INFERNO EM LONDRES

INFERNO EM LONDRES

Londres- ano de 1349

Nos arredores da cidade, Sara cantava enquanto recolhia ervas medicinais que ela ia guardando num cesto de vime. Herdou da mãe o ofício de curandeira. Fazia chás, unguentos, pomadas e óleos. Muitas pessoas, principalmente os pobres, a procuravam para curar um resfriado, males do estômago e dores de garganta.

Enquanto isso, a 49 quilômetros dali, um navio mercante vindo de Amsterdã, atracava no porto da cidade. Dos 23 marinheiros que tinham iniciado a viagem, somente 3 deles chegaram vivos ao destino. Disseram que haviam contraído uma doença misteriosa e foram morrendo um a um. Durante a viagem os mortos foram jogados no mar.

Do navio desceram outros passageiros, esses eram animais, mais precisamente ratos que vieram escondidos nos porões. Quando as mercadorias foram retiradas da embarcação, eles desceram pelos cordames, e escondidos entre a carga.

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Sara estava feliz e tinha uma boa razão. Peter Anderson, rapaz virtuoso filho de um colono, homem honrado, havia pedido sua mão em casamento. Ele iria à sua casa com o pai, já que o dela era falecido, para oficializar o pedido, marcar a data do matrimônio e a festa.

Eles tinham se encontrado no campo alguns meses atrás e se tornaram amigos e parceiros. Da amizade nasceu um sentimento mais forte e eles decidiram se casar. Peter era um rapaz honesto, correto. Queria fazer tudo conforme a lei e os costumes.

Quando chegou no mercado, Sara encontrou um grupo de pessoas ao redor de alguém caído no chão. Ela se aproximou e viu o pai de Peter chorando sobre o corpo e só então, descobriu que o morto era Peter. A sua alegria esvaiu-se. O riso tornou-se em dor e lágrimas.

Peter havia sido encontrado morto, boiando no rio. Presumiu-se que ele tenha ido nadar, sentiu-se mal e se afogou. Não havia nenhum ferimento que indicasse outra coisa. Estava só de cuecas, o que reforçava a suposição.

Mas Sara não acreditava que tinha sido acidente. Achava que a morte de Peter foi obra de James Smith. Por diversas vezes James a tinha abordado com propostas de casamento, viagens e uma vida de luxo. Ela sabia que ele tivera 6 esposas, 4 delas sumiram misteriosamente. Oficialmente, elas tinham abandonado o lar.

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Rochester, Inglaterra – Alguns anos antes...

Devido a sua infertilidade, o conde de Rochester, William Greystone, sequer pensava em casar com uma mulher da nobreza. O casamento poderia ser anulado caso a esposa quisesse um filho. Achava que poderia até ser ridicularizado. Por esses temores, ele optou por casar com a filha de algum fidalgo arruinado, uma mulher que não quisesse ter filhos.

Quando Mary Smith casou com William Greystone sabia que ele não podia ter filhos devido a um acidente acontecido na adolescência. Quando a pediu em casamento, o próprio conde contou a ela sobre o acidente que sofreu durante uma caçada ao javali. Mary, filha de um armador arruinado da marinha mercante, aceitou de imediato, pois o conde era rico, proprietário de terras que ele arrendava para colonos.

Mary não o amava, o casamento foi por conveniência, mas ela tinha sentimentos, desejos e esses, afloraram à sua pele quando conheceu Jeffrey de Verne, comerciante de tecidos.

Ela sempre procurava uma desculpa para ir à tenda dele, no mercado. Ficaram amigos e logo se tornaram amantes. Mesmo se cuidando, Mary acabou ficando grávida. Os enjoos e sua alteração de humor, além da barriga crescendo, foi notada pelo conde. Eles tiveram uma tremenda discussão e William declarou que pediria a anulação do casamento.

Vencida pela situação complicada, Mary concordou com a separação, crendo que Jeffrey de Verne a ampararia. Triste ilusão. O comerciante havia sumido da cidade. Não se sabe se ele foi embora ou se foi morto a mando do conde. Apesar da mágoa por ter sido traído, para não deixar a ex esposa sem eira nem beira, o conde deu a ela uma de suas fazendas para que pudesse se manter.

Mary achava que teria uma menina e até fazia roupinhas para ela. Ficou decepcionada quando a parteira anunciou que era menino. Chamou-o de James, mas nunca gostou realmente dele. Ela se sentia frustrada, desiludida, por ter sido abandonada por Jeffrey. A raiva que tinha pelo comerciante, transferiu para o filho dele. Como se ela não o tivesse gerado.

James Smith cresceu sem o amor da mãe, sem carinho e compaixão. Conseguiu vencer os seus traumas, mas não perdoou a mãe e de seus olhos não caiu nenhuma lágrima quando ela morreu, vítima de pneumonia.

