Às máscaras do coração - Uma história sobre a natureza humana - 1° capitulo
Na noite do nosso nascimento, uma tempestade feroz desabou sobre Edimburgo. Trovões ribombavam e relâmpagos rasgavam o céu, suas luzes efêmeras dançando em sincronia com os gritos angustiados de minha mãe. Ela lutava, corpo e alma, para nos trazer à vida naquela atmosfera elétrica e carregada.
Eu, com uma aparência angelical, fui o primeiro a emergir. Minha pele era pálida como a lua, e meus olhos, grandes e curiosos, absorviam cada detalhe do mundo ao meu redor. Minha mãe me segurou com ternura, e o médico sorriu, reconhecendo a singularidade daquele momento.
Meu irmão, no entanto, veio logo após mim. Seu rosto era um estudo em contrastes. Feições que lembravam um monstro grotesco: olhos profundos, sobrancelhas cerradas e uma boca que parecia esculpida em sombras. Ele chorou com uma intensidade que ecoava a própria tempestade lá fora.
Desde aquele instante, ficou claro que éramos o contraste perfeito. Eu, a luz, e ele, a sombra. O visível e o oculto. Nossa jornada começou naquela cidade histórica, sob o olhar atento dos céus enfurecidos e o sussurro dos ventos antigos. E assim, em Edimburgo, entre trovões e relâmpagos, nasceu a dualidade que moldaria nossas vidas para sempre.
Nossos pais, perplexos com a diferença física tão marcante entre nós, nunca deixaram transparecer qualquer preferência. Estudamos em boas escolas, tivemos uma educação cuidadosa e parecíamos ter características comportamentais similares. No entanto, o que me intrigava era o que estava oculto por trás daquela máscara de normalidade que meu irmão usava tão habilmente.
Ele conseguia se mostrar sociável, encantador até, conquistando a simpatia de todos ao seu redor. Mas eu, seu irmão mais próximo, percebia algo sutilmente perturbador em seus olhos, uma sombra que parecia se mover conforme ele sorria.
Nossos vizinhos o viam como um jovem exemplar, sempre disposto a ajudar, a fazer o bem. Mas eu presenciei momentos em que sua raiva transbordava, revelando um lado obscuro que não condizia com a imagem que ele construíra.
À medida que crescíamos, essa dualidade se tornava mais evidente. Eu tentava ignorar, convencido de que era apenas uma questão de temperamento, de momentos difíceis que todos passam. No entanto, eventos estranhos começaram a ocorrer ao nosso redor, coincidências sinistras que pareciam seguir os passos do meu irmão.
Eu me perguntava se o verdadeiro monstro não era ele, escondido por trás de uma máscara de normalidade e bondade. E a cada noite, enquanto observava seu sono tranquilo, eu me perguntava o que mais ele escondia, e se algum dia sua verdadeira natureza viria à tona para todos verem.
Parecia que desde o dia em que nascemos, éramos um paradoxo vivente, eu e meu irmão. Enquanto eu era agraciado com uma aparência que muitos consideravam bela e angelical, ele tinha um rosto que parecia ter sido esculpido por pesadelos, uma visão grotesca que assustava até os mais corajosos.
Nossos pais sempre expressaram surpresa e, por vezes, desilusão diante da notável discrepância entre nós. Apesar de frequentarmos as mesmas escolas, em pleno século XIX, a boa educação inglesa demandava da família um certo poder financeiro, e uma riqueza considerável, abundância que meu pai e minha família possuíam em excesso devido ao seu trabalho na construção de ferrovias ao redor do mundo. Tínhamos amigos em comum e, à primeira vista, compartilhávamos características comportamentais semelhantes. No entanto, por trás das aparências, residia um mistério que eu lutava para desvendar.
Meu irmão, apesar de sua aparência monstruosa, tinha uma habilidade incomum para conquistar as pessoas. Sua simpatia e charme eram como um véu que encobria o verdadeiro monstro que habitava seu coração. Enquanto isso, eu, com minha beleza superficial, muitas vezes me sentia distante das pessoas, como se minha aparência fosse uma barreira que me separava do mundo.
À medida que crescíamos, ficava cada vez mais claro que a verdadeira monstruosidade não residia em sua aparência física, mas sim em suas ações e intenções. Os incidentes estranhos e assustadores que ocorriam ao seu redor pareciam estar ligados a ele de alguma forma, como se uma aura sombria o envolvesse e atraísse o mal para perto.
