O LEÃO DE BRONZE
I
“E a lua escarnece de meus sonhos enquanto vago pela violência.”
Os jornais apontavam um crescimento econômico há duas décadas, embora víssemos uma situação diferente apenas ao sair de casa para o mercado da esquina. Não só os pequenos comércios sofriam com a instabilidade de preços, mas as grandes redes também sentiram um enorme impacto logo no primeiro ano de um governo cuja preocupação consistia, sobretudo, em ignorar os problemas sociais. As manifestações populares tornaram-se frequentes até o segundo mandato do presidente, quando sua força militar, instigada por seus próprios apoiadores fanáticos, resolveu intervir diretamente na Constituição, derrubando os Três Pilares da Democracia, após uma eleição na qual o atual presidente saiu como derrotado.
“Não há o que temer, povo patriota. A ordem foi restabelecida,” declarou o imposto presidente em seu primeiro discurso assim que apareceu na televisão acompanhado de três figuras trajando a farda mais limpa possível, cada uma com um emblema diferente: Exército, Marinha e Aeronáutica.
O poder da palavra era forte, como remontamos nos documentos à sua criação. E por isso, ou talvez medo de declararmos essa ditadura em nossos predicados, não mudamos nosso tom.
A economia prosperou jocosamente ao que o Congresso–por falta de nome melhor–aprovou o uso de força letal para combater qualquer tipo de protesto da classe opositora, e também de quem demonstrasse a mínima contrariedade. Com isso, ao decorrer dos meses, as expressões de insatisfação pública diminuíram de maneira considerável. Ainda viam-se grupos sendo executados pelas ruas, e seus corpos desfalecidos eram exibidos como forma de garantir a paz. As manifestações, portanto, trocaram de abordagem para algo mais velado: escondidas em palestras ministradas em porões, bem como aconteceram em um outro período nefasto da história de nosso país.
Diante da quietude, a resposta como segunda medida tomada pelo governo veio imediatamente: a criminalização de movimentos artísticos.
Assim que essa nova lei começou a ser veiculada em todos os meios de comunicação, logo após seu anúncio no canal oficial do Presidente, achamos que as bibliotecas, museus, cinemas, teatros, até mesmo universidades, e todos os espaços culturais, seriam superfaturados à derrubada. O governo precisava de dinheiro, visto que tirar diretamente de nosso tesouro já tinha se tornado uma prática tediosa. Porém, tiveram um destino pior do que esse em nossas imaginações. As centenárias construções foram reaproveitadas para preservar apenas informações sobre nosso “Pr”–um errôneo jeito de abreviar o “presidente” que seus ávidos seguidores inventaram–, e de seus ministros, governadores, e também a família de todos eles–ou ao menos aqueles que almejavam devida exposição. Com o passar do tempo, as próprias ideias começaram a desandar.
Foi nas bibliotecas que presenciamos o nascimento dessa falta de escrúpulos.
