O Cavalinho Azul Parte - VI - João dos Anjos -
Ao entrar em casa, João dos Anjos pegou uma garrafa de aguardente; mas antes de puxar a rolha a espatifou na parede. Queria estar lúcido quando o desgraçado chegasse. Embriagado pelo ódio, abriu a janela e ficou a observar a estrada. Viu quando surgiu ao longe, devagar, com passos de donzela deslumbrada. Bastou que entrasse para que agarrasse o chicote e começasse a espancá-lo. André gritava, porém o som, devido as cordas vocais terem sido queimadas, mais parecia o grasnar de patos quando atacados por cães. Antes de perder os sentidos, o pai ainda lhe chutou a boca e lhe quebrou os dentes. Entretanto, ao acordar estava nu amarrado sobre a cama, cujo colchão havia absorvido grande quantidade de combustível. O homem claudicando ao redor segurava a caixa de fósforos. A expressão de pavor, ao inalar o forte cheiro de gasolina, deformou o rosto do rapaz: os olhos se projetaram de tal forma que os pequenos vasos sanguíneos se arrebentaram ao redor da íris fazendo com que, a deriva, flutuassem em gigantescos poços de sangue.
O monstro enlouquecido ria alto diante do intenso sofrimento do filho, que feito um verme se contorcia incapaz de se livrar das amarras. Porém, o infeliz na esperança de poder entrar no reino dos céus, só queria lhe abraçar e pedir perdão. Mas bastou abrir a boca para que o fósforo fosse arremessado sobre a cama. O pavor do momento em que foi agasalhado pelas chamas fez com que perdesse os sentidos. Mas, enquanto o fogo lhe consumia o corpo, a alma ainda teve tempo para sonhar. Era menino ainda e não conhecia as maldades do mundo. A mãe havia lhe dado a bicicletinha cor de rosa que ele tanto queria, e o pai cheio de orgulho, em um domingo qualquer, lhe ensinava a se equilibrar.
João dos Anjos deixou a casa e se embrenhou no mato. Esperou que a fumaça chamasse a atenção dos vizinhos mais próximos há cerca de três quilômetros. Os primeiros que chegaram já encontraram um triste cenário. Foi quando João dos Anjos surgiu em pânico dizendo que o filho deveria estar lá dentro. Desesperado, com as mãos trêmulas, berrou que entraria para salvá-lo, e, como não foi impedido, simulou um desmaio. Dezenas de pessoas com latas e baldes lutavam contra o fogaréu, até que o telhado desabou cobrindo tudo com sua grande mortalha incandescente.
Helena inconformada com a morte de André, chegou a pensar que ele mesmo havia acabado com a própria vida. Mas a polícia encontrou fios de arame nos pulsos e tornozelos do corpo carbonizado, e que devido a posição em que se encontrava, concluiu que antes do incêndio, foi amarrado com os membros abertos sobre a cama.
***
O Senhor Eza, os filhos e outros funcionários estavam começando a desmontar os brinquedos quando Henrique chegou. O menino estava quase sem ar e foi difícil encontrar forças para falar:
- Cigano... Cigano... fuja. Escutei o Jão do Anjo fala cum meu pai que foi ocê que botô fogo na casa e matô o fio dele. Tão juntano gente pra te pega e leva pra puliça. Mas vão mermo e ti mata, ele dá dinhero pa puliça faze o que ele que.
Cigano ouviu tudo de boca entreaberta. Depois disse:
-Mas eu não fiz nada...
- Eu sei, ocê é bom, dá cotesia pra nós de ropa rasgada que num pode paga pa brinca. Vai bora, vai...
O menino teve uma crise de choro, depois continuou:
- Não fala que vim aqui senão meu pai mi bati.
Henrique correu, e nem o pé de chinelo amarrado com arame que ficou para trás teve coragem de voltar para pegar.
O Senhor Eza após ouvir o relato do garoto, foi para o trailer e gritou:
- GERÔNIMO, MEU FILHO, VENHA JÁ AQUI!
Assim que Cigano entrou no compartimento o pai adotivo lhe falou:
- Eu sabia que por causa de mulher, você ainda ia se meter em uma grande enrascada. Não pense que não sei do seu envolvimento com aquela moça loura, namorada do cara que dizem ter sido assassinado. De uma forma ou de outra ia sobrar pra você. Leve esse dinheiro, pegue meu carro e desapareça por um tempo.
Cigano ainda tentou dizer que não tinha nada a temer, mas o Senhor Eza continuou:
- Lembro-me bem de quando te comprei daquela cigana: estava tão doentinho... Eu e a Sônia, que Deus a tenha, logo nos apaixonamos por você e não fizemos diferença entre os nossos filhos de sangue. O amor foi o mesmo. Sabe bem disso. Sinto que as coisas não vão ficar boas por aqui. Ouça o seu velho pai, fuja enquanto há tempo. Mas antes me dê um abraço.
Cigano correu para os braços do pai e chorou feito um menino. Depois agradeceu por tê-lo criado com tanto amor, e após dizer que lhe amava pegou as chaves do carro e partiu.
***
Poucos minutos depois vários indivíduos; a maioria moradores da vila, chegaram ao local. João dos Anjos ao lado de dois policiais gritava: "ONDE ESTÁ O CIGANO, ASSASSINO DO MEU FILHO ". O Senhor Eza ao dizer que não sabia foi agredido por um dos policiais que lhe desferiu um murro no rosto. O momento foi de caos, todos os integrantes vieram em sua defesa. O outro policial atirou e a selvageria teve início. Homens, mulheres e crianças foram assassinados pela gangue ensandecida, que munida com facões e foices decepava tudo que se movia pela frente. Após a chacina os corpos foram amontoados: homens na base, mulheres no meio e crianças no topo e, ao redor da dantesca pirâmide, muitas armas, que segundo os policiais, estavam nas mãos dos "marginais".
Helena conhecia todos que trabalhavam no parque: o Senhor Eza, os dois filhos biológicos e outros funcionários, a maioria casados. Rezou por cada um deles e depois de muitas orações perdeu a vontade de viver. João dos Anjos ainda lhe contou que Cigano estava entre os mortos. Com o passar dos dias a bela jovem começou a definhar e, debilitada, sem noção do que fazia, assinou documentos que colocavam todos os seus bens em nome de João dos Anjos.
Apenas uma empregada continuou na residência, agora pertencente ao caridoso João dos Anjos. Dona Esmeraldina ficou responsável em cuidar de Helena até que o inevitável acontecesse. A bondosa senhora preparava caldos os quais forçava a beber e, conhecedora de ervas, lhe dava remédios extraídos das mais diversas plantas. Apesar de todo cuidado seu estado piorou.
João dos Anjos se divertia em ver o sofrimento da moça. Já havia até pensado no funeral: seria enterrada no mesmo túmulo onde estava André, que era apenas um pedaço de carvão. Já a avó, ainda tinha muito de alimentar os vermes.
Helena estava tão fraca que mal podia abrir os olhos. Foi então que o Doutor Mendes foi chamado. João dos Anjos ainda queria dar um jeito de prolongar o sofrimento da moça. Foi então que depois de alguns exames o médico foi categórico em afirmar:
- Helena está grávida.
João dos Anjos esboçou um grande sorriso e disse:
- Doutor, não meça esforços para salvar essa criança. Terei imenso prazer em criar meu neto como se fosse meu filho.
Helena abriu os imensos olhos azuis encovados no rosto cadavérico e falou com dificuldade. A voz saiu arrastada e fanhosa como se a boca estivesse cheia de terra:
- Tenho certeza que sim, meu sogro querido...
Continua...