O Cavalinho Azul - Parte II- O Realejo -

A bela menina sentada na porta de um bar esperava o pai acabar de jogar sinuca quando ele gritou:

- NÃO É POSSÍVEL, PERDI OUTRA VEZ! ANDE LOGO. JÁ QUE VOCÊ ESTÁ COM DINHEIRO, VAMOS A ESSA MERDA DE PARQUE!

Helena estava prestes a completar nove anos quando a mãe veio a falecer. Muito doente e cheia de ressentimentos, Virgínea só cerrou os olhos quando Joel prometeu que deixaria o jogo e a bebida para cuidar da filha. Mentiu. A menina contava apenas com os cuidados da Dona Emília, uma vizinha que se dizia sensibilizada com a situação da criança.

Todas as vezes em que o Parque São Sebastião chegava à pequena cidade, Helena era tomada por uma ansiedade que lhe fazia perder o sono. Joel sempre prometia levá-la e pagar um ingresso para que pudesse brincar no carrossel. Mas o dinheiro sempre acabava no jogo ou na bebida. Porém, por ter lavado a louça da Dona Emília uma semana inteira, dessa vez tinha a quantia exata.

Assim que entraram, Joel foi procurar alguém que pudesse lhe emprestar algum para tentar a sorte, já a filha correu para a bilheteria. A fila parecia interminável, mas já estava tudo planejado: assim que montasse, para que voassem ao sabor do vento, soltaria os longos cabelos. Enfim, quando chegou e exibiu os trocados sobre o pequeno balcão ouviu a voz gritante da mulher em meio a música fanhosa que as caixas de som exalavam de forma ensurdecedora.

- FILHA, O INGRESSO AUMENTOU! AINDA FALTA...

Em uma fração de segundo seu sorriso se congelou e os grandes olhos azuis umedeceram. A decepção desenhada no rosto da criança foi o bastante para que a jovem atendente meneasse a cabeça de forma negativa e falasse:

- Calma! calma! Me enganei, contei errado. Pode levar, vale em qualquer brinquedo pelo tempo de uma música.

Ainda se recuperando, Helena agradeceu, e driblando carrocinhas de pipoca e algodão doce correu para o tão sonhado carrossel. Muitas crianças, e alguns adultos sem noção, aguardavam na fila para que pudessem ter acesso ao brinquedo. Havia cavalinhos de todas as cores, tinha um amarelinho que era um luxo, mas o azul, sem dúvida, era o mais bonito.

A menina pedia a Deus para que quando a música terminasse tivesse a chance de correr para o seu preferido. Entretanto, já havia tocado tantas que lhe deu a chance de montar em todos, exceto o azul. Então, contrariada, voltava para o final da fila. Tudo parecia conspirar contra ela até que, finalmente, a música findou, e, estalando como em um jogo de roleta, o carrossel lentamente foi perdendo força. As crianças entontecidas apearam de suas montarias e, quando o portãozinho foi aberto para que saíssem e novos participantes pudessem embarcar, eis o majestoso cavalinho, inerte, bem à sua frente.

O rosto enrubesceu e o coração acelerou quase em fuga pela boca escancarada. Apesar do rapaz que recolhia os ingressos gritar para que entrasse, fingia não ouvir. Queria esperar para ter a sensação de que ainda não era a sua vez, entristecer, e de volta à realidade correr para o sonho. Já estava prestes a entrar quando viu uma garotinha hipnotizada diante de tão imponente brinquedo.

Helena deixou-se abater, e após sair da fila foi até a criança e disse:

- Você quer ir no cavalinho? É isso?

A menina fez que sim com a cabeça.

- Então pode ir, falou Helena lhe entregando o ingresso.

A menina sorriu, e saltitante em seu vestidinho rasgado, correu para o final da fila.

Criança de sorte, pensou Helena, pois pela segunda vez em seguida parou no cavalinho azul.

A bela canção "One Day in Your Life" começou a tocar e o carrossel aos pouco foi ganhando vida. O sincronizado sobe e desce da estrutura metálica fazia com que as crianças, e uns poucos adultos sem noção, agarrassem seus cavalinhos e, em meio a sonoras gargalhadas, simulassem o estalar de invisíveis chicotinhos. A alegria era contagiante e Helena, petrificada, se imaginava agarrada à cintura da menina que, iluminada em meio àquele redemoinho de luzes coloridas, tinha no olhar o brilho mágico que só a felicidade é capaz de dar.