Entramos em desespero quando vimos a fumaça preta tomar conta dos céus e corremos à sua direção. Cada um de nós, nos diversos distritos de nossas cidades, encontramos o pior cenário nos fundos dos prédios que, em outra Era, guardaram informações valiosas. Não apenas os documentos de fatos históricos, mas a identidade cultural de determinadas sociedades em datas passadas, foram empilhados em fogueiras buscando alcançar o deus que nossos líderes tanto berravam amar e respeitar. E no mesmo dia, os filmes de cinemas, séries documentais, e novelas também sofreram com o mesmo destino. Apesar da alta inflamabilidade, os rolos de filmes, compostos por nitrato de celulose, tiveram suas próprias pilhas queimadas nos fundos de cada cinema, sem noção alguma à importância de quem passasse por perto ou também fosse responsável pelo incêndio. Lembro desse dia como se fosse ontem. De estar com alguns amigos em um bar almoçando e assistindo ao noticiário. De sairmos correndo, no centro da cidade, para nossas bibliotecas e cinemas favoritos a enfim presenciarmos todo o horror que ainda hoje assombra nossos sonhos. De, principalmente, sentir um arrepio, da lombar à minha nuca, ao assistir, pela primeira vez, toda aquela fumaça escurecendo o dia em pleno horário de almoço, passando pelo entardecer ao dia seguinte. Mas no meio de tantos sentimentos aterrorizantes, também me ocorreu uma assombrosa familiaridade mediante as estranhas estrelas que davam suas caras com o anoitecer, como se eu já tivesse visto aqueles pontos escuros em um céu atormentado de pensamentos humanos. Não demorou, claro, para que uma intensa depressão acometesse os artistas, o que levou a um alto funcionamento das Câmaras Letais; inauguradas no milênio anterior após a aprovação de leis à favor do suicídio em Nova Iorque. Suas obras, agora proibidas, eram queimadas quando encontradas em eventos clandestinos itinerantes, ou “túneis do tempo”, como passamos a chamar as antigas estações de metrô, reaproveitadas à nossa maneira. Um único vagão de trem, contendo almas fragmentadas de um passado tão distante, pulavam de estação para estação. Ninguém sabia quem o conduzia, mas todos nós sabíamos onde deveríamos ir caso quiséssemos entrar em contato com os sentimentos proibidos pelo governo.
Embora a arte fora criminalizada, qualquer manifestação de cunho artístico em referência a exaltação do senhor “Pr”, sua família e seus aliados no governo, eram bem vistas. As novas histórias, escritas ou filmadas, misturavam o concreto com uma exagerada ficção de feitos e atributos inteiramente novos, reescrevendo o passado para uma absurda fantasia, extrapolando a realidade que um dia nós conhecemos. Os cartazes de filmes esbanjavam pinturas em poses heroicas ou fotos que glorificavam o homenageado, geralmente em shots de baixo para cima. E os desenhos não possuíam veia alguma, de forma mecanizada, expressando rostos dessaturados e inexpressivos, olhares vazios e ausência de lábios.
Nos museus, as pinturas e esculturas que o Presidente e seus Ministros receberam de presente há anos passaram a decorar os andares, redefinindo as vanguardas, do expressionismo ao dadaísmo, à insalubridade artística. O primeiro “reinaugurado” teve seu nome alterado para “Museu de Arte Verdadeira”, o que instaurou uma nova tendência artística no país. Obras como ícones de corpo inteiro e bustos em jacarandá obtidas de forma ilegal; visto que a derrubada de árvores para a construção de móveis e outros usos fora criminalizada anos atrás; alguns quadros feitos à lápis, somente lápis, e outros coloridos, de formas exageradas em cada ruga, porém todos com o mesmo estilo de mão forte e expressões pesadas, com o mal do ser homenageado tão nítido quanto ao vivo. Além das artes já esperadas, havia um forte apelo militar no meio das composições. Armas com o rosto do Presidente gravado no metal, como um revólver de níquel, ou adesivos pitorescos colados em diversos outros fuzis. Tenho essa memória tão pouco encarecida, e ainda mais do que gostaria, de uma visita a um Museu de Arte Verdadeira. Meu trabalho, infelizmente, me levou como responsável de uma excursão escolar. E pude ver o horror escarnecido aos artistas que um dia já foram tratados da mesma maneira. Uma produção que prendeu a minha atenção, causando a paralisação de meu corpo para observá-la, foi um mapa do país feito inteiramente por cápsulas das mais variadas munições. Eu olhava aquilo com um sentimento confuso, sem saber o que dizer aos alunos quando me perguntavam sobre meu estado e menos ainda sobre o que significava aquele quadro. Quem passasse por mim poderia achar que eu admirava, o que eu recuso chamar, a obra. Enquanto petrificado diante de tal composição minha cabeça rodava um filme. Imaginava os manifestantes assassinados, a crueldade que seus corpos receberam mesmo depois de mortos; o estupro da servidão em serem tratados como exemplo, como alerta, como garantia à uma época pacíficamente agressiva, a que ao mesmo tempo o forte cheiro de pólvora e sangue fervido entravam em meu nariz, me enjoando a cada segundo passado sem piscar os olhos. Mas eu simplesmente não conseguia deixar de encarar, ao ponto de vomitar e ser forçado a sair daquela sala.
