FRÁGIL EQUILÍBRIO - CLTS 26
Caminhou mata adentro procurando pelo lugar ideal. Plano, próximo a uma árvore antiga, de tronco forte, que aguentasse seus golpes, e cuja copa não fosse densa demais, pois queria o calor do sol monitorando todo o treino. A manhã estava fria e, conforme esbarrava nos arbustos, o orvalho ia umedecendo a calça branca grossa e a camiseta amarela sem mangas.
O som dos pássaros matutinos o acompanhou até uma clareira circular onde um grande carvalho reinava no centro, sozinho. Seus galhos, imensos, robustos, preenchiam toda a área, chegando a cobrir as árvores mais próximas. O sol conseguia atravessar sua copa, mas em feixes isolados, deixando todo o espaço com um ar bucólico e tranquilo, superando qualquer expectativa criada no início da caminhada.
Deixou a mochila de lado, abriu a esteira de palha bem próxima ao tronco do carvalho e bebeu da água que trouxe em seu cantil. Tirou o tênis e, descalço, parou sobre o tapete em uma posição ereta, com os pés colados, os braços em posição perpendicular ao tórax e as duas mãos juntas, uma com o punho cerrado, e a outra aberta sobre ela. A cabeça abaixada, com o queixo junto ao peito e os olhos fechados. E respirava profundamente.
Ficou assim por alguns minutos, deixando o ar entrar e sair, fazendo com que os pensamentos fossem se dissipando e a integração àquele local se tornasse completa. E, então, com um movimento preciso, levantou o pé direito até o joelho esquerdo descendo-o, em seguida, na direção contrária, fazendo seu corpo abaixar em uma posição com os dois joelhos dobrados quase em noventa graus. Os dois braços, então, cruzaram-se nas costas.
Foram diversas mudanças seguidas, em que o artista marcial percorria todas as posições básicas necessárias dentro da sua rotina de aquecimento. Os olhos, sempre fechados. A respiração, sempre constante. Os efeitos da energia sendo controlada já se faziam sentir. Suas extremidades formigavam, as pálpebras pulsavam, a sensibilidade da pele aumentava. O chi, um mito para o homem moderno, agora rodava pelo seu corpo, e o verdadeiro treino, enfim, começaria.
Abriu os olhos e postou-se de frente para o grande carvalho. Imaginou que deveria ser centenário. Juntou as mãos novamente com um punho fechado e a outra mão aberta na direção da árvore, abaixou a cabeça, numa reverência.
- Eu o saúdo, habitante da floresta. Peço desculpas pelos danos que causarei em seu tronco. Mas só o farei talvez tenha a capacidade de suportá-los.
E então, assumindo posição de combate, o artista marcial desferiu o primeiro golpe no carvalho. Sua mão direita, formando uma garra, acertou a madeira com as falanges dos dedos. A mão esquerda assumindo uma postura defensiva. Em questão de segundos, a mão esquerda atacou, da mesma maneira, enquanto a mão direita, agora, defendia. E a sucessão de movimentos era acompanhada por uma contagem em chinês.
- I! Ar! San! Su! U! Liú! Tchi! Pá! Diô! Shu!
O tronco do carvalho, denso e resistente, aos poucos foi ganhando marcas dos golpes do artista marcial, que não se furtava de empregar todo o empenho possível. Foram sequências duras e drásticas, garras, punhos, canelas, pés, sem pausa, sem descanso, marcando pele e madeira de forma intensa.
Até que a árvore sangrou.
O espirro da seiva no rosto do artista marcial foi como uma chicotada em sua têmpora, e a força foi tal que conseguiu interromper a concentração do treino, fazendo um golpe parar no meio caminho. O artista marcial encarou o dano que havia causado no grande carvalho e olhou para si próprio, procurando ferimentos da mesma natureza. E não encontrou. Satisfeito, sorriu internamente e conferiu a posição do sol por entre as folhas, para ter ideia de quanto tempo havia passado desde que havia começado. A luz que atravessava a folhagem vinha de uma posição perpendicular, o que indicava o fim da manhã. Era hora de deixar a antiga árvore e retornar à cidade.
O artista marcial juntou seus poucos pertences dentro da mochila, mas, antes de deixar a clareira, molhou os cabelos loiros com um pouco da água do cantil, lavou a seiva do rosto e bebeu o restante, comeu uma pequena barra de proteínas e voltou a colocar o tênis. Olhou ao redor e viu que a clareira agora estava repleta de folhas caídas, resultado de seu treino incansável junto ao tronco.
Antes de ir embora, foi novamente ao carvalho, no local onde havia desferido todos os seus golpes, e encarou a ferida que havia causado. Parecia realmente uma ferida. E parecia pulsar, como uma inflamação, como se aquela seiva grudenta fosse pus. Colocou a mão no rosto e sentiu o formigar que a chicotada lhe infligira. O inchaço estriado marcava e ardia.
