Nos Portões do Inferno (16): Capítulo 10: Os Portões do Inferno
Capítulo 10
Os Portões do Inferno
I
Daniel adiantou-se carregando um balde com sangue bovino. Derramou o conteúdo no chão fechando a brecha do sigilo. Largou o utensílio e correu em direção aos outros, arma em punho.
Leonardo pediu para que todos ficassem dentro do carro. Empunhava uma faca abençoada na mão à espera da abertura dos portões, mas nada aconteceu.
Em instantes, Daniel chegou ofegante e postou-se ao seu lado.
— Será que deu certo?
— Vamos torcer, maninho! — disse Leonardo.
Esperaram. O silêncio imperava, tão palpável que chegava a incomodar os ouvidos.
Então, ouviram um som crescente, inicialmente quase imperceptível. Logo, um leve tremor na terra se juntou ao efeito. O chão tremia a ponto de fazer rachaduras surgirem nas vidraças do carro.
Subitamente e simultaneamente, explosões ocorreram nas casas de fazenda levando-as a arderem em chamas. Em poucos minutos foram consumidas. A fumaça foi se dissipando e, conforme a visibilidade retornava, puderam perceber que no lugar onde antes havia casas, um enorme pórtico se materializara. As colunas do pórtico à frente deles pareciam ser feitas de terra. Duas enormes portas feitas do que parecia ser ferro escuro se abriram revelando uma luz laranja avermelhada. Um som medonho saiu de lá e algo caminhava em direção à saída.
Daniel olhou ao redor, outros portões se abriam e coisas indescritíveis à distância saíam exalando fúria.
No pórtico à frente deles, algo que parecia um grotesco ser humanoide se fazia divisar. Conforme caminhava subindo o que parecia ser uma escada do interior da terra, puderam ver que da cintura para baixo, seus membros assemelhavam-se a algo canídeo, mas da cintura para cima, algo que inicialmente pensaram ser vários braços, revelou-se serem tentáculos. No lugar onde deveria haver um rosto, uma enorme boca vertical cheia de dentes se mostrava soltando um grito gutural.
Mammon se apresentou a eles em sua imponência.
II
Mammon se voltou na direção deles. Os ocupantes do carro saíram, temendo que o ritual não funcionasse, mas ao chegar perto do sigilo, o lorde do Inferno parou e soltou um urro de fúria. Seus tentáculos se agitavam horrivelmente no ar e batiam no que dava a impressão de ser uma parede invisível. Várias outras criaturas quiméricas raivosas tentavam, de alguma forma, quebrar as paredes invisíveis. Daniel observou que o mesmo ocorria nos outros pórticos.
— Faça, Leo! — ordenou Leonora aflita.
Leonardo soltou o grimório de Heidi Glauer no chão e fez um corte fundo na palma da mão esquerda. Um esgar de dor estampou seu rosto quando o sangue verteu, deixou que este pingasse no sigilo de fechamento no chão.
Daniel foi em seu auxílio, pegou o grimório e segurou para que o irmão pudesse ler o encantamento.
A criatura que era Mammon agitava-se em um dervixe furioso.
Leonardo decretou:
"Hoc sacrificio iubeo portas iterum occludi. Sigilla in integrum restituantur. Ergo, verbi vi, haec foramina rursus occlusa sunt et vis eorum evanescit, iterum indissolubilibus sigillis continetur. Amem."*
Encarou o demônio à sua frente uma última vez e espalmou a mão ferida no chão. O sigilo de fechamento emitiu um brilho escarlate que logo se espalhou pelos caminhos que se ligavam aos sigilos maiores com um ruído que lembrava a estática de um rádio dessintonizado.
Uma ventania era perceptível no pórtico à sua frente. Perceberam que a fonte de tal fenômeno provinha de dentro da própria arquitetura. As criaturas menores estavam sendo sugadas lá para dentro. Mammon aferrara as patas e os tentáculos ao chão, tentava se manter, mas conforme a ventania se intensificava, era arrastado, puxado em direção ao pórtico. A ventania se intensificou a tal ponto que a criatura foi suspensa do chão e voou de costas em direção à abertura. Agarrou-se, usando os tentáculos às colunas, mas foi em vão, pois logo foi tragada para o interior.
Ouviram mais gritos horríveis ao longe, vinham de várias direções. Não demorou muito e o silêncio imperou novamente indicando que, muito provavelmente, o ritual funcionara em todos os pórticos.
