A lenda de Dramante

A cidade de Dramante, Minas Gerais, foi tombada como patrimônio histórico. Os portugueses que chegaram pelo rio Jequitinhonha a construíram, fato que explica a arquitetura colonial de seus antigos casarões.

Os moradores são pessoas simples e de prosa sincera, sem a malícia dos grandes centros. Ainda se vê carros de boi, berrantes pendurados nas portas, o leiteiro com sua carroça. Singela cultura do interior.

A igreja Alto do Morro construída no século XVI é um dos pontos turísticos mais famosos, não é por menos, sua arquitetura lhe garante uma beleza peculiar. O turismo é intenso nas épocas de lua cheia, pois a dona da noite passeia ao lado do campanário. Ótima oportunidade para contemplação. Outro local bem conhecido, é o bar do Tiriba. Todo mundo passa por lá para experimentar a Cachaça-da-Lua, além do ponto ser privilegiado, porque de longe se vê a igreja e o campanário sem interferências visuais. Tiriba faz promoções nas noites de lua cheia, e conta com ajuda do morador mais famoso: Zezinho.

Homem de comportamento peculiar, não abandona seu chapéu de couro e nem o cigarro de palha. Zezinho é famoso por contar histórias e tem bom repertório. Quando aparece um grupo interessado em ouvi-lo, fica feliz da vida. Desce duas pela goela e começa a tagarelar. Franzino e eloquente, consegue prender a atenção de todos. Sempre finaliza suas histórias dizendo: — É tudo verdade! — não tem um que não ri...

A história mais famosa é a do Caboclo da Noite, ou Lenda de Dramante. Narrativa conhecida por muitos. Zezinho está empolgado porque a lua cheia está mostrando sua face no horizonte e os turistas estão chegando ao bar do Tiriba. Hoje é dia de contar história!

Um turista se aproxima do balcão e olha na parede atrás de Tiriba. Uma cabeça de veado o encara com ar gelado.

— Faz tempo que este animal está pendurado aí? — Tiriba olhou para o bicho.

— Desde de quando me conheço por gente, ele está aí. Meu pai disse que o Caboclo o matou, e resolveu empalhar o que sobrou do animal. Isso foi há muito tempo — respondeu enxugando um copo.

— O Caboclo da famosa lenda?

— Sim, ele mesmo!

—Ahhh! Conta outra, é folclore. — O turista gesticulou com as mãos.

Tiriba olhou para Zezinho que estava ao lado. — Você é daqueles que precisa ver para crer.

O rapaz ficou pensativo por um instante. — Quê?

— Deixa pra lá, Chefe! O que vai beber? — Perguntou Tiriba em tom irônico.

— Está vendo aquela turma ali na mesa? — apontou o turista para o centro do salão.

Tiriba olhou viés — Sim!

— Estamos morrendo de fome, e queremos duas porções de batata frita e uma de mandioca no capricho. Também vamos beber a cerveja mais gelada que tiver. É promoção hoje, não é? — o turista perguntou com um sorriso cínico.

— É sim, Chefe. Deixa comigo, hoje o bicho vai pegar! — Tiriba respondeu com uma piscadela. O turista encurvou-se sobre o balcão.

— Cadê o Zezinho, o homem dos contos?

— Olha pro lado! — Tiriba meneou a cabeça.

O chapéu escondia metade do velho rosto de Zezinho, a fumaça do cigarro contornava a aba do sombreiro e sumia no ar. A camisa vermelha desbotada e a calça surrada lhe empobreciam o visual, mas o dedo de onça pendurado em seu pescoço chamava a atenção. Zezinho jurava que ele mesmo a matou. Com sorriso torto se apresentou.

— Sou eu mesmo moço! — Zezinho ergueu a cabeça entre a fumaça.

— Então é o Senhor! Estamos interessados em ouvir sobre o Caboclo da noite. Nos faz o favor? — o turista parecia animado.

— Será um prazer moço. Hoje o bicho vai pegar! — soprou fumaça na direção do turista.

— De que bicho é isso em seu colar?

— Onça, eu mesmo a matei! — Mais fumaça.

— Vocês são engraçados!

— Galera, olha o famoso Zezinho aqui, em pessoa. — gritou ao restante da mesa. Todos começaram a bater palmas.

— Zezinhooo, Zezinhooo.... — gritaram várias vezes.

O contador acenou ao grupo.

— Turma animada em moço? Assim que eu gosto! ... Tiriba, mais uma para aquecer.

