Apartamento do Terror
Apartamento do Terror
Senti um longo arrepio, um sussurro próximo ao ouvido esquerdo. Eram sopros suaves que faziam uma espécie de cócegas. Como de costume, eu havia ido dormir às duas horas da madrugada. Aquela música instrumental estava tocando na TV, até o relógio programado nela desligar e o escuro tomar conta do meu quarto, por inteiro. Nem uma fresta de luz se via.
O celular estava desligado, no meio do caos da cidade de Fortaleza barulhenta, eu, do 11.º andar do meu apartamento, apreciava um sono merecido depois de um dia agitado. Eu, sendo uma mulher de 32 anos, solteira, independente, vinda do interior, havia me acostumado a dormir sozinha.
Não queria homem nenhum, nem mulher, agarrada comigo. Quando sai do sítio, que é interior, do interior, onde as estórias sobre Mula sem Cabeça, Caipora, Saci Pererê, eram contadas, eu dormia o sono melhor de todos. Morava no meio de uma família grande, com pais, tios, avós. Eram todos muito unidos e não tinha bicho-papão que botasse medo na nossa gente.
Mas quando fiz o ENEM e ganhei uma vaga numa Federal, no curso de Tecnologia da Informação, não pensei duas vezes e fui embora. A saudade ficou marcada no meu coração, porém, eu não poderia fraquejar. As chances para quem vinha dar roça eram raras, como os amores. Depois de quatro anos, intensos de estudos e morando numa república estudantil, a graduação veio e com ela muitas oportunidades de emprego, na área de informática.
Meu ganho era bastante e eu trabalhava em casa. Consegui até voltar para Iguatu, algumas vezes para visitar os familiares e trabalhar home office. Viajei, em um ano, quase todo o Brasil. Foi quando a empresa em que eu prestava serviço me colocou numa função fixa e finquei minha vida em Fortaleza. Dei entrada num apartamento e financiei o restante. Trouxe minha mãe, que ficou comigo durante quatro meses, mas a saudade do mato, fez com ela voltasse.
Depois, meu pai veio com meus dois irmãos mais novos. Ficara um mês e quiseram voltar para o interior. Eu passava a maioria do tempo sozinha. Às vezes ia em bares com colegas, ao teatro, ao cinema. Tive alguns romances breves, mas era focada em ganhar cada vez mais dinheiro, para comprar minhas coisas e ajudar meus pais. Mandava a eles um PIX todo mês.
O meu apartamento tinha vista para o mar. Era lindo, quando amanhecia, eu saia da toca e me encantava com aquela visão magnífica. Eu via como era lindo o calçadão da Beira Mar, com seus quiosques e transeuntes, no dia a dia frenético. Eu só descia algumas vezes para caminhar. Mas aquele dia, havia sido todo diferente, presenciei dois moradores de rua se estapearem por um litro de cachaça.
Aquela multidão aglomerada vendo MMA grátis. Eram gentes territorialistas e brigavam por cada esmola dada. Eu às vezes ficava penalizada com isso, mas não podia fazer nada. Tive que logo voltar para casa e comecei a trabalhar. Era começo de noite e quando terminei a madrugada já se iniciara. Foi quando fui para o quarto e apaguei tudo. Mas aquele sopro suave no ouvido esquerdo me despertou.
Abri os olhos e vi uma criatura vermelha musculosa na minha frente. Meu coração começou a palpitar mais forte. Quando pisquei, o ser havia sumido. E novamente reapareceu, ao piscar mais uma vez. Agora tinha se aproximado de mim e rastejava no lado desocupado da cama. Deixava marcas vermelhas no lençol branco. Petrificou. As minhas ações eram lentas.
Tentava me mexer e não conseguia. O ser diabólico aproximou-se seu rosto do meu e colocou a língua áspera e pontiaguda para fora e lambeu meu nariz, depois afastou-se e pegou minha cabeça com a mão. A força era tão brutal, que pensei que teria o crânio esmagado. Mas apaguei e, quando despertei, tudo parecia normal. Só uma dor de cabeça aguda atravessava meus pensamentos. Eu estava deitada de bruços para o lado direito do quarto.