Eu me perguntava se a beleza que eu carregava era apenas uma máscara superficial para esconder minha própria escuridão interior, enquanto meu irmão, com sua aparência grotesca, mostrava sem rodeios a verdade que estava por trás de seus olhos sombrios.
E assim, entre o belo e o grotesco, entre as máscaras que usávamos para enfrentar o mundo, a verdade sobre nós mesmos se tornava cada vez mais clara e assustadora. Afinal, quem era o verdadeiro monstro entre nós? E essa resposta, eu temia, poderia mudar tudo que pensávamos conhecer sobre nós mesmos e sobre o que é ser humano.
A habilidade fantástica do meu irmão para ver o mal era uma faceta intrigante e assustadora. Enquanto muitos considerariam isso um dom, para mim, era mais do que uma simples prova de que ele estava associado ao ruim e tenebroso. Suas palavras muitas vezes carregavam um peso sombrio, como se ele visse além da superfície e enxergasse a verdadeira natureza das pessoas e das situações.
Conforme os anos foram passando, crescemos e ingressamos na faculdade, onde optamos por cursar Medicina. Nossos pais acreditavam que essa era a melhor escolha para nós, dada nossa habilidade acadêmica e interesse pelo funcionamento do corpo humano. Tornamo-nos excelentes alunos nessa empreitada, destacando-nos principalmente nas aulas de Anatomia Humana.
Foi durante essas aulas que eu comecei a perceber algo perturbador sobre meu irmão. Enquanto eu estudava o corpo humano como uma estrutura física, meu irmão parecia interessado em algo mais profundo, algo que ia além dos ossos e músculos. Sua expressão durante as dissecações muitas vezes era sombria, como se ele estivesse em busca de algo além do visível.
Certa vez, durante uma prática de dissecação, meu irmão fez um comentário enigmático que ecoou em minha mente por dias a fio. Ele disse que era capaz de sentir a presença do mal nas pessoas, como se houvesse uma aura sombria ao redor daqueles que carregavam intenções malignas. Aquilo me arrepiou, pois eu sabia que ele não estava falando figurativamente.
À medida que mergulhávamos mais fundo nos estudos, percebi que meu irmão estava se distanciando cada vez mais de mim. Sua busca pelo entendimento do que ele chamava de "verdadeira natureza humana" o consumia, e eu me via cada vez mais isolado, tentando entender o que estava acontecendo dentro da mente sombria do meu irmão.
A faculdade de Medicina, que deveria ser um momento de aprendizado e crescimento, tornou-se um campo de batalha silencioso entre nossas visões de mundo opostas. Eu tentava focar nos aspectos positivos da profissão médica, na cura e no cuidado com os outros, enquanto meu irmão parecia obcecado pela escuridão que ele acreditava existir dentro de cada ser humano.
E assim, entre as práticas de dissecação e os estudos intensos, nossa relação como irmãos se tornava cada vez mais tensa e obscura, como se estivéssemos dançando à beira de um abismo, sem saber quem cairia primeiro na escuridão que nos cercava.
Algo estranho estava acontecendo comigo durante as aulas de Anatomia. O simples fato de observar corpos inertes dos falecidos não era suficiente para satisfazer minha curiosidade. Eu queria compreender mais do que apenas a estrutura física, eu queria entender o funcionamento interno, os processos vitais que regem a vida e a morte.
Passava noites em claro imaginando o fluxo sanguíneo, os batimentos cardíacos, a respiração pausada que marca o fim da vida. Enquanto eu buscava respostas para minhas perguntas internas, notava meu irmão sempre observando-me de maneira intrigada, como se ele conseguisse ler meus pensamentos e desejos mais profundos.
Sua presença constante ao meu lado durante esses momentos despertava em mim um misto de curiosidade e inquietação. Eu me questionava se ele também compartilhava do meu interesse em compreender a complexidade da vida e da morte ou se havia algo mais sombrio por trás de seu olhar perspicaz.
Enquanto tentava entender meus próprios pensamentos e anseios, ficava cada vez mais claro que havia uma ligação estranha entre nós, uma conexão que transcendia as barreiras do entendimento comum. Eu desejava explorar os mistérios da existência, mas ao mesmo tempo temia o que poderia encontrar ao olhar para o abismo do desconhecido. E meu irmão, com sua presença enigmática, parecia estar sempre um passo à frente, observando cada movimento meu com um interesse que eu não conseguia decifrar completamente.