O abate
A situação saiu do controle, o mundo mudou irremediavelmente e nunca mais será o mesmo. Contudo, uma esperança ainda persiste em minha mente.
Há alguns anos, o número de vampiros começam a aumentar rapidamente e sua organização em grupos trouxe uma dificuldade adicional na caçada. Mais fortes e ágeis, enfrentamos um dilema ao nos defrontarmos com centenas deles portando apenas algumas armas de fogo. A situação tornou-se desafiadora, e a oração muitas vezes se mostrou a única alternativa, embora raramente suficiente.
Os ataques às cidades tornaram-se mais frequentes, pois os vampiros sabiam que detinham todas as vantagens. Desejavam uma guerra contra nós e assim a tiveram. Anos de massacre se seguiram, com a determinação de dominar este mundo em detrimento dos humanos. Fomos derrotados sem possibilidade de defesa, desarmados e despojados de tudo.
Em nossa era, a era dos Homo sapiens, tínhamos gados para nos alimentar e comercializar. Hoje, na era dos vampiros, nós nos tornamos os gados. O que um dia foi considerado gado entrou em extinção, tornando-se obsoleto para eles. Desconheço a realidade de outros locais, mas na fazenda onde resido, não há vestimentas para nós. Cada um possui sua própria jaula e a solidão é nossa única companhia. Os vampiros engendraram um sistema no qual o isolamento é a norma. Conscientes de que a liberdade de interagir com outros da nossa espécie pode resultar em planos de rebelião, mesmo sendo mais fracos e desarmados, podemos surpreendê-los e eliminar alguns deles. No entanto, eles são cautelosos.
Criar uma rebelião neste local só resultaria em mais sofrimento. Se não podemos vencer, eliminar apenas alguns indivíduos agravaria nossa situação. Meu desejo diário é escapar deste lugar, mas me pergunto para onde poderia fugir. Ao que tudo indica, vampiros estarão presentes em qualquer lugar que eu vá. No entanto, a possibilidade de alguns humanos viverem sem serem tratados como gado é plausível. Eles podem ter formado tribos e estarem vivendo ocultos em alguma região selvagem.
Após a guerra, os vampiros abandonaram suas antigas moradias e passaram a residir em cidades e fazendas para trabalharem. Diariamente, diversos humanos são abatidos diante dos meus olhos. Logo chegará o meu dia, sem cerimônia fúnebre, serei apenas abatido e esquecido. Meu sangue será colocado em uma garrafa para que alguém o beba enquanto dança alegremente; minha carne será devorada poucas horas depois. Tudo ocorre rapidamente, pois eles preferem carne fresca; se passar de um dia, já consideram como deteriorada e a descartam para nosso consumo.
Sinto a necessidade de escapar deste lugar e encontrar outros de minha espécie que vivem em liberdade. Tenho ciência de que sua existência é real. Diariamente, um funcionário vem até minha cela para trazer minha refeição, um ato tão rotineiro que sua preocupação em ser atacado é mínima. Poderia empalar o pescoço dele com a lança que consegui há cerca de quatro semanas, quando fui retirado daqui para dar um breve passeio e a escondi sob as palhas de minha cela. Uma vez por mês, somos levados para caminhar, mas nunca sabemos se será apenas um passeio ou o dia do abate.
Logo chegará o dia da minha caminhada, talvez eu pudesse fugir, porém, colocam coleira em meu pescoço e me guiam como se eu fosse um cachorro. Se eu esperasse um momento de distração, a possibilidade de fugir seria mínima. Se eu conseguisse destrancar o cadeado da minha cela, poderia escapar sem causar alvoroço, escolheria um horário em que não estivessem por perto. Só perceberiam que não estou horas depois, e eu já estaria longe, talvez já tivesse encontrado ajuda. Ao encontrar alguma tribo, poderíamos planejar a libertação de outros humanos. Com muitas pessoas unidas e armadas, poderíamos contra-atacá-los. Seria a nossa chance.
Passei dias observando os melhores horários, o comportamento dos funcionários, o que faziam e deixavam de fazer. Eu precisava de uma oportunidade. Eles nos tratavam como inferiores, presumiam que nenhum de nós teria coragem de tentar escapar dali, e é isso que me proporcionará minha liberdade.