Na minha frente uma cômoda com um abajur rosa. Um retrato da minha casa, no Centro Sul, onde meus pais moravam. Na frente o, guarda-roupas. Mas fiquei completamente desnorteada, quando virei para esquerda e vi o vermelho sobre a cama e na parede, uma mensagem: ‘Voltarei para buscar o que me pertence’.
Saltitei e saí logo do quarto. Abri a porta e chequei cada lugar da residência e nada estava fora do lugar. Tomei um banho, preparei um café com tapioca e voltei ao quarto. Para minha surpresa, não tinha vermelho na cama e nem mensagem na parede. O que aconteceu comigo? Eu tinha surtado?
Fiz uma videochamada com minha mãe, relatei a ela o que aconteceu.
— Minha querida, não tenhas medo. Com certeza, você teve um daqueles pesadelos. Quando você era criança, você sempre corria para minha cama e dizia estar com medo do escuro.
— Mas, mãe, parecia tão real tudo que presenciei. Não conseguia ver aquilo como algo fictício, ou algum sonho.
— Não se preocupe. Reservarei uma passagem de ônibus e chego na segunda-feira e fico uns dias com você, para lhe tranquilizar mais.
— Está bem, eu vou agradecer isso que fazes por mim.
Mas ainda era sábado e eu passaria dois dias sozinha e com receio de dormir e acontecer algo. Então quando chegou à noite. Não fiquei no quarto. Resolvi ligar a TV na Sala e ficar ali assistindo e experimentando há sensação gostosa da brisa vinda do mar.
Nem precisava ligar o ar-condicionado. Tudo era tão frio. Nunca fui muito de beber. Mas resolvi abrir um vinho e tomei duas taças. Fiquei já um pouquinho zonza. Nem vi quando capotei. Só senti quando ouvi aquela voz e fiquei arrepiada.
— Vaga-lume, você sabe que me pertences né? Quando sua mãe foi lhe parir, existiam poucas chances de vida para você. Então ela me entregou sua alma, como um acordo — O homem de paletó e gravata, com chapéu de couro e um cigarro na mão, falou isso a mim.
— Quem é você? Como entrou aqui? Vou chamar a polícia — Falei isso, enquanto a criatura sorria.
— Menina, você acha que a polícia pode deter-me? Tenho um poder maior que qualquer frota policial.
— Você está mentindo. Minha mãe jamais faria isso — De novo, o ser sorriu.
— Como és ingênua, essa mulher que vem aqui na sua casa segunda, não é sua mãe de sangue. A sua mãe de verdade morreu no parto. Mas fiques tranquila, não vou lhe levar agora. Só vim lhe alertar. Você só me verá agora no dia da sua morte.
— Não acredito em você. Prove que é real isso que estás me falando.
— Pois bem, se prepare para se emocionar um pouco.
E voltamos no tempo. Vi cenas do meu nascimento. Foi traumático. Minha mãe está no meio do mato, deitada com a cabeça sobre a árvore. Estava no meio de uma sombra, o açude um pouco à sua frente. Mas ninguém em seu auxílio. Perguntei ao Belzebu como ela foi parar ali.
— Sua mãe era uma adolescente de 15 anos, foi violentada por tios, primos e até o avô dela. Era uma gravidez indesejada. Sinto muito lhe dizer isso, mas é a verdade.
Comecei a chorar. Mas o demônio não tinha pena de mim, ele preferia me contar tudo e deixar de lado os segredos escondidos pela minha família.
— Ela foi buscar água no balde, pois na casa dos seus parentes não tinha poço. Era uma caminhada exaustiva. Mas só ela podia fazer esse percurso, os rapazes estavam na roça e queriam comida na mesa quando chegassem. Antes de ver chegar ao açude, ela caiu de dor. Já vinha suando muito durante o trajeto.
— Que vida sofrida essa dessa mulher. Então como aconteceu?
— As dores do parto se intensificaram e ela não tinha ninguém perto para ajudar. Foi quando eu surgi. Eu estava em forma de parteira. Ela chorava muito e gritava de dor. Prometi que não deixaria nada de mal acontecer a você. Ela então me prometeu cuidar de ti. Mas eu não queria esse fardo. Então trapaceie. Ela estava convalescendo e me entregou sua alma e disse que lhe daria a uma família boa que cuidasse de você durante a vida. Foi o que fiz.
— Então você é um ser cretino.
— Ache como quiser, eu voltarei no fim e lhe buscarei.