Os teatros e anfiteatros foram os que mais sofreram. Como a economia afundava cada vez mais, e a especulação imobiliária crescia a cada privatização que o presidente fechava com sua caneta dourada, esses espaços foram agregados como lares para muitas pessoas que foram “realocadas” de suas residências. E eu uso o termo entre aspas pois era dessa maneira que o atual governo tratava as expulsões residenciais pela dívida do imposto predial e territorial urbano. Como pagar algo se não éramos pagos? Se as empresas estatais foram uma por uma vendidas, e as empresas privadas se recusavam a pagar nossos salários em dia? Se recusavam a valorizar nosso sangue e suor dado. Se recusavam a cumprir a lei.
Outras medidas paliativas foram adotadas a fim de buscar reerguer a confiança do povo, como armar a população civil. O esbanjo, o fascínio, a obsessão por armas de fogo estampava cada cartaz. Se tinha um índice que aumentava, esse era o de violência; tais como assassinatos, feminicídios e roubos à mão armada.
Os anúncios eram feitos a cada quinzena, aos domingos, no canal oficial do Presidente, e seus discursos patrióticos também enalteciam os próprios decretos tomados, como a redução de impostos sobre os mais variados bens, incluindo suplementos alimentares ou incontáveis produtos industrializados, sendo que os preços desses flutuavam de uma hora para outra. Esporadicamente, ele também resolvia abaixar o preço de algum combustível. Poucos desses planos ainda conseguiam agradar o antigo eleitorado, aqueles mais fieis que se recusavam a ver o lado que todos alertaram desde o início, quando ainda tínhamos a opção do voto democrático.
Tornou-se difícil obter algo de valor, sendo essa outra palavra ressignificada, assim como todas as mudanças que forçaram em nossas goelas através de tanta violência.
II
Acordei antes do despertador, como de praxe. Não por algum infortúnio, nem mesmo por capricho, mas devido à própria ansiedade em ter o meu descanso bruscamente interrompido. Embora tenha sido um mês turbulento no trabalho; com salários atrasados e uma alta demanda de responsabilidade enfrentada diariamente no grupo da empresa, entre os minutos que passo nesse período de volta à realidade, penso em como meu sono tem sido tão tranquilo. Não somente devido a todos os problemas encarados frente ao meu cansaço, mas também há outros fatores externos que acabam afetando indiretamente o profissional que tento ser.
No que faço minha higiene bucal, lavo meu rosto e troco de roupa, penso no que guardo em minha mochila; na ansiedade que aquele objeto já me causava ao levantar da cama, tomando o primeiro pensamento do dia. Eu andava feliz devido a uma grandiosa aquisição. Antes mesmo dessa onda repressiva, em uma época cuja chuva não era radioativa, aquele livro fora proibido na Europa. E agora descansava em minha posse, com uma capa falsa, mas é claro. O adquiri pouco tempo antes do recente Reforço de Ordem; ou quando os túneis do tempo conseguiam se manter por uma semana sem serem atacados pela polícia militar. A peça, contada no livro em questão, pairava em uma estante coberta de poeira, e embora a capa desgastada denunciasse seu tempo de vida, foi o símbolo amarelo quase dourado que me chamou atenção. A leitura era assombrosa, o que deu razão às palavras do vendedor sobre sua proibição; e seus alertas de cuidado, não só com o que poderia acontecer comigo caso descobrissem o que eu carregava, mas com a leitura em si. Porém, o toque com uma obra de cunho verdadeiramente artístico me trazia uma sensação antiga para além da nostalgia. E, mesmo guardando para sempre as últimas palavras de Cassilda; os gritos agonizantes de Camilla e o Estranho em suas indumentárias fantásticas e radiantes, eu sentia que deveria carregá-la aos meus cuidados. Mantê-la o mais perto possível da minha pele. Minha mão coçava para lê-la novamente, para entrar em contato com as palavras. E eu lia pedaços por pedaços enquanto caminhava de minha casa até o ponto de ônibus, mesmo que na escuridão do final da madrugada, sendo iluminado por esparsos postes e pelas tão distantes estrelas.
