45 dias em casa - Pavor
A hora exclamava três da madrugada, os trabalhos da faculdade haviam sido adiantados, a programação dos afazeres do amanhã estavam montados, desliguei o computador e somente havia a luz do modem de internet ligado, brilhando suas singelas luzes amarelas.
Estava exausto, nem sequer procurei colocar uma camisa sobre as luzes do modem, as luzes podiam me incomodar que eu dormiria mesmo assim. Adaptando os olhos na escuridão, apalpei a cama e coloquei o joelho sobre ela para alcançar as janelas de madeira. Fechei-as e ao bater contra os batentes, o som externo foi abafado, havia silêncio, havia escuridão. Me sentei e acomodei o travesseiro, logo me deitei.
Com o novo quarto, esqueci de fechar e trancar a porta, estando presente a silhueta do rack com a luz da televisão em standby, indicando estar ligada na tomada. Ao piscar e virar o rosto para a parede, notei um vulto na porta do quarto, logo o sentimento de dúvida virou medo, esvaindo coragem para rever a porta.
Fechei meus olhos levemente, sem o peso das pálpebras como alguém com medo do escuro, deixei os olhos relaxados para tentar dormir, a sensação de presença na beirada da cama, sensação que temos sem ver, sem ouvir, sem cheirar, sem tocar, apenas a presença de algo que incomodava.
Virado para a parede sentia seu frio sob meu corpo, os meses de agosto tinham quedas repentinas de temperatura, ainda mais numa casa vazia de vida humana, eu estava imóvel, paralisado pelo sentimento de pavor, o medo ansioso de não saber ou não ter controle de uma possibilidade, a incógnita do desconhecido enrijecia minha nuca, trazendo aquele calor ruim, calor de ter medo de ser pego fazendo algo errado, mas não era culpa, era pavor.
Não consegui me cobrir para ter a falsa sensação de segurança que um pedaço de pano nos traz, estava frio, encolhendo-me em posição fetal para impedir o calor de me deixar, tatear a coberta e usá-la dava a impressão de estar acordado e o que me observava queria que eu soubesse de sua presença.
Puxava o ar com o nariz e soltava pela boca, imaginava a localização dos móveis e as suas distâncias, mas sentia o medo da porta aberta, se eu gritasse ninguém me ouviria, nem saberia qual o estado de decomposição iriam me encontrar caso o medo fosse real.
Na cadeira em frente à mesa, sentia a presença, sentia sua silhueta, abrir os olhos poderia ser meu alívio ou minha sentença, meu algoz “aquilo” ou eu mesmo. Os olhos tremiam, a mordida do frio me tinha em sua bocarra, a luz do modem enfraquecida e desesperançosa. O primeiro estalo dos móveis me manteve acordado, o calafrio descia até a ponta dos dedos, foi o móvel, certo?
O que estava lá conseguiu prender totalmente minha atenção, já sentia seu respirar, imaginava mil olhos, mil narizes, mil vozes, as possibilidades martelavam em minha ansiedade, o segundo estalo, ao longe no corredor. E se eu abrisse os olhos? E se eu corresse até o interruptor? E se eu me trancasse no banheiro? Meu telefone vibrou do travesseiro, será mesmo uma mensagem? A necessidade de atenção do que me observava era apenas diversão ou gostaria que eu confirmasse sua presença?
Minhas pálpebras se descolavam pela curiosidade, tremiam entre o pavor e a necessidade da verdade, meu cérebro queria tirar a dúvida, queria essa informação mais que respirar, gostaria tanto de abrir os olhos e ver a parede branca do quarto, não as janelas da alma de um ser sobrenatural.
Sua presença erradia sob o quarto clamando por atenção, louco pela descoberta, o ranger da cama veio seguido do silêncio, o mais silencioso que essa casa já produziu, permitiu por segundos que eu pudesse ouvir as batidas do meu coração, quanto tempo havia se passado? Minutos, horas?
Será se o sol da manhã invadiria as janelas laterais ou eu veria a penumbra até eu derrubar as cortinas por um pouco de luz? Fiquei atônito, queria me virar mais, mas e o medo de sinalizar que estou acordado?
Me virei em súbita coragem, agora minha face estava de frente para o computador e a cadeira, meus olhos não se incomodavam com a luz do modem, motivo de eu sempre colocar uma camisa sob o aparelho de internet. Ele estava lá? Arrepiei, nunca coloquei a cadeira na frente da luz artificial deixando-a me incomodar todas as noites, tossi na esperança do eco alcançar a parede do outro lado do quarto, de forma que nem chegou até a parede, como se o quarto tivesse presença suficiente para impedir os ecos.
O incômodo de estar sendo observado piorou com a tentativa de eco localização, a presença me abraçava como uma mortalha fria, estava gelado, meus ossos tremiam, o que me observava queria que eu abrisse os olhos, os pensamentos intrusivos me sabotaram para abrir, clamavam pela liberdade conceitual, urgiam desesperadamente por descobrir o desconhecido.
Ele me ouvia, ele me sentia sem me tocar, me cheirava sem respirar, me saboreava sem provar, a dúvida me matava enquanto meu coração batia vivo. O vento abraçava suave e gélido sobre minhas pernas, que não deveriam existir em um quarto fechado, eu não estava sozinho e pela primeira vez queria me sentir sozinho. Mas eu não queria tirar a prova da solidão ou da presença, neguei sua existência tão real quanto meu pavor.
Tudo que perturbava a estática do quarto me apavorava, não havia paz, não havia solidão, só medo acompanhado de pavor, um sentimento nascido do outro, criando monstros lovecraftianos em minha mente fértil, o silêncio assassinava qualquer som.
Lentamente amanhecia, os pardais gritavam com fome, à medida que a luz incomodava meus olhos, sentia a pestilência da presença sair do quarto, mesmo com a luz se intensificando eu temia abrir os olhos, somente com o calor da tarde os olhos falhavam em se cerrar, vi o branco da parede, só assim decidi abri-los por completo.
Levantei e coloquei os pés no chão, de relance olhei para a porta e temi, mas decidi não dar brecha dessa informação, ao computador, a cadeira estava virada para mim, eu não estou sozinho nessa casa e esse sentimento corroía as lacunas esperançosas da minha alma, meu coração confirmou pela primeira vez que não estive em solidão, não fecharei as janelas e arrancarei as cortinas para dormir, tudo estava frio, até o calor abandonou meu corpo, não quero dormir aqui.