QUEDA DE BRAÇO

 

”Em setembro de 2015, uma cena chocante e assustadora parou parte da cidade de São Paulo, nas redondezas da Catedral da Sé. Isso porque, na escadaria do local, uma mulher de 25 anos que estava dentro da igreja foi feita como refém por um homem armado, mas, para a surpresa de todos, foi salva por um morador de rua — este, porém, infelizmente perdeu sua vida no processo.”

 

         Luisão era um sujeito ruim demais. Ladrão, estelionatário, traficante e assassino, tinha uma longa “capivara” de pelo menos uns trinta crimes nas costas. Por conta disso já havia cumprido pena durante mais de dez anos e agora estava solto, em liberdade condicional, há apenas um mês. Mas a sua liberdade já eram favas contadas. Acabara de participar de um roubo a banco onde ele e mais dois cúmplices haviam explodido um caixa eletrônico e matado um segurança na fuga. Por isso ele estava ali, naquele momento, cercado por três viaturas da polícia militar, na porta de uma igreja, com pelo menos dez policiais armados apontando suas pistolas para ele. 

Ele também estava armado e não iria se entregar sem luta. Sabia que se fosse preso agora morreria na cadeia. Afinal, já estava com mais de cinquenta anos. Com a ficha criminal que tinha, pegaria no mínimo uns trinta anos. Afinal, a esta altura, a polícia já sabia que o tiro fatal que matara o segurança saíra da sua arma. 

Os policiais já haviam percebido que ele estava armado. Tinha um trinta e oito nas mãos com quatro balas no tambor. Mas Luizão sabia que não ia adiantar abrir fogo contra os policiais. Eram dez armas contra a sua. Assim que disparasse o primeiro tiro, seria imediatamente fuzilado. 

─ Largue a arma e deite-se no chão com as mãos na cabeça ─ havia gritado para ele um dos policiais, agachado atrás de uma das viaturas, com um quarenta e cinco apontado para ele. Olhou para as outras viaturas e viu a fila de canos negros e sinistros apontados na sua direção. 

 

Enquanto esse drama se desenrolava na porta da igreja, dois sujeitos conversavam no meio da praça, olhando a cena que a grande maioria das pessoas, transeuntes apressados que passavam pelo local, não haviam ainda percebido. Um deles vestia um terno preto e usava uma gravata também preta, com sapatos da mesma cor. Uma barba negra, bem aparada, dava uma expressão estranha ao seu rosto, uma expressão que se poderia definir como um quê de implacabilidade e frieza, semelhante a um daqueles carrascos dos tempos da Inquisição. Mas eram os olhos que causavam uma impressão de medo e terror para quem o encarasse de frente. Eram de um azul violáceo, quase sanguíneo, que pareciam expelir chispas de ódio e violência tão intensas quanto relâmpagos cortando uma noite escura de tempestade.

─ Não adianta tentar salvar esse cara, Gabriel, pois ele já é meu ─ disse ele ao sujeito postado ao seu lado, também contemplando o princípio de tragédia que começava a se desenvolver na porta da igreja. ─ Esse você já perdeu ─ completou ele, com um sorriso sinistro, que faria o sangue de um ser humano gelar nas veias.

─ Não sei não ─ respondeu o outro sujeito, que foi chamado de Gabriel. ─ Lembre-se que enquanto ele estiver em território sagrado você não pode mexer com ele ─ completou ele, com um olhar severo para o sujeito de terno preto. O tal Gabriel era um senhor simpático, com barbas e cabelos tão brancos como flocos de algodão. Ao contrário do indivíduo vestido de preto, ele usava um terno inteiramente branco, com gravata e sapatos da mesma cor. Sua expressão, em contraste com a de seu interlocutor, era de uma calma celestial. Seus olhos também exprimiam uma impressão de infinita paz.]

─ Eu sei que não posso entrar nessa maldita igreja ─ respondeu o sujeito vestido de preto, soltando chispas pelos olhos. ─ Espero que lá dentro não tenha um maldito padre para frustrar os meus planos─ murmurou ele entre dentes.

 

Enquanto esse diálogo acontecia entre os dois sujeitos na praça, Luisão estava pensando no que poderia fazer para se livrar daquela situação. A única saída que lhe ocorreu foi se refugiar dentro da igreja. Na agitação febril que se passava em sua mente, imaginou que a polícia não ia violar o recinto sagrado da igreja para atirar nele lá dentro. Então poderia ganhar tempo e pensar em alguma coisa. Mas ali, na escadaria da igreja, com dez armas apontadas para ele, não dava para pensar em nada. 

Então foi o que ele fez. Numa manobra rápida, que desconsertou os policiais, ele entrou na igreja. Uma vez dentro,  olhou para os lados e não viu nenhuma saída. As portas laterais estavam todas fechadas. Foi então que viu a mulher ajoelhada, rezando. Uma idéia francamente diabólica se acendeu, como uma luz, em sua cabeça. Por que não pegar aquela mulher e fazer dela um escudo?

Sim. Com certeza a polícia não atiraria nele com medo de ferir a mulher. Mantendo-o sobre a mira da sua arma, poderia chegar até a rua e obrigar um daqueles taxistas que faziam ponto ali a tirá-lo daquela armadilha.