Ouviram um estrondo. O pórtico à frente deles estava rachando. As rachaduras se intensificaram, em seguida, as colunas ruíram para dentro de si mesmas desaparecendo para o interior da terra. Estrondos à distância sinalizavam a queda dos demais pórticos.
Leonardo olhou sorrindo para todos que ainda tinham expressões bestificadas nos rostos.
— Funcionou! — ele disse em tom de quem comemora.
III
Quando os pórticos se elevaram, houve um tremor que incomodou o interior da terra ao redor fazendo com que animais como formigas, tatus, toupeiras e cobras saíssem incomodados.
Próximo ao pórtico que se materializou onde antes havia sido a casa de Heidi Glauer vivia uma toupeira. Com o tremor, ela saiu desorientada e, assustada, começou a cavar sofregamente em busca de um novo esconderijo. O lugar que escolher para cavar foi sobre a linha de sangue que formava o sigilo que envolvia a casa da primeira fazenda.
Bastava um milímetro na descontinuidade da linha do sigilo para que o ritual de fechamento não tivesse efeito sobre o pórtico que ali se elevou.
Por aquela abertura, Asmodeus subiu à Terra e sorriu ao perceber o fracasso da tentativa de manda-lo de volta ao Inferno.
IV
Leonardo ainda sorria para os outros quando algo desceu do céu e agarrou Cristiano pelos ombros levando-o para cima. Outra criatura agarrou Tiago. Puderam notar que a criatura tinha um corpo feminino e duas asas enormes negro-avermelhadas.
Horrorizados, viram o momento em que a criatura que levara Cristiano o estraçalhou lá no alto jogando seus restos mortais no meio do matagal.
Melissa e Ana gritaram, Creedence as puxou novamente para dentro do carro.
Antes que os Cartago tivessem qualquer outra reação, algo enorme corria na direção deles. O corpo da coisa que investia contra eles parecia humano, mas as pernas eram peludas e terminavam em enormes cascos fendidos.
— Voltem para o carro! — bradou Leonora.
Eilson e ela entraram a tempo, mas a criatura se chocou contra Leonardo e os dois saíram rolando pelo chão. Daniel fez mira, mas algo saiu da mata e o acertou. Assemelhava-se a uma aranha, mas no lugar das patas, tentáculos enormes a fazia se movimentar rapidamente em sua direção, a cabeça era uma mistura de aranha com bico de alguma ave de rapina.
Leonora olhou ao longe e pode divisar que o primeiro pórtico estava de pé.
— Precisamos fechar o sigilo lá — ela disse —, algo deve ter quebrado a linha.
— Eu fico aqui para ajudar o Dan e o Leo, mãe — disse Eilson abrindo a porta do carro já com a arma engatilhada. — Aí, mãe, assim que fechar, buzine sem parar!
— Se cuida, filho — disse ela beijando a face do rapaz antes dele sair do carro. Leonora deu a partida. Os Machados continuavam no banco detrás inconsoláveis. Leonora manobrou o carro e acelerou na direção do primeiro pórtico.
Pelo retrovisor viu o momento em que Eilson disparou contra a aranha tentaculosa que investia contra Daniel novamente, a criatura rolou para dentro da mata. Os dois se recompuseram e correram para ajudar Leonardo. A criatura que investira contra ele avançava novamente, tinha, tranquilamente, mais de dois metros de altura, pele avermelhada, a cabeça era praticamente humana, exceto por dois enormes chifres escuros.
Eilson fez mira novamente e atirou. A criatura pressentiu e se inclinou para desviar a tempo. Leonardo aproveitou o movimento, sacou a faca abençoada e desferiu um golpe que acertou o olho esquerdo do demônio.
Asmodeus gritou.
Leonardo tentou acertar o outro olho, mas o lorde do Inferno desviou e o máximo que ele conseguiu fazer foi um corte na lateral da face direita.
Eilson atirou novamente, mas Asmodeus novamente foi mais rápido e correu para dentro da mata.
V
Leonora chegou frente ao primeiro pórtico. Este parecia ser feito de um mármore escuro e emitia uma luz amarelada de seu interior. Pediu para que Creedence e sua família ficassem no carro. Saiu, abriu o porta-malas, apanhou um dos galões que ainda continha um pouco de sangue bovino. Caminhou pelo perímetro do sigilo até identificar a falha. Um som lhe chamou a atenção, sombras disformes dançavam na luz amarelada dentro do pórtico.
"Meu Deus! Quantos devem ter saído?"
Sem demoras, consertou o sigilo.
