EU E OS OUTROS

INGLATERRA- 1831

Meu nome é Milton Karloff. Vou lhes contar a minha história, embora fantástica, é real.

Era inverno quando comecei a trabalhar naquela casa em Millbank, próximo do rio Tâmisa. Uma casa que parecia mais um castelo de tão grande e bonita. Dizem que pertenceu a lorde Byron. O novo proprietário recém estava morando nela e precisava de mais um empregado.

Morei no distrito de Winchester e trabalhei numa mina de carvão. Houve um desmoronamento na mina, causando 16 mortes. Escapei de morrer porque estava perto da saída. Depois da tragédia a mina foi fechada.

Sem emprego, me mudei para Londres, onde aluguei um quartinho com o dinheiro da indenização. Saía todos os dias a procura de trabalho em casas de comércio, estábulos, ferrarias e tavernas. Foi numa taverna que conheci Tom Cavor. Ele estava bebendo no balcão e me ouviu pedir emprego ao taverneiro. Disse para eu ir à casa de número 77, na Flowers Street, em Millbank, que lá estavam precisando de um empregado doméstico.

Serviço doméstico, pensei cá comigo, é para mulher, mas aí me lembrei que havia outros afazeres para homens numa casa de familia, cortar lenha, cuidar do jardim, limpar o estábulo, consertar o telhado e muitos outros. Assim pensando, me dirigi na manhã seguinte, como Tom recomendou, para a casa de número 77 da Flowers Street. Quando bati na porta, o próprio Tom me recebeu. Ele tirou o relógio do bolso e consultou as horas.

— Na hora certa – disse, com aquela cara de poucos amigos, que parecia ser sua expressão natural. Parece que Tom já nasceu daquele jeito! — Isso é um ponto a seu favor. - completou, acabando de abrir a porta. Ele me guiou através de uma sala praticamente vazia, até um curto corredor onde ficava o gabinete do patrão.

Confesso que nunca vi um gabinete tão bonito e lustroso como aquele. As paredes eram forradas com madeira envernizada, tinha uma estante com livros, uma mesinha com um astrolábio e uma caixa de charutos. Foi o que eu notei de relance. O patrão estava sentado atrás da escrivaninha de madeira escura e lavrada. Era jovem, tinha entre 30 a 35 anos, rosto quadrado, de queixo ossudo. Os olhos castanhos e o cabelo da mesma cor, lisos, deixavam o rosto sombreado. Não era tão carrancudo quanto Tom, mas notava-se um brilho de seriedade e circunspecção no olhar e na linha levemente curva dos cantos da boca.

Fez as perguntas de praxe, onde eu morava, se tinha família, se tinha referências de trabalho. Falei que era solteiro e mostrei minha inscrição de mineiro e ele ficou satisfeito. Explicou que meu serviço seria ajudar Tom nos afazeres da casa, principalmente cuidar duma fornalha e uma caldeira no porão. A fornalha era alimentada com carvão, o que me deixou satisfeito por poder voltar a sentir o cheiro característico daquele mineral.

— Se o senhor quiser, pode morar na casinha dos fundos, tem uma cama lá, além de privada e banheira. Só não lhe posso dar alimentação, eu mesmo almoço e janto fora.

— Eu vou aceitar a sua oferta, assim, posso economizar no aluguel.

— Muito bem. Vamos tratar dos seus honorários.

***

O salário era o dobro do que eu ganhava como mineiro e ainda não precisava pagar aluguel. No dia seguinte, levei meus parcos pertences para a mansão, ou seja, para a casa dos fundos, uma construção de tijolos com duas peças, quarto e sala. A entrada do porão ficava logo em frente. Ele consistia num aposento amplo, não do mesmo tamanho da casa, mas espaçoso o suficiente para conter uma fornalha, canos de cobre, um depósito para o carvão e um armário de ferramentas. A claridade do dia e o ar fresco, entravam por duas janelas pequenas, uma em cada lado, protegidas por tela de arame para impedir a entrada de ratos, gatos e morcegos. Em dias nublados, era necessário acender lampiões, pois o lugar ficava mais sombrio do que já era. Quem não estivesse acostumado com lugares fechados e apertados, não aguentaria permanecer muito tempo ali. Como trabalhei numa mina, não me incomodei com o ambiente.