— Deixe de frescura homem, e você lá precisa aquecer? Vai lá e conta a nossa lenda! — Tiriba empurrou o copo com extrema precisão até as mãos de Zezinho.

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Os turistas ficaram olhando a lua cheia se esconder atrás do campanário até tarde da noite. Cantaram, dançaram, beberam, tiraram fotos, grupo muito alegre. Tiriba não parava um minuto de servir; entre a fumaça e o chapéu, Zezinho observava o grupo. Olhar frio e perscrutador, parecia um leão escolhendo a presa. Ora ou outra, escapava-lhe um sorriso sujo às mulheres.

A lua estava muito acima do campanário, dispersando assim o interesse das pessoas. O turista e sua turma voltaram para dentro do bar, estavam ébrios, balbuciavam besteiras e riam muito alto.

Zezinho voltou ao balcão aguardando o momento de contar a história. Não demorou muito...

— Tiriba, queremos mais quatro cervejas e uma porção de carne seca. — gritou o turista cambaleando.

— É pra já, Chefe! — respondeu Tiriba olhando para Zezinho de soslaio.

— Zezinhoooo, Zezinhooo! Que tal começar agora? — Disse o turista rindo como criança.

Zezinho pulou como um gato para perto da mesa, assustando as moças, puxou uma cadeira e virou o encosto para frente. Olhou nos olhos de cada um.

— O que vou lhes contar, são fatos que ocorreram aqui na cidade há muito tempo. E tudo começa na rua da Pedra. — Apontou para fora — Aquela ali, que desce e depois sobe.

— Paaaaaahhhhhh — Ele deu um tapa na mesa que fez um baita barulho.

— Você está louco Zezinho, quer nos matar de susto? — Disse a moça ofegante.

— Zezinho, eu já lhe falei para não bater na mesa. — Gritou Tiriba lá do balcão.

O contador deu com os ombros e disse: — Tinha dois dormindo, agora não mais! — Caiu na risada, e a turma entrou no clima. Mal começou e já estava enrolando um cigarro.

O Caboclo corria como uma presa fugindo do predador. Atrás dele vinha um grupo de homens e mulheres armados com facões, espingardas, forcados e pedras. Estavam prestes a exterminá-lo.

— Atirem para matar! — Um homem corpulento gritou enquanto corria.

Caboclo não entendia o porquê daquelas pessoas o perseguirem, ele estava descalço e todo rasgado. O trapo que cobria o seu tronco tinha muito sangue, a calça só escondia uma perna. Os perseguidores foram ficando para trás, a força física do fugitivo era sobre-humana. Os seus sentidos estavam mais aguçados: audição, olfato e visão. Porém, a memória dos últimos dias tinha desaparecido. — Ziiiuuhh! — Uma bala raspou seu braço...

Ele subiu a rua da Pedra com extrema rapidez, o grupo estava longe, contudo os escutava perfeitamente, como se estivessem ao seu lado. Uma confusão dos diabos invadiu sua mente.

— O que eu fiz para essas pessoas? Por que querem me matar? Eu não consigo lembrar de nada, e não sei como cheguei a esse estado deplorável.

As vozes se aproximavam, ele entrou no beco dos casarões abandonados.

— Lá está ele, vamos! — Gritou o homem com espingarda.

A luz da lua iluminava o beco escuro, e, ao se aproximar do principal casarão, ouviu passos lá dentro. Duas gárgulas acima da porta o fitavam com apetite.

— Não mora ninguém aqui! — resmungou. Os algozes apontaram no início do beco.

Passou pelas ripas do que sobrou da porta. Na sala principal tinha os restos da mobília e havia um piano no final do corredor. O clarão da lua dava destaque ao instrumento, mas também estava em pedaços. Subitamente, alguém lhe puxou o braço com tanta força que caiu sentado.

— Bem-vindo a nossa casa! — Disse um espectro cadavérico de um velho horrendo.

— Bem-vindo seu animal! — A mulher de cabelos longos surgiu em sua frente, a transparência do fantasma se misturava com a lua que entrava na casa pela parte sem telhado.

— Quem são vocês? — Perguntou o Caboclo, portanto não havia mais ninguém ali. Mas ele sentia a presença deles. Algo soprou na lateral do seu rosto.

— Oi, o que você quer? — A menininha abraçada a uma boneca perguntou.

Caboclo levantou rapidamente e a menininha sumiu. De repente, o piano começa a tocar desafinadamente. A menininha estava batendo nas teclas, e os outros estavam sobre o instrumento encarando o rapaz. O clima dentro do casarão era de arrepiar as espinhas. Os espectros começaram a rir sinistramente, e a menininha batia mais forte no piano. O barulho chamou a atenção do grupo que o perseguia.