Estava preparada para correr de volta ao carro e tocar a buzina quando sentiu algo agarrar seu pescoço por trás. Creedence saiu do carro empunhando sua espingarda.
— Larga ela! — ordenou com a voz trêmula.
Um demônio com formas femininas erguia Leonora do chão. Tinha enormes chifres e uma barriga protuberante, como se carregasse uma ninhada de vermes. Ela pareceu não dar ouvidos à Creedence e quando fez um movimento com a mão livre, pronta para cravar suas garras em Leonora, Creedence disparou.
VI
Leonardo, Daniel e Eilson ouviram o disparo.
— Mãe — Eilson exclamou pondo-se em disparada ao primeiro pórtico.
— Não, fica aqui — disse Daniel, mas já era tarde, o rapaz já estava longe.
Ouviram um grito similar à uma águia no céu e viram uma das criaturas aladas descendo em direção ao primeiro pórtico.
— Vai atrás dele — ordenou Leonardo.
— Não — rebateu Daniel. — Não posso te deixar aqui!
VII
Quando Eilson aproximou-se o suficiente para divisar a mãe, percebeu que havia um demônio frente a ela e respirou aliviado ao ver que a mãe parecia ter o controle da situação. Porém, mal teve tempo de se contentar, pois no segundo seguinte sentiu seu pescoço ser rasgado.
VIII
Leonora viu o filho, tentou gritar, mas era tarde, uma criatura desceu do céu e fechou uma enorme boca cheia de dentes pontiagudos e disformes ao redor do pescoço do rapaz. Sangue verteu do ferimento lhe empapado as roupas. A criatura o agarrou, subiu aos céus e o largou lá de cima. Leonora observou horrorizada o corpo de filho cair e quebrar-se perto do Mustang.
— Não — ela gritou engatilhando sua pistola e disparou contra o demônio feminino à sua frente lhe acertando o abdome — Vocês vão morrer, desgraçados!
A criatura caiu de joelhos, sangue negro vertendo de seu ventre, mas apesar disso, não demonstrou sentir dor. Leonora engatilhou novamente e mirou em sua cabeça. A criatura, vendo que ela estava decidida, levantou as mãos cheias de garras em sinal de paz.
— Eu posso trazer ele de volta!
— Você não vai barganhar comigo — disse Leonora em fúria.
— Seu filho pode viver se eu viver — disse a criatura. — Posso fazer isso. Eu sou Nahemah, acho que já ouviu falar de mim, Cartago. Conhece o meu poder.
Leonora encarou a criatura, depois olhou para o corpo quebrado do filho. As lágrimas embaçaram a sua visão.
— A troco de quê? — indagou.
— Ora — disse Nahemah sorrindo. — Sua alma de bom grado.
Leonora ponderou por alguns instantes. Respirou fundo e disse:
— Quero que todos permaneçam vivos. Traga todos de volta e retire minha sobrinha do coma.
— Ora, para quem disse que não iria barganhar, você já está exigindo demais, não acha?
— Minha alma é Cartago — bradou Leonora. — E eu sei o quanto ela vale!
A criatura alargou o sorriso.
— Ou é isso, ou você morre — disse Leonora fazendo mira novamente.
Nahemah deixou a fúria transparecer em seu semblante.
— Ajoelhe-se! — ordenou.
— Como vou saber que vai fazer? — inquiriu Leonora.
— Isso é um acordo, e nós não quebramos acordos — disse Nahemah. — Quebra de contrato é uma prática humana. Nós não nos rebaixamos a tanto.
Leonora pôs-se de joelhos e ficou frente a frente com Nahemah. Jogou sua arma para perto dos pés de um Creedence incrédulo.
— Diga a todos que a jornada foi boa, Creedence.
— Não faz isso — disse o homem com lágrimas nos olhos.
— Nossos filhos vão viver. Isso é o que importa!
Nahemah a segurou pelos ombros e a puxou para um beijo. Antes de sentir a energia deixando seu corpo, sentiu o bafo fétido da criatura.
Creedence viu quando o demônio se afastou de Leonora, algo como uma substância translúcida escorrer da boca da mulher para a boca de Nahemah. Em instantes, o evento acabou e Leonora caiu sem vida no chão.
Ouviram um farfalhar de asas e as duas criaturas aladas postaram-se ao lado de Nahemah. Uma delas intencionou avançar para Creedence, mas Nahemah a deteve.
— Não — disse ela —, um acordo foi feito.