Viveu sozinho por longos anos naquela fazenda. Fortes dores de cabeça o deixavam mal a ponto de ter alucinações. Via a mãe andando pela casa, dando ordens, xingando. Acordava para a realidade, desolado. Desde que ficara viúvo, se sentia muito só.

Ao ir à cidade à procura de remédio para sua enxaqueca, lhe indicaram uma curandeira chamada Sara Taylor. Ela o atendia com tanta solicitude e delicadeza que ele acabou se apaixonando. Pensou em lhe propor casamento e então, certo dia, descobriu que Sara tinha namorado. James tinha feito planos. Em sua cabeça, Sara era só dele. Acreditava que eles haviam nascido um para o outro. Peter Anderson era um intruso, um empecilho, era o demônio que queria afastar Sara dele.

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Quatro dias depois do sepultamento de Peter, James apareceu na casa de Sara. Ela tinha decidido ir embora de Londres, mas ainda não havia decidido onde ficar. Sabia que James a procuraria e não teve tempo de evitar o encontro.

─ Lamento o que aconteceu com seu noivo. Se precisar de alguma coisa é só pedir.

Sara não era ingênua, sabia bem que James Smith era dissimulado, falava apenas por falar. Embuste e dissimulação! “ Não tenha receio, disse o lobo para o cordeirinho”.

─ Não preciso de nada. Estou bem. Obrigada.

James se considerava irresistível. Ele estendeu a mão e acariciou o rosto dela.

─ Não precisa de nada, mesmo?

Ela recuou ao toque repugnante. James não gostava de ser contrariado, insistiu empurrando-a contra a parede. Resolveu usar a força. Procurou beijá-la enquanto a segurava pela cintura. Sara virou o rosto para o lado e viu uma panela ao alcance da mão. Não ficaria submissa, não tinha medo das consequências. Bateu com a panela na cabeça dele. Ele se afastou, meio tonto. Se recuperou e a olhou com ódio. Apontou um dedo trêmulo para ela e tentou dizer alguma coisa, mas desistiu e partiu bufando de raiva.

Por um momento Sara arrependeu-se por tê-lo agredido fisicamente. Porém, ele era uma pessoa obcecada, agressiva. Com esse argumento, ela recuperou o controle e achou que o que tinha feito foi por justa causa.

O que aconteceu dois dias depois, ela soube de imediato que era obra de James Smith. Dois soldados apareceram em sua casa, deram ordem de prisão e a conduziram para uma cela nos porões do prédio do Tribunal de Justiça. No dia seguinte, a levaram para a sala do tribunal para a acusação e julgamento. Estavam presentes um juiz, um promotor de justiça, um legista, um padre e um homem de aparência humilde. O que se seguiu foi apenas perguntas e respostas previstas para atingir a finalidade pretendida.

─ Como se chama? – perguntou o promotor.

─ Sara Taylor.

─ Meritíssimo juiz, essa mulher, Sara Taylor, foi acusada de ser uma feiticeira.

─ Tem alguma testemunha ou provas de que ela pratica feitiçaria?

─ Sim, meritíssimo, esse homem é testemunha. Qual o seu nome?

─ Oliver Crowley.

─ O que o senhor viu?

─ Vi essa mulher, que todos conhecem como curandeira, dançando com o demônio e pedindo a ele para conservar a juventude e matar seus inimigos. Ela usa fórmulas mágicas para praticar feitiçarias.

Oliver calou-se e o juiz sentenciou:

─ Sara Taylor, você é acusada de ser feiticeira e se for comprovado tais acusações, serás condenada à morte. Alguém tem a bula de instruções sobre feiticeiras e bruxas? Padre Cornélio?

─ Não, meritíssimo, não tenho. Apenas o bispo, Dom Nicholas e ele está fora da cidade.

─ Então, levem a mulher para a prisão e esperemos o bispo voltar para fazer o julgamento e ditar a sentença conforme a lei.

Sara foi levada de volta à cela. Ali ela ficou, desanimada, vencida. A acusação foi uma farsa. James devia ter pago uma boa quantia em moedas àquele homem pobre de bens materiais tanto quanto de espírito, para dizer aquelas mentiras. O juiz não precisava de provas físicas para condenar alguém, bastava a palavra do acusador. Não se interessava em saber se ele falava a verdade ou não. E o legista cuidava da sentença conforme a lei, mesmo que tal lei tenha sido criada 200 anos atrás.

Sara achava que não teria salvação, que morreria dali alguns dias na fogueira. A fogueira que simbolizava o fogo do inferno para purificar o espírito do condenado por crimes de heresia.