Foi assim que os assustados transeuntes, que naquele momento já se aglomeravam na praça, atraídos pelos gritos dos policiais e pela postura deles, entrincheirados atrás das viaturas, apontando suas armas para a porta da igreja, viram aquele homem saindo de dentro dela segurando uma mulher pelo pescoço. Ela se debatia e gritava, mas o homem lhe dera uma forte gravata. Ele era grande e musculoso. E parecia estar alucinado.

─ Eu mato ela! Eu mato ela! ─ Gritou ele para os policiais, colocando-a na sua frente, como se fosse um escudo, a arma colada na nuca da mulher, e começando a descer as escadas. 

 

─ Ah! ah!  Eu não falei que aquele sujeito era meu? Aqueles que eu corrompo nunca me escapam ─ disse o sujeito de terno preto, com um sorriso sinistro nos lábios.

─ Tudo bem, Lúcio. Esse eu não posso mais tirar das suas garras ─ disse o sujeito vestido de branco. ─ Mas não pense que você me venceu nessa ─ completou ele. 

─ Por que não? Você vai ficar sem levar ninguém nesse conflito. O meu já está no papo. Você já sabe o que vai acontecer. A polícia vai matar o cara assim que ele descer essas escadas, e você não vai poder me impedir de levar essa alma desgraçada para os meus domínios. E para você não vai sobrar nada desse conflito ─ disse o sujeito de preto, rindo diabolicamente.

─ Não tenha tanta certeza. Olhe lá. ─ respondeu o sujeito de branco.       

Naquele momento alguém irrompeu de trás de uma das colunas que ornavam a porta da igreja e se atirou sobre o Luisão. Surpreendido pela ação do indivíduo, ele escorregou e caiu.  A mulher, que havia caído junto com os dois homens que estavam embolados no chão, lutando, aproveitou o inesperado ataque que o bandido sofrera e desceu as escadarias da igreja correndo. Luisão levantou-se primeiro que o seu atacante e conseguiu pegar a arma que caíra da sua mão. Apontou-a contra o inoportuno herói que frustrara o seu plano de fuga e desfechou-lhe dois tiros à queima roupa no peito.  O infeliz cambaleou por alguns instantes, tateando pelas paredes da igreja, até dobrar as pernas e cair.

Quanto ao Luisão, ele não teve nem tempo de ver quem era o paladino que o atacara para tirar a vítima das suas garras. Sentiu uma dúzia de brasas vivas se chocando contra o seu corpo.  Cambaleou pelas escadarias da igreja, as mãos apertando o ventre em fogo, a consciência lhe fugindo rapidamente. Para ele estava tudo acabado.

 

A última coisa que ele viu, antes de mergulhar em uma escuridão insondável, foram as chispas de um sorriso malévolo, diabólico, sinistro, de um sujeito vestido de preto, lá no meio da praça. 

─ Você leva um, eu fico com o restante ─ disse o homem chamado Gabriel.

─ Porque você fica com o restante? Você só tem aquele idiota que quis bancar o herói - disse o homem de preto. ─ Tudo bem, ele é seu, mas hoje vai ser um a um ─ completou ele, com um suspiro de decepção. 

─ Um a um não ─ disse o homem vestido de branco. ─ Eu fico com a alma da mulher que foi salva e com todas as almas que presenciaram essa tragédia ─ completou ele, com um sorriso de superioridade.

─ Por quê? Eles não morreram ─ perguntou o homem que foi chamado de Lúcio.

─ Não. Mas em todas essas almas haverá daqui em diante um sentimento de admiração e gratidão pelo homem que salvou essa mulher. E o exemplo de coragem, solidariedade, amor e sacrifício que ele deu será para todos uma prova de que existe bondade e grandeza no ser humano. Apesar de toda maldade, toda a corrupção, todos os vícios e degradação que você tem espalhado pela humanidade, em todos os tempos e lugares, tentando destrui-la e afastar a criação do seu Criador, esse homem provou que ela tem méritos e encontrará a salvação. Nada está perdido. O homem é bom e a humanidade hospeda muita grandeza em sua alma.  E é por isso que eu tenho certeza, que no fim, você perderá, seu maldito desencaminhador de almas. Pois como disse o Senhor de todos nós, quando destruiu aquela Sodoma e Gomorra que você corrompeu, para que todos sejam salvos, basta que apenas um seja julgado justo. Por isso, Lúcio Lúcifer, esta queda de braço você perdeu. 

Naquele momento os sinos da igreja começaram a repicar. E o tempo, que estava escuro e ameaçador, abriu-se num lindo azul, iluminado por um belo e fulgurante sol. Um halo de luz desceu do céu e focou na porta da igreja, onde o corpo de um homem estava caído. Todas as pessoas, aglomeradas em volta dele, choravam, oravam e não se cansavam de louvar o seu heroico ato. 

Quanto ao cadáver do Luisão, ninguém conseguiu chegar perto dele. Apesar de morto há menos de cinco minutos, exalava um fétido odor de carne podre, misturada com enxofre, que podia ser sentido até depois que o corpo foi colocado no saco plástico do Instituto Médico Legal.