem idêntico a ele se ergueu dos cacos, mas isso não significava que o reflexo não pudesse alcançá-lo de alguma forma. Continuou dando golpes contra cada pedaço, fazendo-os saltar em uma ebulição cortante ao redor do alvo.
Narciso se afastou, esquivando-se o melhor que podia dos fragmentos que voavam para ele, e saiu para o quintal, mantendo distância segura de qualquer resto da janela. Verificou pele e roupas à procura de cortes e, não encontrando nada grave, sentou-se no gramado.
Estava convencido de que não era sua mente lhe pregando peças; porém, sendo alguém de carne e osso por trás de tudo, quem seria e por que estaria fazendo aquilo?
– Olá! Alguém aí? – falou para um quintal vazio e mudo. Estava sozinho, como esteve nos últimos dias. Pensou na influência que a solidão exercia naqueles eventos e se perguntou se o problema estava circunscrito à residência.
Não tinha qualquer certeza das regras daquele fenômeno, se é que havia alguma regra, mas precisava explorar as possibilidades para chegar a uma solução.
Tomando cuidado em não se ver na tela escura, tirou o celular do bolso disposto a retomar a ideia de sair e chamou um carro de aplicativo. Levantou-se e contornou a casa, trancando o que podia.
Aproveitou a espera na calçada para pesquisar na Internet alguma coisa que o ajudasse, não encontrando nada que realmente fizesse a diferença. Se tivesse que conseguir informações na prática, a oportunidade para começar estava virando a esquina e estacionando no meio-fio à sua frente.
Narciso entrou no veículo de supetão e cumprimentou o motorista. Depois de responder ao cumprimento e dar a partida, o homem ao volante deu uma boa olhada no passageiro pelo retrovisor.
– Tudo bem com você? – perguntou ao reparar na expressão um tanto espantada e nos gestos bruscos de quem estava sentado no banco de trás.
Se estivesse achando que Narciso estava sendo perseguido, não estaria muito longe da verdade; o que não tinha como nem desconfiar era que o perseguidor também estava dentro do veículo, mais especificamente nas janelas e nos retrovisores, dando uma olhada sugestiva para o passageiro enquanto fingia ser apenas um reflexo comum.
O lado bom da dissimulação dele em companhia de terceiros era que aquilo mostrava ser pelo menos um pouco racional, podendo ter ideias e elaborar estratégias – talvez Narciso pudesse argumentar com ele até chegarem a um acordo. O lado ruim era que não conseguiria provar para os outros o que estava acontecendo.
– Estou ótimo – ele se limitou a dizer.
A conversa não se prolongou muito além disso, a não ser por comentários vagos sobre índices de criminalidade e clientes mal-educados dos quais Narciso pouco participou, mantendo-se reservado, apesar do desejo de tocar em assuntos mais surrealistas; o clandestino nos vidros, por outro lado, não estava disposto a manter a discrição a viagem toda e resolveu colaborar com o repertório de histórias do condutor.
As janelas de trás quebraram ao mesmo tempo, convergindo estilhaços para o centro do banco traseiro, onde Narciso estava sentado. Praguejando, o motorista freou e perguntou se o passageiro estava bem e se fazia a mínima ideia do que tinha sido aquilo.
Encolhido como se já esperasse o golpe, Narciso passou sem grandes arranhões, agradecendo ao profissional pela preocupação e dizendo que poderia deixá-lo ali mesmo. Pagou o que devia e deixou o carro para trás sem colaborar com o esclarecimento do ocorrido.
Sem dar atenção a vitrines e transeuntes, ele caminhou com as mãos nos bolsos até às margens de um canal de águas mansas que cortava o bairro. Em um trecho pouco movimentado, olhou para baixo e encarou quem o encarava de volta.
– Quem é você? Por que quer me matar?
Narciso insistia nas perguntas, mas não obtia outra resposta que não fosse socos que espirravam água para cima sem, contudo, atingir o alvo ou revelar um braço emergindo da água. A turbulência provocada pelo rebuliço não aparentava ter qualquer efeito sobre o reflexo, assim como a quebra de vidraças e espelhos em que estivesse.
Não havia forma de destruí-lo, e ele permanecia irredutível em suas intenções assassinas, insensível a qualquer apelo daquele do qual deveria ser cópia fiel.
Se houve algum avanço ou retrocesso naquela relação conflituosa, Narciso nunca revelou a alguém, mantendo seus dramas ocultos em uma vida tão discreta e reclusa que mesmo os parentes mais próximos só foram lembrar-se de sua existência depois que uma chuva de verão caiu repentinamente enquanto ele estava nas intermediações do rio.
Ninguém sabia como as águas o tragaram, sendo difícil de acreditar que os poucos centímetros de enxurrada fossem suficientes para puxá-lo pela margem e levá-lo para o fundo da forma que apenas mãos fortes e decididas eram capazes, o que reforçava a hipótese de motivações mentais para a morte trágica.
A comoção causada pela existência solitária e incompreendida da pobre vítima do destino levou uma multidão para as margens do rio após o corpo ser encontrado.
As muitas flores jogadas para homenageá-lo se espalharam ao sabor da correnteza, mas não tardaram a seguir seu curso, deixando a superfície limpa para refletir o mundo ao redor.
Tema: Alucinação