Ao chegar naquela aglomeração de pessoas, enfileiradas com um grau indecifrável de esperança e cansaço latente em seus rostos, guardo a peça na mochila. Os ônibus chegam, estacionando um atrás do outro, e começamos a subir e escolher nossos assentos. Vejo um gatinho passeando entre nossas pernas, costurando a presente loucura com o gracioso instinto felino. São cinco e meia da manhã e, mesmo absorto, com Carcosa em minha mente e o pujante desejo de deleitar-me no sereno lago de Hali, sem ondas ou vento para agitá-lo, e ter seus sóis gêmeos esquentando minha alma; ouço os cumprimentos do motorista.
“Bom dia,” eu respondo logo em seguida. Passo meu cartão no leitor de passagem, como todo ser automatizado, e cruzo a roleta.
Sento-me ao fundo do ônibus, próximo às portas de saída, no assento de corredor, não só porque acaba facilitando minha retirada quando finalmente chego em meu destino, mas também pela presença de outro passageiro que já havia tomado o lugar da janela. E o sujeito dormia um sono tranquilo, de boca aberta e cabeça encostada ao vidro. Pus minha mochila em meu colo, a abraçando feito um filho, e ouvia, enquanto esperava o motorista, as conversas paralelas animadas até demais para o horário. Ora, as estrelas ainda não começaram a desaparecer no céu tão negro quanto nossas vontades ofuscadas pelos deveres. Que felicidades são essas que as pessoas ainda carregavam? Cínicos e ignorantes, eu pensei. Mais interessados no que fazer do que nos sentimentos que nos roubaram. Não tínhamos mais nada em nossas vidas, não é mesmo? Fomos derrotados, esmagados. E a insana corte orquestrada para nosso fim agia temerosamente, sem ninguém levantar um dedo sequer. Quando me dei conta, o ônibus já tinha seus assentos tomados e começamos a andar, o que acabou despertando bruscamente o colega ao meu lado. Por fim, decidi fechar os meus olhos por alguns instantes.
Acordando pela segunda vez, agora por conta de gritos vindo de dois assentos atrás de mim, noto pessoas em pé por todo o corredor do transporte. Uma bolsa de couro sintético, da mulher ao meu lado, balançava à minha frente enquanto eu bocejava lentamente o meu despertar.
“Bora, motorista!” uma voz feminina suplicava em irritação. “Não dá pra ficar parando, não!”
“Num’ tem mais espaço nessa porra, caralho!” outro sujeito demonstrava sua ira.
Virei a cabeça ao lado esquerdo, para olhar janela afora, e vi que o céu já tinha sua breve tonalidade azul quase escancarada, se não fosse pelas nuvens impedindo a revelação do sol. Mediante à essa imagem que julguei tão bela, apesar de saber que ninguém mais tinha a mesma aptidão que eu para essas percepções, imaginei as Híades expulsando todo o rastro possível daquele véu branco para a sua aparição, e Aldebaran prontamente surgindo, mesmo na ausência da escuridão. Mas era em meus sonhos que eu via essas mesmas nuvens. E era em meus sonhos que eu via as torres de minha desejada cidade atrás da lua. Então balancei a cabeça em um ato de confusão a fim de despertar, mas sabia que já estava tão vivo quanto o decorrer das horas.
