Um sobrevivente
Lembro-me da minha primeira vítima. Tão saborosa...
Em uma madrugada de sexta-feira, avistei um garotinho voltando para casa e o segui. A saliva escorria da minha boca; eu tentava me conter, mas a necessidade era avassaladora. O desejo transcendia o meu ser. Quando o garoto apoiou uma das mãos na maçaneta da porta de sua casa, com uma rapidez que nem eu mesmo acreditava, arranquei um pedaço de seu pescoço com uma única mordida e suguei todo o seu sangue antes de retornar à minha moradia. Ao mesmo tempo em que odiei ter feito isso, experimentei uma sensação de prazer intenso. Era como uma substância química que nos proporciona um prazer momentâneo em excesso.
A crítica direcionada à minha espécie é avassaladora; somos chamados de demônios pelo que somos. Os humanos criam e abatem diversos animais para sobreviver, e nós seguimos o mesmo padrão. É uma questão de matar para viver ou não matar e perecer. Para maioria de minha espécie, é algo tão natural quanto cortar um bife em seu prato e degustá-lo, porém, eu sou diferente.
Há mais de 6 meses privado do alimento que me proporcionaria a glória da vida eterna. Alimentar-me de outros animais não me traz à saciedade necessária, e o sabor é insuficiente. Beber o sangue e consumir os órgãos vitais de outros primatas são as opções que se aproximam, no entanto, a diferença é marcante. Meu corpo anseia por sangue e carne humana; sem isso, minha existência está ameaçada.
Questões éticas e morais me atormentam; há um ano atrás, eu era humano, hoje sou um vampiro. Inicialmente, ceifei vidas humanas para me alimentar, porém, surge uma reflexão profunda: embora possa não ser mais um deles, há pouco tempo eu era. Essa contradição agita minha mente. O que devo fazer? O sangue e a carne de outros animais não suprem todas as necessidades do meu corpo para a sobrevivência; talvez eu consiga prolongar minha existência com isso por mais alguns dias até o inevitável desfecho.
Eu era um humano comum, levava uma vida simples em uma casa com uma família igualmente comum. Em certo dia, vampiros invadiram a vila onde residia e desencadearam um massacre. A mandíbula poderosa dessa espécie era capaz de quebrar ossos com uma única mordida e devorar suas vítimas. Foi um dia de terror. Invadiram minha casa, ceifaram a vida de minha família; tentei lutar para salvá-los, porém, em vão, minha determinação não foi suficiente; mas ao invés de destruírem o meu corpo, destruíram minha alma, ao me transformarem em um deles. Nesse momento, caçadores armados surpreenderam-nos e eliminaram todos. Ao perceberem minha transformação, dispararam contra mim, mas consegui escapar.
Hoje vivo na mata, próximo a algumas fazendas, onde me alimento de primatas e às vezes de gado. Quando me alimentava de humanos, cada mordida saciava todo o meu ser, mas dilacerava o meu espírito.
Essa decisão final está me deixando cada dia mais angustiado. Matar ou não matar? Matar ou morrer? Ao não ceifar vidas humanas, meu próprio corpo se consome. Não há solução. A tentação de retornar é constante, não é fácil resistir por tanto tempo, especialmente quando minha sobrevivência depende disso e quando estou ficando debilitado. Já não pertenço mais à espécie humana, então essa empatia precisa ser extinta, ou a morte será minha companheira.
Sem a alimentação adequada, enfrentarei sofrimento. Meu sistema imunológico enfraquecerá; os microrganismos internos que auxiliam em processos bioquímicos começarão a se alimentar do meu próprio corpo; meu cérebro começará a definhar e, antes da minha morte, enlouquecerei. Será o fim do meu ser. Mesmo nessa existência em que tudo perdi, não desejo a morte. Quero viver. Mesmo sem um propósito definido, anseio pela vida.
Estou a poucos dias da minha morte, perdendo a sanidade, e já tomei minha decisão. Amaldiçoados sejam aqueles que evitam escolhas difíceis, que não assumem a responsabilidade por sua própria sobrevivência, que não salvam seu próprio ser quando não há mais ninguém para salvar. Minha vida se encerrou quando me transformei no que sou, no instante em que minha família chorou, gritou e pereceu sem poder se despedir. A fome nos revela quem realmente somos, e hoje posso enxergar claramente quem realmente sou. Um sobrevivente.