A fornalha esquentava uma caldeira de onde saiam tubos de cobre que subiam para o interior da mansão. O vapor quente passando pelos canos entre as paredes, aquecia a casa no inverno. Tom explicou que o vapor também gerava energia para instrumentos e máquinas no laboratório do patrão. A caldeira era provida de válvulas de segurança para expulsar a pressão excessiva, eu não precisava me preocupar com esse detalhe, mas sim, com o fogo e o calor, tinha que manter a temperatura constante, sempre entre dois níveis.

Na manhã seguinte acordei com Tom me sacudindo pelo ombro. Tive um sono tão pesado que não o vi entrar.

— Vista-se e venha ao pátio me ajudar a descarregar alguns caixotes.

Vesti a roupa e sai. No pátio estava uma carroça sem cavalo. Os dois animais comiam feno diante do estábulo e o cocheiro, sentado num banco, tomava o desjejum. Ele devia ter viajado a noite toda. O sol recém se erguia no horizonte e o ar era frio.

Havia cinco caixotes na carroça, três pequenos e dois grandes. Tom pegou um dos pequenos, mandou eu pegar outro e segui-lo. Entramos na casa pela porta dos fundos e subimos uma escada até o sótão. As caixas maiores eram mais pesadas e foram necessário nós dois para carrega-las. Depois desencaixotamos o conteúdo, aparelhos e instrumentos estranhos, os quais, não consegui saber a utilidade.

— Para que servem isso? – indaguei. Tom me olhou contrariado, como se dissesse; isso não é da sua conta!

— O patrão é médico, vai usar os aparelhos em suas pesquisas. É só o que você precisa saber. O patrão não gosta que ninguém venha ao sótão. Ele vai fazer experiências com ratos e coelhos infectados com doenças mortais. Quem não estiver vacinado pode morrer. Então, a partir de hoje não ponha os pés dentro desta casa. Fique apenas no porão ou na sua casa e só entre se o patrão chamar, entendeu?

Fiquei um pouco assustado com a possibilidade de pegar uma doença grave. Já tinha ouvido falar que alguns cientistas, tentando encontrar a cura para certas doenças, eles mesmos muitas vezes, adoeciam e morriam contaminados.

Julguei necessário obedecer ao aviso e às regras. Eu queria trabalho, um salário, lugar para dormir e ali eu tinha. Não me preocupei com mais nada, nem com as atitudes estranhas dos meus patrões, ou com as batidas de Tom à noite na porta de meu quarto, às vezes de madrugada, para tirar fardos da carroça e leva-los para uma sala de pesquisas no andar térreo. Outros dias era ajuda-lo a carregar fardos para a carroça, conteúdo que eu não conseguia identificar, mas que exalavam mau cheiro, como de coisas podres.

Tom dizia que eram animais mortos, que o patrão utilizava em suas experiências. Eles os jogaria em algum pântano, longe da cidade.

Os dias foram se passando. Naquelas duas semanas não tive folga.

— O doutor está empenhado em concluir uma pesquisa e precisa da caldeira funcionando. – disse Tom — Está esgotado, mas quer completar o trabalho. Portanto, quando ele concluir o que está fazendo, vai nos dar alguns dias de folga.

Alguns dias sem trabalhar! Tentei imaginar o que faria. Passear no campo, talvez. Quatro dias depois, acordei com Tom batendo na porta.

— Acenda a caldeira imediatamente! - disse ele, num tom de urgência e voltou a sumir. Quem sou eu para ficar fazendo perguntas e tentar imaginar o porquê das coisas? O calor da fornalha ainda aquecia a casa, mesmo assim, fui cumprir a minha obrigação. Uma carga de carvão desabou pelo duto no depósito. Tom sempre se preocupou em deixar o depósito cheio. Abri o registro da água para encher o bojo, depois coloquei o carvão na fornalha e acendi o fogo.

Trabalhei até de madrugada. Pouco antes do amanhecer, a campainha tocou. Abri os registros para liberar o vapor. Tirei as luvas, o avental de couro, me lavei e fui dormir um pouco. Acordei com Tom me sacudindo pelo ombro.

— Acorda, preguiçoso! Veja o que o patrão nos mandou.

Sobre a mesa havia pão, queijo, galinha assada, peixe seco, salame e uma garrafa de vinho. Fiquei deveras surpreso com aquele gesto do patrão.

— É uma recompensa pelo nosso trabalho. Um esplendido almoço para recuperarmos a força, o vigor, depois de uma noite insone.

Tom cortou o pão, um pedaço de salame, de queijo, galinha, colocou em dois pratos e me deu um. Encheu dois copos de vinho.