As pessoas se calaram e voltamos ao silêncio antes de adormecer; aquele que nunca conseguimos perceber até o momento de abrir os olhos mais uma vez, e me arrepiei diante de todo aquele silêncio. Pouco adiante de mim, talvez de quatro ou cinco pessoas, notei um homem de rosto redondo, suado e pálido. Em um ato automático, desviei meu olhar. O que não me impediu de sentir que seus olhos me encaravam. E quando a curiosidade me venceu, o homem não estava mais lá. À minha frente, a multidão permanecia de cabeça baixa. Virei minha cabeça discretamente para a minha direita, olhando por cima de meu ombro quem quer que meu campo de visão me permitisse. Porém não obtive sucesso em identificar a fonte de minha agonia. Lutei para afastar o sentimento; algo que corroía meu interior à uma agitação agonizante. Mas, além disso, um fedor caiu pelo teto do ônibus. Olhei para a janela aberta, realizando estar perto de meu destino, e mesmo assim esse cheiro repugnante ardia minhas narinas ao ponto de tirar água de meus olhos. Todo esse asco choroso se misturava com o suor que escorria de minhas têmporas. Eu quis sair dali naquele instante, sem me importar com quantos pontos o motorista ainda iria parar. Eu quis me levantar, empurrar todos em meu caminho pela descida do ônibus, e vomitar o destempero que regurgitava. Que espécie de horror era esse? Eu pensei, correndo meus olhos pela multidão, mais uma vez. Poderia meu coração estourar em meu peito? Eu pensei, correndo meus olhos pela multidão, mais uma vez. Enxuguei minha testa e em seguida meu nariz com as palmas de minhas mãos e as pontas de meus dedos, respectivamente, fechando meus olhos para me concentrar até o meu ponto de descida, para, quando reabri-los, notar que o homem de rosto pálido estava mais perto de mim. Seu rosto rotundo, branco, como se não carregasse mais vida, me lembrou de uma criatura asquerosa, fedorenta, daquela encontrada apenas nos cadáveres em decomposição.
“Um verme!” Eu gritei, assustando as pessoas ao meu redor; as que dormiam o pouco de sono antes de chegar ao trabalho, e as que caminhavam acordadas em seus próprios pensamentos. Diante de tal vexame, decidi me levantar e descer no ponto seguinte. A título de educação, apontei meu lugar para a idosa, recém notada, vir sentar. Retornei a mochila às minhas costas e abaixei minha cabeça, envergonhado, seguindo para a porta de saída.
“Que Deus te conforte,” eu ouvi a senhora murmurar.
“Oi? O que você disse?” perguntei.
“Que Deus te abençoe, jovem,” ela respondeu. “Pelo lugar. . .” Meu semblante confuso tornou necessária a especificação do que tinha dito. “Obrigada.”
Afastei-me dela e também perdi o homem de vista. Puxei a cordinha que indicava o pedido de parada, e, assim que o ônibus parou, senti uma mão gelada em meu braço. “Mas o que?” eu me perguntei em voz alta no que novamente era puxado. “Me solta, porra!” gritei. E quando olhei para trás, para ver o que tinha me puxado, era aquele homem pálido. Seu rosto inchado e molhado havia chegado mais perto. Ele não possuía expressão. Debati-me um desespero no que o mau cheiro voltara, conseguindo me desvencilhar e jogando meus braços para frente, mas sua outra mão já tinha agarrado a alça de minha mochila. “Socorro!” eu gritei olhando para trás, para seu rosto esbranquiçado, calejado de uma morte a qual eu imediatamente supus. “Alguém! Socorro!” E nisso forcei minha saída, conseguindo me soltar segundos antes do ônibus se mover, um ponto antes do meu destino, e perdendo a alça de minha mochila; rasgado para além do conserto.
Vi o ônibus se afastando, e carregando, dentro dele, o estranho lunático verminoso de cabeça inchada para longe. Senti-me em paz, porém ofegante.