— Escutaram? Ele está no velho casarão, vamos... — O homem com espingarda estava determinado.

Caboclo escutou os perseguidores e deixou os espectros para trás. Saiu do casarão correndo e ficou frente a frente com seus algozes. O homem com espingarda atirou, mas Caboclo desviou agilmente e fugiu outra vez em bom ritmo.

— Santo Deus! O que é essa coisa? — Resmungou o homem com espingarda.

— Vamos, ele não pode escapar! — O grupo retomou a perseguição...

Tiriba chegou de surpresa com a porção e as bebidas. Os jovens estavam tão concentrados na história que se assustaram outra vez.

— Até você Tiriba, que susto! — Exclamou o gordinho.

— Estou trabalhando, não vem não! — disse Tiriba.

— E eu, fico como? — Reclamou Zezinho olhando a carne seca.

— Pode comer com a gente Zezinho, pois está fazendo jus a sua fama. É uma boa história. — Disse o turista.

— Agradecido! — Mal respondeu e já foi enchendo a mão.

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— Estão vendo o campanário da igreja Alto do Morro? — perguntou Zezinho.

Todos balançaram a cabeça.

— É lá que termina a história...

O casarão ficava a uns quinhentos metros de distância da igreja. Caboclo fugiu nesta direção e se afastou bastante dos perseguidores. Mas foi surpreendido pela menininha com sua boneca que lhe surgiu de braços abertos. Ele desviou dela, porém escorregou e perdeu o equilíbrio roçando os paralelepípedos com o peito até bater a cabeça na sarjeta e mergulhar o rosto numa poça d’água.

Semiconsciente, ouvia outras vozes, mas eram suaves e não tinham tom de raiva. Ouvia também o grupo que o perseguia, estavam muito próximos.

— Lá está a besta, agora ele não escapa! — gritou o homem com espingarda.

Caboclo estava recuperando a consciência e sua memória lhe foi trazendo imagens de uma mulher ensanguentada pedindo socorro; um cavalo todo destripado; coelhos em pedaços...

Foi abrindo os olhos lentamente, e se deparou com uma multidão de senhoras segurando velas, um padre fazendo o sinal da cruz em sua direção, e muitos Rosários que brilhavam nas mãos daquelas mulheres. Isso começou sufocá-lo com força, era uma força que ele não conseguia enfrentar, era o Bem açoitando o mal. Logo atrás, os perseguidores vociferavam: — Vamos matá-lo; ele assassinou a minha filha; vamos mandá-lo de volta ao inferno...

Ele sentiu uma fisgada na perna. Os dentes de ferro do forcado atravessaram sua panturrilha. O grito de dor foi penetrante. Isso fez com que as mulheres da procissão rezassem com mais fervor. O padre gritava para os agressores ficarem calmos, todavia não adiantou. Começaram a chutá-lo de todas as direções, e enquanto era agredido, a menininha do casarão lhe apareceu, ficou de joelhos em sua frente e lhe disse: — Vai ficar tudo bem!

Recuperada a consciência, percebeu que os golpes pararam de lhe causar dor, via tudo em câmera lenta. Estava em êxtase. Quando começou a tirar o forcado da sua panturrilha sem ao menos uma careta de dor, todos pararam, os agressores ficaram em silêncio, somente as vozes das mulheres rezando soavam ordenadamente.

Todos foram se afastando de Caboclo, o frenesi coletivo havia passado, agora os olhares que antes destilavam raiva, deram lugar ao medo.

Zezinho deu outro tapa na mesa: — Taaaaaaaaa! Quero outra dose Tiriba! — dessa vez todos se assustaram, o que restou da carne seca foi ao chão, e também dois copos com cerveja voaram longe...

— Puta que pariu! — gritou um dos turistas — Você quer nos matar de susto? — um silêncio surgiu e foi irrompido pelas gargalhadas.

— Desse jeito, eles não vão voltar aqui Zezinho — gritou Tiriba com ar de escárnio.

— Desculpe, patrão! — disse Zezinho, e começou rir sinistramente, até encurvou-se na cadeira...

— Vamos Zezinho, termina a história, por favor! — disse uma das turistas enquanto limpava a sujeira da mesa.

— Sem susto, senão vamos bater em você! — comentou outra turista. Zezinho recuperou-se da crise de riso, ajeitou-se na cadeira:

— Vamos para a parte final! — Todos aplaudiram...