E foi assim que o ser sumiu e nunca mais o vi durante 30 anos. Acabei me casando e tive três filhas. Já estava quase na idade de se aposentar. O ano era 2053. Nem preciso falar do quanto a tecnologia avançou. Carros voadores, autômatos fazendo quase todo tipo de funções e havíamos nos mudado de vez para o meio do sertão. Um lugar que ainda reinava longe da realidade virtual.
Me balançava numa rede, minhas filhas estavam passeando com suas namoradas e namorados. Duas delas namoravam meninas e uma delas namorava um rapaz. Meu marido comprou cerveja no Centro do município.
Quando vinha correndo em minha direção vindo da cerca, dois homens com facões, pensei agora era chegada o momento da morte me levar. Mas uma mulher negra apareceu e desarmou os homens. Deu uma surra neles, que saíram se mijando nas calças.
Me admirei com sua bravura. Mas logo mudei meu aspecto, quando a mulher se transformou na minha frente no mesmo ser vermelho e musculoso de quando eu morava no Meireles, no apartamento de frente ao mar.
— Eu disse que você me veria novamente. Eu voltei.
— Não estou entendendo. Se você voltou era para me ter morrido, já que vai me levar.
— Sim, mas não era o plano você morrer na mão desses homens. Sua morte será mais diferente do que imaginas.
— Posso pelo menos me despedir dos meus filhos?
— Tem 24 horas para dar os últimos abraços em seus entes queridos. Algo vai lhe acontecer e nem notaras o que é.
Era um domingo. Meu esposo fez churrasco. Filhas e genros estavam todos presentes. Foi um dia intenso e feliz, de sorrisos e estórias contadas. Às três da manhã, levantei-me da cama e saí lentamente para que ninguém percebesse. Olhei para meu esposo pela última vez. Fui ao quarto das filhas e olhei para elas, agarradas aos seus pupilos.
Sai de mansinho. O vento era tão gostoso do lado de fora da casa. Olhei para trás uma última vez. Abri a cerca e saí caminhando no meio das árvores. Cheguei finalmente à beira do açude. Lá estava a criatura com um punhal na mão. Havia um respeito no olhar. Eu havia vivido uma boa vida. Graças à minha mãe sofrida. Vivi até demais, depois de tantos traumas.
Fui me aproximando. Quando cheguei perto do diabo, ele estendeu sua mão e eu a toquei. Senti uma excitação diferente. Parecia que eu era uma adolescente. O ser se transformou em um homem bonito e fizemos um sexo de um orgasmo único. Quando senti o punhal atravessar meu peito. Cai na beira do açude. E apaguei.
Quando olhei, eu estava acordando. Será o inferno? Mas estava parecendo a cozinha da minha casa, as chamas se espalhavam. Eu corri, peguei o extintor e consegui apagar o fogo. Não parecia verdade. Eu era a mesma mulher de 32 anos. No mesmo apartamento. A campainha tocou. Eu abri. Era minha mãe.
— Filha, que fumaça é essa? Você está bem?
— Sim, estou. Você é real? Não é um sonho?
— Claro que não, querida. Você me ligou, lembra, dos pesadelos?
— Sim, mas era tão real.
Contei a ela tudo que aconteceu. Ela disse que não passava de um sonho.
Mas sonhos eram tão reais. Vivi 30 anos. Lembro de cada detalhe. De como conheci meu marido, numa trilha em Guaramiranga. Quando tive minhas filhas. Tudo era real para mim. Viagens, lugares onde eu andei.
Minha mãe ficou do meu lado alguns dias, enquanto eu trabalhava. Ela dormia na sala e eu no quarto. Parecia tudo tranquilo. Quando uma madrugada, eu acordei com um barulho vindo da sala. Testemunhei uma cena que me chocou. Tive que olhar da fresta da abertura da porta. Minha mãe conversava com o demônio. O mesmo que conheci e que me apunhalou 30 anos depois.
De manhã, fingi que nada aconteceu. Eu e minha mãe tomamos o café. Depois, eu a deixei fazer o almoço e peguei o carro e saí. Estou ainda escondida, num lugar secreto. Meu diário fala por mim, se um dia alguém achar. Pareço louca? Não sei. Mas o que presenciei foi verdadeiro. Ninguém pode me achar.