- Eu esperava mais de você, habitante da floresta. Não foi um combatente digno. Se entende que marcar meu rosto é sua forma de reação, então você não passa de um conjunto de móveis ainda não montado. Se algum dia eu voltar, meus golpes farão você cair e a floresta ouvirá o retumbar de minha glória.
O artista marcial partiu com um sorriso no rosto, dando as costas ao enorme carvalho, sem notar a rápida aproximação das nuvens negras, do vento que assoviava agressivamente por dentre as copas das árvores, como uma conversa sinistra que partia daquela clareira e ia se espalhando por toda a mata, o desaparecimento de todos os sons de pássaros, insetos e outros animais, e as sombras estranhas que começavam a se agitar em seu caminho.
* * *
A direção certamente era a mesma, mas a trilha parecia totalmente diferente. As árvores pareciam próximas demais, as folhas ásperas deixavam cortes superficiais em sua pele e esporos iam grudando nas roupas e nos pelos de seu braço. A escuridão trazida pela chuva iminente também atrapalhava e, em diversas ocasiões, tropeçou em raízes expostas não percebidas, chegando mesmo a cair uma vez, para rolar e levantar em um movimento bastante atlético. O passo apressado deixava sua concentração falha e, em um momento de descuido, prendeu a mochila em um galho que atravessava seu caminho, fazendo com que seu corpo virasse em uma posição não esperada e sentisse um esgar de dor num músculo das costas, estirado. A mochila acabou rasgada, espalhando os pertences no chão. E, em todo o percurso, a marca em seu rosto ardia e pulsava.
Abaixou para recolher o que pudesse e tentou fazer com que a mochila fizesse sua parte daquele jeito mesmo quando, com um flash de luz e um estalo absurdo no céu, as grossas gotas de chuva começaram a despencar nas folhas, produzindo um som grave, que em nada lembrava aquele costumeiro tamborilar tranquilizador. O som mais parecia um pulso ritmado, anunciador.
Amaldiçoando toda aquela situação, a floresta, a chuva e a escuridão, o artista marcial largou a mochila rasgada para trás e recolheu somente o essencial. Verificou a dor nas costas e achou que não o impediria de correr até onde achava ser o limite entre a mata e o parque que a abrigava. E foi o que tentou fazer.
Logo nos primeiros passos pressentiu algo errado e, de forma puramente instintiva, levantou o braço direito e aparou o que pareceu ser um golpe com um porrete. Em seguida, afastou a cabeça para a direita e sentiu o deslocamento de ar de algo que tentou atingi-lo. Com a adrenalina nas alturas, colocou-se em posição de guarda e procurou seus atacantes ao redor. A escuridão o recebeu apenas com parcas sombras de troncos, uma névoa rasteira e absoluto silêncio.
E então mais um golpe vindo de trás. Sua esquiva funcionou, e o posicionou de forma eficiente para que conseguisse bloquear com os dois braços um golpe furioso com o tal porrete. Desta vez teve um vislumbre do que o atingira. E, acreditando que a falta de luz o atrapalhava, pareceu que o golpe havia sido efetuado por um imenso galho.
Aquele momento de reflexão foi o suficiente para atrapalhar sua concentração. O artista marcial conseguiu defender mais um golpe e desviar de outro, mas não percebeu o que se enroscava em sua perna. O puxão foi forte, e o fez desabar de lado, apoiando a cabeça com o braço para se proteger, mas batendo as costas já lesionadas em um conjunto de raízes expostas que pareciam recentemente escavadas.
Sentindo muitas dores, levantou de forma cuidadosa, protegendo a cabeça de novos golpes. Quando entendeu que estava seguro, escolheu a direção em que fugiria e deu o primeiro passo. Foi quando percebeu a forma humanoide que brilhava à sua frente.
O brilho era pálido, e não iluminava seus arredores. E era um verde escuro, musgoso, como uma colônia criptogâmica radioativa. A forma humanoide era vaga, apenas um contorno com cabeça e membros, sem detalhes, sem gênero, sem rosto. Mas era possível sentir o seu pulsar, como se tivesse um coração, e o que esse pulsar transmitia era fúria.
O impacto daquela visão deixou seus nervos embaralhados. Estava acostumado a transcender os limites de sua própria natureza. Expandia suas fronteiras, buscava exercer controle de si mesmo para além do seu natural. Mas aquilo... aquilo não era natural. Era algo vindo de alguma mitologia, de alguma literatura, de outro mundo, e o seu conhecimento não podia explicar o que estava acontecendo.
