Um Cachorro Chamado Mito
Às vezes sou criticado por não estabelecer localização física ou temporal aos meus textos. A queixa geral é a de que não dá pra saber aonde ou quando aconteceram os fatos narrados. Mas adotei essa característica em meus textos sob a premissa de que algumas coisas poderiam acontecer em qualquer época, nesse ou n'outro mundo possível. Tomo como exemplo, o caso do cachorro.
Lauro estava levantando uma das portas de seu pequeno comércio, em frente à praça, quando viu o cachorrinho saindo de uma caixa de papelão abandonada na calçada oposta. Era um mestiço de pastor alemão, sujo e magro, que não devia contar mais do que quatro meses.
Assim que pôde, o rapaz atravessou a rua com um vasilhame de comida e outro de água. Os vizinhos - apesar de nenhum filho de Deus se candidatar à adoção -não demoraram em arrecadar uma pequena soma em dinheiro para comprar uma casinha e dar abrigo ao animalzinho ali na praça mesmo. Estavam todos de acordo sobre o preocupante aumento de casos de furto a residências, roubos de veículos, assaltos nos pontos de ônibus entre outros delitos mais ou menos graves, e um cão policial -como imaginavam - ajudaria na segurança geral do entorno. Nem que fosse ao menos para dar alarme à noite.
- E como vamos chamá-lo, Lauro? Já pensou em algum nome?
- Mito! Vai se chamar Mito.
E as crianças, em sua inocência e carentes de um herói a quem chamar de seu, não demoraram em arranjar tinta e a pintar na entrada da casinha: "Mito, nosso DEFENSOR!"
O tempo foi passando e o cachorro, naturalmente, crescendo e se impondo por sua força e tamanho. Ficaram famosos os casos em que o animal atacou dois ladrões de veículos e os impediu de fugir até que a polícia chegasse, a ocasião em que desarmou um marginal no ponto de ônibus e o episódio em que salvou Lauro de uma emboscada enquanto ele fechava o estabelecimento no começo da noite. Mito se tornou o paladino das famílias e daquela pequena sociedade. E foi crescendo, e se inflando, cada vez mais forte e dono de si. No entanto, algumas pessoas mais ponderadas logo perceberam que o cachorro, apesar do grande porte, não passava de um vira-latas. Estava anos-luz de um cão pastor de verdade. Não possuía temperamento estável, tampouco as características de um bom cão policial. Não era confiável, leal ou justo (eu sei, justiça não é um adjetivo aplicável a cães). Suas atitudes começaram a se alinhar com suas conveniências e a de seus simpatizantes. E se multiplicavam os relatos de safadezas do cachorro. Destruíra o canteiro de flores há muito cultivado por dona Selma lá na praça. Atacou um garoto, apenas por que esse corria e gritava alegremente por entre os brinquedos do playground. Roubou uma peça de carne no balcão de retaguarda do açougue, entre outros pequenos delitos. E como se não bastasse, deu para latir a noite toda, para qualquer coisa ou mesmo sem motivo aparente, tirando o sono de muitos moradores daquela localidade. Exceto dos que dele gostavam, sendo um mistério o irredutível testemunho que davam de um sono tranquilo. Viram o Mito pequenininho - "nascer", como diziam - e não acreditavam em nada do que pudesse desaboná-lo. Do mesmo modo como ainda o enxergavam um cão policial puro e meritoso. Para eles era Deus no céu, Mito na Terra. Lauro ainda menos. Falassem mal (o que simplesmente se resumia a dizer a verdade) da mãe dele, do padre, do Papa... mas não do cachorro. Começaram a aparecer algumas fortes marcas de urina também nas suas duas portas do seu comércio (muitos outros comerciantes já reclamavam). Algo bastante incoveniente, pelo mau cheiro e pela corrosão que promovia. Alguns vizinhos, que acordavam mais cedo para ir trabalhar, o avisavam:
- Lauro, o Mito vai acabar com o seu maior patrimônio. Suas portas estão enferrujando por causa daquele cachorro sem vergonha. Tanto espaço na praça...
- Eu percebi. Mas não é o Mito. Outros cachorros estão vindo aqui. Ele jamais faria isso. Eu o criei, o alimentei. Cuidei dele. Ponha uma coisa na sua cabeça: Mito é Mito.
Seus interlocutores argumentavam que se ele colocasse câmeras se convenceria pelas imagens, e que outros cães nem conseguiam se aproximar da praça. Mito não deixava, e reinava soberbo - afirmavam. Ele inclusive havia matado um desavisado cãozinho na mesma semana. Mas Lauro estava irredutível. Uma verdadeira rede de intrigas havia se formado contra o cão, pensava. Pessoas que não gostavam da ordem e da paz que ele havia proporcionado à comunidade.
Um dia, um desses vizinhos filmou o cachorro urinando na porta do Lauro. De perto, de longe, de lado, de frente, de costas... Por fim, não satisfeito, o vira-latas defecou na calçada do estabelecimento. Um monte digno de qualquer cachorro grande. Lauro viu as imagens, e não teria como negar.
Mas negou.
- Quer que eu chame o V.A.R., Lauro? Ficou louco ou cego?
- Essas imagens são adulteradas. Certeza! Uma fraude digital. Estou te dizendo: O Mito não faz nada de errado aqui! Só nos ajuda. Só melhorou e melhora nossas vidas! É praticamente um herói sem máscara, capa ou espada.
O vizinho se exaltou e xingou o cachorro. Lauro disse que ninguém ali, no seu comércio e na sua presença falaria mal do seu cão. A coisa fugiu do controle, agrediram-se fisicamente. Lauro sacou uma arma, matou o homem e fugiu do local.
Hoje, foragido da justiça, o comerciante recebe ajuda clandestina. Aos partidários do Mito, que o socorrem levando roupas e alimentos, ele sempre pergunta (esquecendo-se que tem esposa e três filhos):
- E o Mito, está bem? Não me deixem sem notícias dele!
Dizem que o cachorro sem vergonha sumiu de lá, e que hoje a praça está ocupada por outros cachorros que apenas mudaram de raça ou cor. Tragicomicamente, a cada oito anos, mais ou menos, o local sofre com a ocupação dessas criaturas; chegam, são alimentadas pelas pessoas, crescem, e começam a dominar o pedaço. Como pouquíssimos moradores conseguem enxergar que se trata de lobos disfarçados de cordeiros - em parte porque não recebem educação e em outra porque preferem choperias a teatros, ou, ainda, por que não aceitam terem suas convicções confrontadas - dá um trabalhão livrar-se delas. E a comunidade segue caminhando de lado, na base de um passo para frente e dois para trás.
[reeditado e republicado]