A música terminou, e preocupada com o pai que já deveria estar metido em alguma confusão, foi à sua procura. Entretanto, antes de encontrá-lo já embriagado, se deparou com um menino que girava a manivela de um instrumento que até então nunca tinha visto. Era um realejo que, apesar da melodia flauteada, ninguém parecia ver ou ouvir. Foi então que o jovenzinho falou:

- Gostei da sua atitude em eternizar um momento de felicidade na vida daquela criança.

Havia um misto de tristeza e alegria na voz de Helena ao responder.

- Parecia querer muito, sei bem o que é isso.

- E pelo visto não podia pagar. Mas se alegre! Disse o garoto. O Oscar tirou a sorte dela. Será muito feliz e por toda a vida vai orar e pedir a Deus por você.

- Quem é Oscar?

- É o meu novo pássaro. Antes eu tinha uma calopsita, mas a morte nos separou e peguei o Oscar.

Só então Helena percebeu que, sobre a carcomida caixa de madeira de onde o som era extraído, o pequeno pássaro reinava. O animal era prateado, e na cabeça exibia um imponente topete branco. Já os olhos vermelhos tinham o brilho hipnótico dos diamantes. Fascinada diante de tão exuberante passarinho, disse arregalando os olhos:

- Nunca vi mais bonito, e ainda consegue tirar a sorte!

- SIM! Quer que tire a sua?

- Não tenho como pagar.

- Será um presente. Disse o garoto estalando os dedos.

Oscar esticou o pescoço e puxou com o bico um dos bilhetinhos que estava em uma pequena caixa de papelão. Após pegar o pequeno pedaço de papel, o menino leu e disse de forma quase inaudível:

- Infelizmente há coisas que não se pode mudar. Você terá de atravessar abismos e desertos. Mas lembre-se: o corpo envelhece e morre, mas a alma, diferente da carne, essa é eterna.

***

Pouco tempo se passou para que Helena entendesse a metáfora sobre os abismos e os desertos que teria de atravessar.

***

Joel tinha contraído grandes dívidas e havia ainda o perigoso envolvimento com mulheres casadas. Sim! Foi por esse motivo que durante uma terrível madrugada acordou a filha aos gritos.

- HELENA, HELENA, ACORDE! SE ESCONDA!!!

Mas antes mesmo da menina abrir os olhos, apavorado desferiu um forte soco em seu queixo e, sem sentidos, a arremessou para embaixo da cama. O desgraçado tinha o medo estampado no rosto quando a porta voou pelos ares e três homens, sendo um munido com um canivete, lhe agarraram.

Com a morte do pai, a pobre menina ficou aos cuidados da Dona Emília, e só com a divulgação do sangrento assassinato foi que a avó tomou conhecimento de sua existência. Dona Regina resgatou a neta. Fez por Virgínea, que viveu um romance proibido e, cheia de mágoa, acabou fugindo para definhar até a morte nas mãos de um crápula.

Virgínea era branquinha, tinha a boca minúscula com dois dentes a mostra, o que lhe dava a aparência de uma roliça porquinha da índia. Mas a ausência de beleza não era empecilho. Joel se apaixonou logo que descobriu que estava diante da herdeira de centenas de imóveis, que vivia com a mãe viúva em uma confortável mansão. No início, a pobre moça chegou a desconfiar das reais intenções do rapaz, porém, deslumbrada, acabou não resistindo às tentações da carne. O romance do belo com a feia era uma atração a parte, e, por mais que lhe mandasse flores, não havia quem acreditasse naquele amor de filme clichê. Dona Regina fez de tudo para separá-los, até que, depois de quase morto em uma emboscada, resolveu fugir e levar consigo a mulher dos sonhos. Acreditava que no futuro a esposa voltaria ao convívio materno e, sendo um bom genro, marido e pai amoroso, poderia usufruir de uma vida cheia de regalias. Entretanto, Virgínea era orgulhosa e todo ressentimento serviu apenas para envenenar a alma para que a morte, insaciável criatura, viesse lhe devorar a carne.

Joel usava seus atributos para seduzir mulheres, das quais tirava até o último centavo. Descobriu ainda muito jovem que a beleza abria portas e pernas. Assim, cada vez mais dedicado à sua arte, fazia da cama o palco onde na escuridão do quarto podia mostrar o seu grande talento.

Preocupada com a neta, que havia herdado a maldita beleza do pai, Dona Regina tratou logo de arranjar um pretendente que fosse o avesso do genro sedutor: foi então que surgiu André...

Continua...

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 30/03/2024
Código do texto: T8031282
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.