Dedos queimados
Carla dirigia com seu filho André, de seis anos, no banco de trás. Era fim de tarde e o trânsito estava caótico, com buzinas e falta de bom senso a todo vapor.
– Mamãe, por que mesmo temos que ir na vovó?
– Porque ela quebrou a perna e precisa de ajuda com as tarefas de casa.
– Mas o tio Fernando pode cuidar dela, não pode?
– Ele já cuidou dela ontem, ai hoje somos nós, depois vai ser ele de novo e ai vem a gente e vai ser assim até a vovó se recuperar totalmente — disse ela num tom mais enérgico.
– Entendi.
Carla já havia explicado isso a André, mas depois da terceira vez que ele perguntou a mesma coisa, ela perdeu a paciência. A mãe se perguntava constantemente o que havia de difícil em entender o motivo de ir cuidar da avó. Mas esse mistério poderia esperar, pois, ela já chegara à casa da mãe. Era um sobrado de dois andares, contava com um jardim, uma garagem na frente e na fachada do terreno tinha um muro com barras de ferro que separavam a propriedade da rua. Ela parou o carro na frente da casa, desceu, abriu a garagem e estacionou.
Mãe e filho foram na direção da porta de entrada e Carla a abriu sem demora. Ao entrarem, a dupla teve a visão da avó deitada na cama na sala com a perna engessada elevada por almofadas.
– Oi, mãe — disse Carla sorrindo.
– Oi, filha, não ouvi você abrindo o portão.
– Somos ninjas vovó — disse André correndo até a cama da avó para abraçá-la.
– Cuidado André, não vai machucar ela!
– Está tudo bem Carla, a vovó aqui quebrou a perna, não os braços. Abraça a vovó mesmo seu sapequinha.
Todos riram e após André, quem foi abraçar a senhora foi a filha.
– Então mãe, por onde começo? O que a senhora costuma a fazer a esta hora?
– Bom a esta hora eu costumo já ir preparar a janta. Corto os legumes, frito a carne na frigideira dourada e o arroz e o feijão eu já fiz antes de quebrar a perna, então agora basta você esquentar.
– Tá bom então mãe, pode deixar que eu já vou preparar as coisas.
– E filha, você se lembra, né? Cuidado pra não se queimar com a frigideira dourada.
– A mãe, por favor, eu não sou mais criança né — disse revirando os olhos.
– Mas filha, tô falando sério, tome cuidado, promete pra mim que você vai tomar cuidado.
– Tá bom mãe, prometo tomar cuidado pra não me queimar na frigideira mágica, fique tranquila tá?
– Vovó, por que tem que tomar cuidado com a frigideira? — perguntou o garoto com os olhos cheios de curiosidade ao se debruçar sobre a cama.
Neste momento, mãe e filha trocaram olhares e Carla sentiu sua mãe a condenar com os olhos.
– Então você não contou pro garoto sobre o Dedos Queimados não é?
– Não, não contei, não vejo motivos pra deixar meu filho assustado com uma história boba que me deixava sem dormir quando eu era criança.
– Não é uma história boba, é a mais pura verdade e ele precisa saber, porque quem vai herdar a frigideira dourada é você e depois ele e assim correrá pela nossa família como sempre correu.
– Isso é só uma história feita pras crianças não mexerem na frigideira quente e queimarem os dedos.
– Não é história, já falei, eu era pequena quando vi com meus próprios olhos o Dedos Queimados pegar minha tia.
– Você tinha três anos de idade só, mãe, não tem como você se lembrar.
– Eu podia ser pequena, mas minha mãe não me deixa mentir, quando viva ela sempre dizia a mesma coisa.
– Tá bom, tá bom, você está certa.
– O que é o Dedos Queimados vovó? — perguntou André se agarrando nos lençóis de emoção.
– Mãe, você não vai contar.
– Tá bom filha, eu não conto.
– Obrigada.
– Mas eu quero saber mamãe, deixa o vovó contar.