— O patrão não é de dar regalias – disse ele entre uma mastigada e outra. – Aconteceu que ele teve sucesso numa experiência e decidiu dividir conosco a sua alegria.

— Há quanto tempo o senhor trabalha aqui?

— Uns cinco anos. Eu morava na rua, vivia de esmolas e pequenos serviços. O patrão tem uma clínica, me contratou para cuidar dos cavalos e conduzir a carruagem dele. Depois de alguns dias comecei a fazer outras tarefas de confiança e acabei sendo o mordomo. O patrão é muito bom, saiba que ele nos deu dois dias de folga. Aproveite para passear.

Eu não tinha lugar nenhum para ir e estava nevando. Preferi ficar em casa, tomando vinho e comendo queijo assado.

***

Acordei quando algo tocou meu rosto. Foi como uma brisa leve, ou o toque de uma asa de borboleta em minha face. Abri os olhos e fiquei surpreso ao ver uma mulher ao lado da cama. A princípio achei que sonhava, mas percebi que já era dia, então tive certeza que era real. Ela parecia confusa, olhou para mim, depois ao redor, fazendo um gesto vago. Tentou falar, mas a princípio as palavras saíram emboladas, sem sentido. Não consegui imaginar o que estava fazendo ali, o que queria. Pelo que eu sabia, apenas o patrão e Tom moravam naquela casa.

Ela usava um vestido simples, de linho, com alças nos ombros. Estava descalça, seus cabelos eram longos, pretos e estavam revoltos como se ela tivesse acordado e esquecido de penteá-los. O rosto redondo de pele clara, os lábios pálidos, os olhos fundos tinha um brilho febril.

— Como se chama? O que veio fazer aqui?

Novamente ela fez um esforço para falar.

— Não sei! Não me lembro de nada! Eu estava na casa, não havia ninguém, desci e vim parar aqui.

— Onde mora?

Ela sacudiu a cabeça, olhando ao redor.

— Não lembro. Estou confusa.

— Vou leva-la ao doutor. Ele examinará a senhora e lhe dará algum remédio para acalmar os nervos.

A mulher arregalou os olhos, segurou meu braço com mãos trêmulas.

— Não! O doutor não! Ele é mau.

Fiquei surpreso com a reação dela. O doutor era mau? Eu não sabia, aliás eu pouco sabia da vida particular do médico. Julguei que ele tivesse feito alguma experiência médica com a mulher. Algo que tenha lhe causado algum transtorno, um trauma mental.

Resolvi ajuda-la. Talvez se lhe desse um tempo, ela acabaria lembrando o que tinha ocorrido.

— A senhora esteve na casa? No laboratório dele?

Ela hesitou, refletindo por alguns instantes. Pela expressão do rosto via-se o esforço para tentar se lembrar.

— Sim, eu estava numa cama com um aparelho na minha cabeça, um aparelho que me dava choques elétricos. Fiquei lá o dia todo enquanto o médico me examinava e fazia anotações numa caderneta. Quando acabou adormecendo, consegui me desamarrar e sair.

Eu já tinha ouvido falar que, em certos hospitais, os médicos davam choques elétricos nas pessoas que sofriam de doenças mentais. Considerei que, se o patrão era mau, não podia pedir ajuda a ele, tampouco a Tom que devia saber das atividades ilícitas do médico. Bem, se não estavam fora da lei, pelo menos as práticas médicas eram imorais e desumanas.

Resolvi ocultar a mulher enquanto sairia para procurar um parente dela. Estava amanhecendo, era meu dia de folga, então poderia sair sem me preocupar com o trabalho. Mas por onde começaria? Ela não se lembrava de nada! Então tive uma ideia. Talvez o patrão tivesse algum documento sobre ela em seu laboratório. Seria perigoso entrar lá às escondidas, mas resolvi me arriscar.

Pedi para a mulher ficar no meu quarto e me dirigi para a mansão. Entrei por uma janela e subi ao sótão. Evitei fazer barulho, andando como um gato furtivo. Coloquei o lenço no rosto para não respirar ar nocivo como fazia na mina e entrei no laboratório. Havia ali uma infinidade de instrumentos e aparelhos. Bem no centro do aposento estava um leito com correias para prender os pacientes que sofrem de convulsões. Sobre uma mesinha, um capacete de metal com fios ligados a uma máquina.