Então a coisa, que pairava no ar a pouco centímetros do chão, apontou para o artista marcial. – Você, guerreiro, foi marcado como indesejado por um dos nossos. Sua visita foi permitida, o aceitamos no ventre de nosso habitat. Mas seu comportamento foi inaceitável.
A voz da coisa vinha de todos os lugares, e de lugar nenhum. E, enquanto falava, deslizava lentamente em direção ao artista marcial. Vinha em linha reta, atravessando árvores e arbustos, como se não houvesse nada em seu caminho.
- Você desonrou um de nossos antigos – a coisa ainda avançava, sempre com o braço estendido, apontando para a marca em seu rosto. – Você foi marcado, e eu sou o agente da vingança.
Arrepiado, aterrorizado com o encontro sobrenatural, e temendo pela sua vida, o artista marcial não pensou racionalmente. Apenas correu. Como nunca antes. Foi trombando com árvores que pareciam ter se colocado em sua frente, tropeçando em raízes que queriam derrubá-lo e em cipós que tentavam se enrolar em seus membros. E gritava. Gritava desesperadamente. Gritos daquele que entende que não terá uma morte pacífica, na velhice, e sim uma morte horrenda, nas mãos de um horror sobrenatural e vingativo.
A todo momento que podia, tentava entender se a coisa o perseguia, mas não conseguia ver o estranho brilho esverdeado em lugar nenhum. Sua respiração fazia o peito arder, e a marca no rosto dava a impressão de que, a qualquer momento, ia explodir, como uma pústula. O desespero começava a deixar sua visão turva, o medo fazia seus joelhos fraquejarem. E então vislumbrou luzes. E essas luzes estavam dispostas de formas regulares. Havia encontrado o parque. Ainda havia esperança.
Redobrou o esforço, renovou o vigor e, em uma última conferência, olhou para trás procurando a coisa esverdeada. Nada. Com o alívio daquela constatação, manteve o ritmo da corrida. E estava chegando muito próximo, quando foi golpeado no queixo por um galho que se moveu excessivamente rápido. A queda foi violenta, e sua cabeça foi ao chão fazendo um barulho seco, fazendo tudo rodar. Seu estômago embrulhou no mesmo instante, mas o artista marcial conseguiu conter o refluxo e o vômito. Precisava concluir sua fuga. Precisava sobreviver.
Mas não conseguiu levantar. Percebeu que, enquanto estava no chão, sua perna direita foi envolvida por um cipó grosso, que apertava absurdamente. A dor era excruciante, e forçava articulações em posições antinaturais. Novamente o desespero se abateu sobre ele, pois entendeu o que aconteceria. Tentou levar os braços até as pernas, mas não conseguiu, pois estavam enroscados em raízes e, antes de conseguir libertá-los, veio o som estalado e a dor aguda de seu joelho sendo estilhaçado. Seu tornozelo estalou logo em seguida.
Desta vez não conseguiu segurar o refluxo e vomitou o que havia no estômago em cima da terra úmida. Gritava, de medo, de dor, de desespero e, principalmente, tentando chamar a atenção de alguém ali no parque, pois estava próximo. Muito próximo. Conseguia ver os postes acesos por causa da escuridão trazida pela tempestade, e até mesmo um guarda em uma capa amarela.
- Socorro! Por favor! Socorro!
A coisa esverdeada, então, foi surgindo por entre as árvores, como um executor carregando um machado, que sobe os degraus do palanque no pátio do castelo.
- Não há fuga de nossa vingança. Você foi marcado.
E então a sombra verde se aproximou do artista marcial e, do que seria um dedo indicador, saíram finos ramos de um verde claro, que iam brotando, e brotando, e foram chegando próximo ao ouvido dele, que se debatia, e chorava, e gritava para ninguém ouvir. Os ramos entraram pelos seus ouvidos e, com um último grito ensurdecedor, o mundo escureceu.
* * *
O artista marcial foi encontrado naquele mesmo dia, com fraturas na perna direita, diversas escoriações menores, um ferimento grave no queixo e uma queimadura no rosto. Além disso, estava babando e balbuciando coisas ininteligíveis. Foi levado para um hospital, onde foi tratado e recuperado fisicamente. Mentalmente, entretanto, nunca pôde ser restaurado.
Um enfermeiro ajustava a posição da perna do artista marcial, quando o médico entrou no quarto ensolarado. - E então, doutor, qual a situação dele?
- Fizemos tudo o que podíamos. Mas, infelizmente, esse é o máximo que atingimos. Ele vai viver, mas precisará de cuidados. Terá que ser alimentado, banhado, vestido. Precisará de sol por alguns momentos, todos os dias.
- Como um vegetal?
- Exato. Como um vegetal.
Temas: artes marciais, espíritos vingativos