Chegou o dia da minha fuga, tudo estava planejado. O funcionário abriu a porta da minha cela e deixou um prato com carne no chão; nesse momento, de maneira rápida e precisa, coloquei um pouco de palha na tranca do cadeado. O funcionário saiu e fechou a porta, sem prestar muita atenção e sem perceber que o cadeado não tinha trancado. Era tudo o que eu precisava. Se ele notasse o ocorrido, poderia achar estranho e passar a prestar mais atenção em seu trabalho, o que dificultaria minha fuga. A sorte estava ao meu lado.
Esperei o nascer do sol, nesse horário todos os funcionários estariam recolhidos. Abri a jaula, olhei para todos os lados possíveis e fugi em direção a uma mata densa e fechada. Sem sinal de vampiros, minha saída da fazenda foi surpreendentemente fácil; no entanto, agora precisava encontrar outros como eu.
Após caminhar por horas pela mata fechada, não encontrei nada. Humanos poderiam estar em qualquer lugar, inclusive naquela mata ou em outras. Já era noite e certamente perceberam minha fuga; estavam à minha procura e o funcionário desatento provavelmente já teria sido dispensado.
Empunhando a lança, estava determinado a enfrentar qualquer desafio por minha liberdade, mesmo que isso significasse a morte. Caminhei tanto que minhas pernas mal obedeciam, mas finalmente cheguei. Uma fogueira crepitante iluminava a cena à minha frente. Observando humanos livres conversando ao redor do fogo, meus olhos se encheram de esperança. Havia tanto tempo desde a última vez que conversara com alguém que mal sabia como iniciar.
Aproximei-me e, antes que pudessem questionar minha identidade, me apresentei, pedi ajuda e narrei minha história. Generosamente, eles me acolheram, ofereceram alimento e saciaram minha fome com algo diferente de carne humana, o que me deixou profundamente grato.
No dia seguinte, expus meu plano de libertar outros humanos e fabricar armas para resistir aos vampiros. Contudo, a recepção não foi tão positiva como eu imaginava. Consideraram-me insensato, argumentando que seria impossível vencê-los, pois detinham o controle absoluto do território. Embora pudéssemos eliminar muitos deles, não seríamos capazes de derrotá-los completamente. Quando éramos poderosos, contávamos com milhares de exércitos equipados com as melhores armas; lutando juntos e fomos derrotados. Como poderíamos vencer agora, com poucas pessoas armadas, no máximo com lâminas, arcos e flechas? Nunca conseguiríamos alcançar as armas de fogo, todas em posse deles, e carecíamos dos recursos necessários para fabricá-las.
Eu refleti profundamente e, de fato, concordei. Era mais sensato permanecer oculto, mas vivo. Não desejo perecer pelas mãos daquela espécie demoníaca, tampouco quero retornar a me alimentar de carne humana, nem testemunhar homens e mulheres sendo abatidos para satisfazer os vampiros.
Uma semana se passou e estou bem. Talvez tenham desistido de me procurar; possivelmente acreditam que eu esteja morto em algum recanto da mata. Os humanos deste lugar tornaram-se minha família. Caçamos juntos, trabalhamos juntos e desfrutamos momentos de lazer em conjunto; zelamos uns pelos outros, e a sensação de liberdade que experimento é fascinante. Ao anoitecer, nos recolhemos para um sono tranquilo, despertando às 3 da madrugada, como de costume. Fechei os olhos e adormeci em paz.
Ao despertar, percebi que estava imobilizado, com a boca vedada por uma fita, um machado pairando sobre meu pescoço, pronto para ceifá-lo. Eu estava de volta à fazenda, era a hora do meu abate. O vampiro, com um sorriso no rosto, antes de me executar, revelou a verdade. Nunca havia deixado aquele lugar, nunca encontrara uma tribo, jamais caçara ou cessara de consumir carne humana; tudo não passara de uma ilusão. Dias antes do abate do "gado", os vampiros usam seu poder para criar ilusões em nossas mentes, proporcionando-nos momentos de felicidade que nos relaxam física e espiritualmente, tornando nossa carne e sangue mais saborosos.
Após me contar a verdade, o funcionário decepou minha cabeça com um único golpe de machado. Fui levado ao açougue, onde meu sangue foi drenado e vendido em apenas duas horas; o restante do meu corpo foi adquirido por um único cliente em menos de uma hora. Meu corpo foi disposto à mesa de uma família de cinco vampiros, que se banqueteara com meu cérebro, coração e demais partes, não restando nenhum vestígio de mim. Meu sangue foi divido por dois amigos, que bebiam e riam, como se estivessem bêbados.
Os vampiros triunfaram na guerra, dominaram o mundo e agora nos resta apenas rezar e aguardar por um milagre.