O caso do lago misterioso
“Cuidado com o que fala perto dos pássaros, porque nessa ilha eles espalham as coisas ao vento e o vento sempre cobra cada letra das palavras”. Minha avó sempre falava isso quando eu era mais nova, porém nunca acreditei muito nisso. Parecia apenas uma das muitas coisas estranhas que eram ditas naquela cidade. Principalmente pelos moradores mais antigos que gostavam de passar as tardes conversando na frente de suas casas.
Mesmo não acreditando uma parte minha começou a ficar de olho nos pássaros que ficavam perto de casa e principalmente da praça, que naquela época contava com muitas árvores com aspecto antigo. Minha atenção foi voltada para alguns pássaros específicos. Essas aves em questão diferente das outras não cantavam e ficavam muito tempo na mesma posição, como estátuas vivas. Era quase como se fossem infiltrados entre os outros pássaros somente para observar tudo ao redor.
E por falar em observar. Os olhos desses pássaros eram azuis e profundos como um oceano não explorado. Isso tornava tudo ainda mais assustador, mas mesmo assim continuei com minha rotina normalmente. É incrível a capacidade que o ser humano tem de se acostumar com as coisas. Os pássaros mesmo que assustadores passaram a ser somente mais um elemento da rotina. Depois que sair da cidade passei a pensar que talvez fosse algo no ar da cidade.
Logo ao amanhecer era possível notar uma neblina de cor meio laranjada, que saia da floresta e seguia em direção as casas. Acho que talvez nessa neblina tivesse alguma coisa que deixasse as pessoas mais calmas diante de todas as coisas estranhas que ocorriam da cidade. Era como se fosse uma forma de controlar o medo que seria natural diante da situação. Ainda não entendo bem, mas acho que talvez a cidade precisasse dos moradores por algum motivo e não quisesse que eles fugissem, que seria a reação natural diante dos fatos.
Voltando aos pássaros e seus olhos sinistros. Em um dia que tinha tudo para seguir a rotina algo mudou. Um dos pássaros que sempre ficava parado em um galho baixo saiu de seu lugar e voou até mim. O primeiro impulso foi proteger o rosto e os olhos. Por algum motivo pensei que ele iria tentar me atacar com seu bico. Mas não foi isso que ocorreu.
Ele pousou calmamente em cima da minha mochila e esperou pela minha reação. Meus olhos se encontraram com os dele e foi como se o tempo parasse naquele momento. Era como se ele tivesse tentando me dizer que era meu amigo e que não queria me fazer. Havia também alguma coisa que só fui compreender alguns dias depois.
A ave me seguiu até minha escola e esperou pacientemente na janela da sala de aula. No caminho de volta me seguiu até em casa e se colocou em um ponto do meu quarto como se sempre tivesse morado lá. Apesar do estranhamento da situação gostava da presença dele. Sempre quis ter algum bichinho de estimação para me fazer companhia, apesar de saber que ele era bem mais que isso.
A medida que a amizade com o pássaro ia crescendo era possível notar que algo de estranho ocorria com os outros pássaros observadores.
-Acho que esses pássaros estão nos observando de forma mais intensa.- comentei com ele certa vez enquanto voltávamos da escola. Mesmo que ele não falasse sabia que me entendia. Tanto que voou de forma protetora ao meu redor. Ao olhar na direção das árvores tive certeza que o que falei não era apenas paranóia minha, pois meu olhar encontrou os olhos dos pássaros fixos em mim.
O que era apenas um leve medo começou a virar paranóia. Aqueles bichos estavam até mesmo nos meus sonhos. Nunca vou me esquecer de uma noite em que me vi no meio de uma floresta escura, encoberta com uma névoa densa que parecia ter vida própria. Corria chamando por alguém e ninguém vinha. De repente olhos azuis surgiam na escuridão e um forte bater de asas, que para meu desespero pareciam vim de toda parte, principalmente de dentro da minha mente.
Corria até que me via frente a frente com uma grande fogueira. Ao redor dela pessoas com roupas de uma época que não sabia precisar. Elas pareciam está fazendo algum tipo de ritual. Ao redor deles como que guiados por uma música pássaros voavam em círculos fazendo um barulho baixo, porém perturbador que não parecia combinar com eles. As pessoas imitavam o barulho. De repente se fez silencio. Olhos me encararam com raiva, como se perguntassem como se atrevia a descobrir o segredo deles.
Acordei assustada, ainda com os meus ouvidos zumbindo um pouco. Foi no dia seguinte a esse sonho que ocorreu.
Tudo aconteceu em uma fração de segundos. Em um momento os pássaros estavam nos galhos e no outro estavam voando em minha direção e dessa vez queriam atacar. Não tive outra alternativa a não ser correr em direção a floresta para me proteger das aves. Meu pássaro amigo travava lutas com as outras aves maiores para me defender. Temia pela sua segurança. Pela nossa segurança. Naquele momento era como se fossemos uma coisa só. Criança e pássaro pareciam compartilhar uma mesma força.
Assim como começou de forma repentina o ataque também parou. Mas nesse momento já estavamos muito para dentro da floresta. Perto de um lago que eu nem sabia que existia. Em um ponto da floresta que era mais aberto para a luz do Sol. Aquele lago era como se fosse uma versão gigante dos olhos daqueles pássaros. O lago circular era azul profundo e tinha uma enorme mancha negra no centro que não se movia. Tudo isso me fez recuar alguns passos, mas meus olhos não conseguiam se desviar daquilo. Era como se aquele azul fizesse um convite.
Meu pássaro fez algo que nunca tinha feito. Com o bico começou a puxar a manga da minha blusa, como se quisesse me fazer sair dali o mais rápido possível. Mas meus olhos continuavam no lago. Quando mais olhava mais sentia afundar naquele azul sem nem colocar os pés na água. O vento que bateu em meu rosto parecia reforçar o convite para mergulhar um pouco e naquela brisa era como se ouvisse o canto mudo dos pássaros que me atacaram. Mas ouvi outro canto de pássaro, dessa vez que me fez lembrar da escola e de casa. E parecia transmitir um tipo de alerta para não entrar na água. O canto da minha ave querida me fez recuar quando faltavam somente quatro passos para entrar no lago. Corri para a rua principal o mais rápido que consegui.
Naquele dia decidi que iria sair daquela pequena cidade algum dia quando fosse maior e não iria sair sozinha. Meu querido pássaro iria comigo. Até porque conforme suspeito ele não me deixaria e também não poderia o deixar. Ele está por perto, como está agora. Apenas nos observando daquela janela enquanto terminamos essa nossa conversa.
Continuando. Sai quando fiquei mais velha e nunca mais soube daquela pequena cidade ou da ilha onde ela ficava. Até porque segundo o que os mais velhos falavam quem sai não encontra mais a entrada da cidade, porém de alguma forma quando passo por uma estrada deserta ou quando estou sozinha em casa e o vento entra pela janela é como se ainda repetisse o convite daquele dia. Convidando-me para mergulhar no profundo e misterioso azul do lago.
Temas: Ilhas
Obs:Fiquei muito triste de não ter participado do concurso do CLTS desse mês, não tive tempo de escrever um conto inédito, mas achei um texto antigo que se encaixa mais ou menos na temática e resolvi publicar de forma simbólica para representar que mesmo que eu não tenha participado diretamente, estou por perto ao redor da fogueira do CLTS . E com toda certeza vou participar como comentarista.