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A lua foi surgindo por detrás da silhueta do campanário ocupando seu lugar de rainha da noite e iluminando ainda mais as ruas de Dramante. As devotas da procissão continuavam a rezar com energia. Caboclo levantou-se e todos deram um passo para trás, o medo tinha dominado seus espíritos.

Os olhos de Caboclo encontraram a lua. Seu semblante foi endurecendo, a dor que havia desaparecido, voltou mais intensa. Ele emitia gemidos indescritíveis nesse momento, até as mulheres que rezavam ficaram em silêncio. O seu corpo se contorcia e logo caiu de joelhos sobre a poça d’água. Olhando seu reflexo trêmulo não via a si mesmo, contudo outro ser: enorme, com dentes afiados e peludo.

A transformação foi a olhos vistos, o pavor invadiu aquelas pessoas, ninguém falava nada, apenas olhavam estupefatos. Todavia, enquanto nascia o monstro, o homem de espingarda colocou o cano na cabeça da fera e engatilhou...

A maioria dos turistas tinham ido embora, restou apenas o grupo que escutava atentamente a história. Tiriba abaixou a porta do bar: — Pooommmmm! Só vou abaixar, mas podem continuar — deu uma risadinha de canto.

O medo dos personagens havia contaminado os turistas. O barulho da porta...

— Nossa, vocês estão de sacanagem? — gritou a turista.

O gordinho caiu da cadeira....

— Quase nos matou de susto outra vez! — Ele reclamou levantando-se com dificuldades. Precisou da ajuda dos amigos.

Zezinho não perdoou: — Se tá louco Tiriba, para de beber! — Alguns riram, outros não. Tiriba deu com os ombros...

— Vamos Zezinho, acabe a história, estou curioso pelo desfecho — disse o turista.

— O Tiriba fecha esse horário mesmo, não se preocupem. Podemos ficar até.... Vou continuar.... — disse Zezinho

Ao ouvir o gatilho, Caboclo, ou melhor, o monstro, deu um tapa tão rápido no cano da arma que o tiro atingiu o castiçal que uma devota segurava. Vela para um lado, castiçal para o outro, a espingarda nocauteou o padre. Uma senhora alta que estava ao lado do padre não suportou e se juntou ao religioso sobre os paralelepípedos.

O monstro deu um berro que adiantaria qualquer trabalho de parto, todos se afastaram mais um pouco. A criatura olhou para o homem da espingarda e o pegou pelo pescoço, parecia um boneco de pano. Foi arremessado com tanta força contra uma janela que a quebrou em pedaços. O corpo ficou pendurado no que sobrou da esquadria.

Nesse momento, o monstro estava no centro e as pessoas o rodeavam mudas e assombradas com tudo aquilo. O bicho olhou por todas as direções, e num único salto, saiu do meio da multidão e sumiu pela noite adentro.

— E depois acharam Caboclo? — perguntou a turista.

— Não, ele nunca foi encontrado, dizem que virou eremita, porém nunca se pode comprovar. Ele matou a filha do homem da espingarda, e comeu vários de seus animais. O homem não suportou os ferimentos e morreu dias depois. — Concluiu Zezinho.

Todos levantaram e aplaudiram!

— Ótima história Zezinho — a turista exclamou.

— Muito boa mesmo, ficamos todos com medo e até dá para acreditar. — Falou o gordinho.

Zezinho ficou mudo, o seu olhar mudou de repente. Ele mirou todos atentamente.

— É tudo verdade! — disse Zezinho com ar malévolo.

— Por hoje já deu, para de graça Zezinho. Amanhã você nos conta outra... — o gordinho falou sorrindo.

— Não é mesmo Tiriba?

Todos olharam ao balcão e não encontraram Tiriba, também não estava em nenhuma parte do bar. Subitamente: as luzes se apagaram.

— O que está acontecendo Zezinho? Pare com essa brincadeira, por favor! — gritou a turista.

Uma risada sinistra cortou a escuridão do bar. Todos começaram a resmungar. Repentinamente, no centro do salão, apareceram os espectros da menininha, do homem e da mulher. Aquilo era surreal.

— Bem-vindos! — Disse a menininha. Um silêncio de eriçar os pelos tomou o salão...

A luz voltou e Zezinho estava ao chão se contorcendo e emitindo um gemido assustador. Zezinho era franzino, porém seus músculos ficaram maiores, o corpo estava quase coberto de pelos, os dentes afiados saltavam da grande boca. Num último momento de lucidez.

O monstro disse: — É tudo verdade!

Rivaldo Ferreira
Enviado por Rivaldo Ferreira em 26/03/2024
Código do texto: T8028317
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