– Não André — disse ela levantando um dedo. — depois você não dorme e ai vai ficar chorando. Bom, mãe, eu vou ir preparar as coisas então e já volto.
– Tá bom, vai lá filha.
Carla então saiu da sala e foi direto pra cozinha. Abriu a geladeira e começou a procurar os ingredientes pra fazer a janta. Enquanto isso, na sala, a avó tinha uma missão e ela não iria falhar.
– André, vem cá — disse a avó baixinho ao neto. — você precisa saber a história do Dedos Queimados.
O neto se aproximou da avó e sentou na cama.
Bom — continuou a avó. — há muitas gerações um parente nosso era cozinheiro e ele era muito bom no que fazia. No entanto, ele sempre queria melhorar, mas quanto mais ele melhorava, mais difícil era para ele melhorar. Até que em uma noite, não se sabe quando, o diabo a pareceu pra ele e ofereceu uma frigideira de ouro que tudo que ele cozinhasse nela ficaria com um gosto maravilhoso. Mas logicamente havia um porém, a frigideira também era feita de ouro no seu cabo e isso significava que o calor do fogo iria passar por toda a sua extensão. O diabo alertou esse nosso parente, que se qualquer um queimar os dedos na frigideira, o Dedos Queimados viria buscar a pessoa de corpo e alma. E o que é o Dedos Queimados? Bom, é um monstro, eu não lembro como ele era, mas ele era muito feio. Esse parente nunca queimou os dedos, mas é dito que sua filha pequena queimou e foi levada. Ele ficou tão desgostoso que jurou guardar a frigideira junto da família pra sempre e sempre alertar os descendentes do seu perigo, para que nunca mais alguém fosse levado. Mas como já falei da minha irmã, ela e outros parentes nossos foram levados, é por isso que você deve tomar muito cuidado com esse objeto.
– Nossa vovó, a mamãe está correndo perigo! — disse o garoto assustado.
André então pulou da cama da avó e correu até a cozinha, lá ele viu a mãe que segurava o cabo da frigideira no fogo com um pano na mão. Vendo aquilo, ele correu até a mãe e tentou tirar a frigideira da mão dela, no entanto foi ele quem queimou a mão ao segurar no cabo.
– André! O que você está fazendo?! — gritou Carla largando a frigideira no fogão. — olha isso, você se queimou!
– Não! Ele não! — gritou a avó da sala.
Naquele instante as luzes começaram a piscar e Carla pôde ver entrar na cozinha uma massa amorfa e abjeta de dedos se contorcendo. Era um amontoado de dedos tão grande que precisou se espremer pela porta. Vinha se arrastando ruidosamente pela cozinha na direção de Carla e André. Fazia barulhos de unhas estalando, arranhando e se quebrando. As unhas roçavam na carne dos dedos e os faziam sangrar, o que criava um rastro por onde passava.
Carla, quando viu aquilo, ficou desesperada e se jogou na frente do filho. Ela então agarrou a frigideira, pelo cabo ainda quente, por cima do filho e gritou quando se queimou. As lagrimas em seus olhos quase a impediam de ver aquele odioso enxame de carne, ossos e unhas que estava bem na sua frente. Mas mesmo assim, ela começou a bater a frigideira no chão e repetiu isso até que o cabo se partiu do resto. A partir disto a criatura a sua frente começou a grunhir e soltar guinchos agudos que se misturavam com o som de André gritando e foi após esse momento que o corpo de dedos se desmanchou por completo numa sopa de fluidos, sangue e pele.
Mãe e filho se abraçaram e choraram. Momentos depois, a avó chegou na cozinha se arrastando e começou a chorar quando viu que todos estavam bem. Naquela noite, Carla derrotou a criatura que a gerações tomava conta do imaginário e do medo de sua família mas que, agora, talvez já não oferecesse mais nenhum risco.
Os três se abraçaram muito emocionados, mas a frigideira era parte de um contrato de um antigo parente. Um contrato que ninguém, a não ser as partes envolvidas, sabiam as cláusulas. Talvez, só talvez, aquele dia não tenha tido realmente um final feliz.