As duas criaturas encararam Creedence com seus olhos amarelos e bocarras disformes, ávidas por devorá-lo. Em seguida, cada uma agarrou sob um dos braços de Nahemah e alçaram voo para a escuridão da noite.
Creedence correu para dentro do Mustang e apertou a buzina sem parar.
Em frente à quarta fazenda, Leonardo repetiu o encantamento de fechamento dos portões.
IX
Quando Leonardo e Daniel chegaram até o local, encontraram Eilson ajoelhado aos prantos ao lado do corpo da mãe.
Ouviram um barulho próximo e viram Cristiano e Tiago saírem da mata. Apontaram as armas pensando se tratar de algum truque demoníaco, mas Eilson os deteve.
— Não! Abaixem! — pediu com o rosto lavado pelas lágrimas. — A mãe fez um acordo com uma demônia chamada Nahemah. A Rai também acordou.
Creedence correu para abraçar o filho.
Leonardo e Daniel ajoelharam-se ao lado de Eilson tentando consolá-lo enquanto deixavam que as lágrimas também viessem à tona. Leonardo abraçou o primo. Os portões do Inferno estavam fechados, mas a um custo alto. Prometeu a si mesmo que caçaria o que tinha saído do primeiro pórtico.
X
Semanas depois do ocorrido, Raiane observava a sala de artefatos no porão da família Cartago. Ouviu passos atrás de si e se voltou.
— Como você está? — indagou Muriel sorrindo para a neta.
— Tô melhor — disse Raiane. — Logo vou voltar.
— Tem certeza? — indagou a avó. — Depois do que aconteceu não é melhor ficar aqui com a gente?
— Eu construí uma vida lá, Vó. Tenho meus amigos, minhas lutas, sabe?
— Da última vez que você disse que iria partir, eu quase coloquei essa casa abaixo — disse Muriel sorrindo. — Mas acho que não enxergava que cada um dessa família tem seu caminho. Depois do que houve com seu pai, seu avô... Eu entrei em paranoia. Achava que precisava cuidar de tudo... Quero dizer, minha neta, que qualquer perigo ou aperto, nós estamos aqui, sabe que pode contar, afinal... Somos família, não é mesmo?
— Eu sei, Vó — disse Raiane abraçando-a.
Muriel sorriu com os olhos marejados e deixou a neta com seus próprios pensamentos.
Mais tarde, Raiane encontrou Leonardo na biblioteca debruçado sobre o verdadeiro livro de São Cipriano.
— Você vai ficar cego se não parar com isso!
— Já consegui decifrar boa parte — informou Leonardo. — O ritual para abrir os portões foi ditado à São Cipriano pelo próprio Lúcifer.
— De que adianta saber disso agora? — indagou Raiane.
— Tem mais coisa aqui. Eu sei que vou achar um jeito de resgatar a alma da Tia. Não posso deixá-la lá!
— Você precisa descansar — disse Raiane colocando a mão no ombro do irmão.
— Eu só vou parar quando encontrar cada um dos desgraçados que saíram daquele portão!
— Sei — disse Raiane. Era impossível discutir com o irmão. — Vê se dá notícias — ela falou apontando para o smartphone ao lado do livro.
— Ah — riu Leonardo. — Ainda tô aprendendo a fuçar nessa coisa... Peraí, como assim dá notícias?
— Estou voltando ao Brasil, mano.
— O quê? Depois de tudo o que...
— Não começa, Leo! Quero voltar pra vida que tenho lá.
— Mas...
— Nem mais um pio! — ela disse sorrindo. — Não se preocupa. A gente vai manter contato. Só não esquece de carregar o smartphone.
Leonardo a puxou para um abraço.
— Você não tem jeito mesmo.
— Bem... Sou sua gêmea, não é?
Leonardo riu. Acompanhou a irmã até a porta e esperou até ela embarcar em um carro que solicitara por aplicativo.
Olhou para o céu. A noite estava estrelada, com suas várias constelações. Mas ficaria atento aos sinais. O Inferno sequer imaginava a ira dos Cartago. Mas em breve ele conheceria. Em breve!
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Tradução do encantamento proferido por Leonardo.
*Com este sacrifício, eu ordeno que os portões se fechem novamente. Que os selos sejam novamente reestabelecidos. Assim sendo, através da força da palavra, que estas aberturas se fechem novamente e que sua energia evanesça contida novamente em selos inquebrantáveis. Que assim seja!
Continua...
ISBN: 978-65-00-92694-1