Naquela noite Sara não conseguiu ter um sono tranquilo. Em algum lugar daquele porão alguém se lamentava o tempo todo. De manhã trouxeram comida, sopa de legumes, mais água do que legumes. Não comeu, não tinha fome. Seu espírito cada vez mais esmorecia e o corpo também. Parecia estar com febre, sentia muito calor. Deitou-se. Depois veio o frio. Tremia.

Começou a ter visões. Não sabia se era sonho ou realidade. Estava no meio da rua e das casas saiam animais horríveis, de olhos vermelhos os corpos em chamas se atiravam contra as pessoas e as consumia no fogo. Homens, mulheres e crianças saiam correndo com seus corpos queimados, gritando de pavor.

Uma visão do inferno!

Acordou molhada de suor. Dois dias depois, um soldado a levou ao tribunal. O juiz, sentado em sua cadeira de espaldar alto, estava pálido e parecia cansado. O promotor permanecia ao lado de Oliver Crowley e do padre. O legista se mantinha afastado, apenas observando. O juiz iniciou a sessão, perguntando:

─ E o bispo? Por que não veio?

O padre respondeu:

─ Dom Nicholas se sentiu indisposto e pediu para ser dispensado. No entanto, mandou a bula.

O padre foi até o juiz e entregou a caderneta. O juiz leu e olhou para o padre.

─ Está em latim! Sabe traduzir isso?

Cornélio hesitou.

─ Não meritíssimo. Posso ler, mas não interpretar.

─ Isso não me adianta! Vamos adiar o julgamento até o restabelecimento do bispo. Levem a mulher para a cela.

As horas foram passando e ela perdeu a noção do tempo. Não sabia quando era noite ou quando era dia. Dormia ou apenas permanecia deitada, com a mente vazia. Não comia nada, preferia morrer de fome do que na fogueira. Certo dia, ao despertar, descobriu que a porta da cela estava aberta. Achou estranho.

Levantou-se e saiu para o corredor. Outras celas estavam abertas e vazias. Chegou à sala do carcereiro e não viu ninguém. Subiu uma escada com seus pés descalços, o vestido imundo, cabelos sem pentear e fedendo a suor. Desejava muito tomar um banho, ver o sol, caminhar pelo campo...

Chegou finalmente na porta que dava para a rua. Estava escancarada.

Sara saiu sentindo um cheiro estranho no ar. Chegando em outra rua, viu dois homens conduzindo uma carroça cheia de cadáveres, homens, mulheres e crianças, amontoadas como se fossem algo de pouco, ou nenhum valor.

Continuou andando e ao chegar na praça encontrou uma pilha de cadáveres. Alguns homens cavaram valas para enterrar os mortos. A praça foi transformada em cemitério.

Sara interpelou um dos coveiros.

─ O que está acontecendo? Por que tantos mortos?

─ Uma doença de causa desconhecida se espalhou pela cidade. As pessoas morrem em cinco dias. Não dá nem tempo para levá-los ao cemitério. Aconselho sair daqui antes que pegue a doença.

O homem parou de falar e continuou o seu trabalho. Sara seguiu adiante, queria chegar em sua casa. Queria ajudar a tratar os doentes. Ao dobrar uma esquina, deparou-se com um homem sentado no chão, recostado a uma parede. Ela surpreendeu-se ao ver James Smith com a camisa aberta, o peito, rosto e braços cobertos de pústulas sanguinolentas, crostas vermelhas com bordas arroxeadas. Ao ver Sara, ergueu a mão como que para pedir ajuda. Sem forças, deixou o braço cair, virou a cabeça para o lado e faleceu. Sara estava desolada. Estremeceu ao ouvir gritos. Adiante, uma casa estava tomada pelo fogo. Alguém imprudente, para conter o contágio, colocou fogo na residência.

As casas de madeiras, algumas mistas de madeira e tijolos foram construídas muito próximas umas das outras e logo as chamas se espalharam pelos quarteirões. Algumas pessoas doentes saiam de suas moradias com as vestes em chamas, como tochas humanas chegavam a correr alguns metros, gritando em agonia. Logo atrás fugiam ratos por debaixo dos assoalhos e de dentro buracos nos alicerces, chamuscados.

Sara ficou espantada. Estava acontecendo exatamente como no sonho. Ela pensou em fugir. Naquele instante alguém surgiu com uma carroça cheia de bugigangas. O homem puxou as rédeas do cavalo.

─ Sara! – chamou ele- Venha, vamos embora!

Era Carl Anderson, pai de Peter. Ele estendeu a mão e ajudou-a a subir. Ela acomodou-se na boleia e Carl chicoteou o animal, para fugir daquele inferno em que Londres se tornou.

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Esse conto é baseado em histórias reais ocorridas na antiga Londres, Inglaterra, o incêndio e a peste transmitida pelas pulgas dos ratos-pretos, que se espalhou pela Europa a partir do ano de 1346 a 1353.

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Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 11/04/2024
Código do texto: T8039303
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