Encontrei sobre um armário baixo, um formulário médico. Peguei-o e verifiquei que era o atestado de óbito de uma mulher chamada Anna Marley, mas não havia endereço.

As gavetas do armário estavam trancadas e comecei a procurar pelas chaves. Foi então que olhei com mais atenção para os frascos de vidro nas prateleiras, no fundo do aposento. Fiquei espantado ao descobrir que eles continham órgãos humanos, pés, mãos, coração, fígado e até a cabeça de homem! Tudo conservado, boiando num líquido amarronzado. Havia também, um tanque num canto, fechado com uma tampa de metal que eu não tive coragem de abrir para ver o conteúdo.

Horrorizado, sai apressado daquele lugar. Quando cheguei no pátio, vi a mulher saindo pelo portão. Havia nevado durante a noite, estava muito frio e mesmo assim, ela não pegou nenhum agasalho.

Corri atrás dela, pois achava que tinha a obrigação de ajudá-la a encontrar seus familiares. Eu nem imaginava que ela era Anna Marley, que o doutor havia comprado seu corpo para fazer experiências para ressuscitar os mortos e que ele teve êxito, ressuscitando Anna.

Anna Marley correu para atravessar a linha férrea em direção a igreja de Westminster. Corri atrás dela. A neve estava alta em alguns lugares, difícil para correr. Anna diminuiu a corrida como se estivesse cansada, ou por causa da neve.

Parou, aturdida, vacilou, levou as mãos à cabeça e caiu. Quando cheguei até ela, percebi que estava muito mal, respirava com dificuldade. O corpo estendido sobre a neve, os braços abertos, os olhos já sem vida, fitava o céu plúmbeo. Seu rosto e braços, a pele, tornou-se azulada, depois escureceu e diante de meus olhos incrédulos, se desfez em carnes podres.

Recuei apavorado ouvindo um som estridente, repetido, como um aviso de perigo.

O trem me pegou e arrastou sobre os trilhos e dormentes. Um turbilhão de sons e dores, a carne sendo cortada e estraçalhada pelo ferro frio em meio a neve. Muita dor e espanto. A última coisa que eu vi antes de morrer, foi minhas pernas e quadris estraçalhados de um lado e o tronco do outro, as vísceras espalhadas ao redor.

Junto aos restos de Anna Marley.

***

Quando acordei, em princípio, não me lembrava nada disso. Fiquei longo tempo deitado naquela cama, olhando para o teto daquele sótão sombrio, cheio de instrumentos e máquinas.

Depois chegou alguém, um homem de rosto severo e olhar determinado. O patrão! Reconheci de imediato. O nome dele estava gravado no avental branco, no lado esquerdo do peito; doutor Victor Frankenstein. Ele me examinou com um estetoscópio, verificou a pele, os olhos e os membros.

— Consegue se levantar? – perguntou. Não conseguia me mover, tampouco responder. Mesmo que eu fizesse força, nenhum som saiu da minha garganta.

— Vamos esperar mais um pouco – disse o médico e saiu. Ali fiquei o dia inteiro, Victor ia me ver de vez enquanto. Às vezes Tom aparecia, me dava uma olhada e voltava a sair.

Foi ao anoitecer que eu comecei a sentir o meu corpo, a ter a sensibilidade de tato. Também comecei a mover os dedos e a cabeça. Porém, o médico havia me prendido com correias para que não fugisse como fez com Anna.

Quando adquiri força nos músculos, arrebentei as correias e me sentei sobre a mesa. Vi com espanto que o médico havia me dado outro corpo, pernas e tronco. Órgãos de outras pessoas, costurados, formando eu, outro Milton, um homem remendado, eu e outros.

As lembranças ainda eram confusas, porém, conseguindo caminhar, ainda um pouco lento e rígido, decidi fugir daquela casa. Encontrei uma única calça, atirada num canto e a vesti. Fugi de madrugada quando Victor e Tom ainda dormiam.

As ruas estavam vazias, nevava. Apesar do frio, caminhei por um bom tempo, até achar um lugar para me esconder, um galpão que eu pensava estar abandonado perto de uma casa no alto de uma colina.

Foi a dona da casa que me encontrou encolhido num canto e me acolheu, dando-me roupas e um prato com caldo quente de galinha. Quando consegui falar, contei a ela a minha história. Seu nome era Mary Shelley. Ela era escritora.

2018-CLTS 11

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 31/03/2024
Código do texto: T8031653
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