III
Quem era aquele homem? Por que ele me encarava? Por que não me deixou ir embora? Será que ele sabia o que eu carrego em minha mochila? Nenhuma estrela poderia me responder. Parei ao lado de um poste de luz para respirar e buscar retomar minha calma. Quando ergui minha cabeça aprendi onde tinha descido. Vi o hospital onde meu pai me ensinou, há anos, a tratar como ponto de referência e me preparar para descer do ônibus neste bairro. Eu dava aula em quatro escolas. Iria demorar até chegar no lugar certo de desembarque, e mais ainda no meu local de trabalho.
Apressei meu passo, mas não porque poderia me atrasar, e sim pela adrenalina que ainda corria em minhas veias. Olhei meu relógio de pulso. Seis e onze da manhã. A maioria dos comércios sequer começara a abrir. Mas que desgraça! Por que aquele verme me segurou no ônibus? Uma cólera tomava conta dentro de mim. Vi algumas padarias sendo iluminadas, no que, ao passar por elas, o cheiro de pão quente e café fresco começaram a me acalmar. Senti que precisava beber algo, e foi isso o que fiz à seguinte decisão. Entrei em uma padaria qualquer e pedi um café médio para a viagem. Continuei minha caminhada bebericando o líquido quente, tentando afastar dos meus pensamentos aquele rosto tenebroso, de alguém que esqueceram de enterrar. Tentando afastar dos meus pensamentos o gelado de sua mão em meu braço, até enfim chegar ao leão de bronze que me cumprimentava à minha rua.
Era uma via extensa, com dois quilômetros e meio, e eu não andava por ela inteira. Minha caminhada, da estátua do leão de bronze até a escola, durava em torno de dez minutos. Talvez eu andasse rápido demais, com a paixão por lecionar em meu peito. Mas hoje eu andei devagar, pois o homem pálido se misturava em meus pensamentos enquanto eu tentava relaxar imaginando o sereno lago, raso e imóvel, que existiam apenas em meus devaneios e em meus sonhos. Olhei para o céu, cinza, como se o azul jamais houvesse existido, e cheio de pássaros escuros anunciando seus tormentos à medida que eu me aproximava do leão, e nisso deixei o café cair, pois chorei com minhas mãos trêmulas. Uma dor ofegante atingiu meu peito junto com uma dormência em meus ombros. Não sabia o que estava acontecendo comigo. A repulsa havia voltado e, por isso, parei a caminhada bem embaixo da estátua. Aos seus pés, onde agora apenas um cobertor amarelo repousava sem balançar com o vento, eu lembrei que ficava um morador de rua, mas estava vazia, tal qual toda a rua. Sentei-me no chão, afastando a manta de mim, levando meu olhar perscrutador para além do que qualquer ser humano poderia sonhar em enxergar e um brilho fez desaparecer toda a minha noção de tempo e espaço. Na direção do fulgor insondável, vi as estrelas escuras de meus sonhos, com os ventos úmidos do lago de Hali congelando meu rosto.
Então eu o escutei.
O medo me tranquilizou e o desespero cessou.
Senti o toque de uma mão fria em meu rosto, porém era macia como imaginamos andar sob as nuvens deve ser. E a morte, que já foi tão sonhada pelos artistas de eras distantes, declarada morada de almas perdidas, retumbava em sua voz e se expandia, trovejando pelo gorjeio dos pássaros, se intensificando cada vez mais com o toque daquela mão em meu rosto, me consumindo em um gélido abraço que eu recebia pelo seu sussurro em minha alma. Me vi fora de mim mesmo, sem as nossas angústias que carregamos feito um pão no estômago. E me encolhi à medida que eu afundei dentro de meu próprio abismo.
“Está na hora.”
Levantei-me em um único ímpeto.
Molhado, de um congelante suor, agarrei o despertador em minhas mãos e o atirei janela afora. Minha cabeça doía e meu coração batia querendo quebrar meu peito para fugir desse corpo que tanto o maltratava. Sentado na cama eu olhei janela afora para a lua. Suspirei ofegante, até que então me levantei e fui ao banheiro para escovar os dentes, lavar meu rosto e trocar de roupas.
“Eu não aguento mais esses pesadelos.”