Desvairada Aparição

Uma casual conversa de bar, passando por uma incidental visita a uma cena de crime, até ser surpreendido por uma aparição fantasmagórica. Às vezes, quando a gente está procurando uma coisa, na base do acaso, acaba sendo encontrado por outra, afinal é impossível delinear os preceitos regidos pelo destino.

Aquela se anunciava como um fim de tarde diferente. Meu pai, padrinho e eu estávamos em uma mesa de bar, jogando conversa fora enquanto transcorria o tempo. Entre goles de cerveja gelada, os dois conversavam sobre economia, evolução e queda abissal do mercado financeiro, um pouco sobre futebol, enquanto eu tentava sair incólume daqueles assuntos pouco inspiradores. Preferia flertar com o suculento pastel de queijo, lutando para triunfar diante de sua elasticidade, como uma daquelas gomas de mascar. Apesar da dificuldade, devorava-o com volúpia, enquanto sanava a sede sorvendo generosas doses de coca-cola gelada.

O pastel oleoso proporcionava uma gula verdadeiramente lasciva, que acabou sendo rompida pelo garçom, ah aquele maldito garçom. Com a bandeja em mãos, oferecendo um semblante apreensivo e a testa umedecida de suor, sem delongas surpreendeu a todos com uma notícia nada jubilosa.

- Acabaram de assassinar a Jéssica! E você não vai acreditar seu Carlos, o pai dela, o professor Manuel, é acusado de ter praticado o crime! Tudo indica ser por causa de uma gravidez acidental. Em pleno século XXI, a coisa mais normal do mundo. Vocês acreditam? – disparou o rapaz, arfante! Após resfolegar por alguns segundos, mencionou ainda a prisão do suposto autor do crime bárbaro.

- Quem é Jéssica, afinal? – indaguei. Aquela altura, o antes deleitoso pastel agora descia de forma nauseante, despertando inconveniente vertigem.

- Eu conheço toda família! Manuel foi meu cliente, inclusive. Como pôde fazer uma coisa dessas? – lamentava o padrinho, desolado, ainda mencionando o desejo de prestar condolências à família, diante de um momento indubitavelmente tão adverso e violento.

Foi quando sugeriu que o acompanhássemos naquele penoso propósito. Assisti meu pai aceitar o convite de prontidão. Passaram a me mirar, ansiosos pela minha decisão. Eu não queria ir, mas para evitar ser tachado de egoísta ou coisa pior, não hesitei seguir com eles.

No curto percurso até ao apartamento onde moravam, pensei na garota, que teve a vida dizimada por uma mostra de violência tão desmedida, impulsionada por razão tão tacanha. A família até poderia reunir forças para seguir em frente, dar a volta por cima, mas o fulcro familiar permaneceria eivado.

Logo, a lua intumescida despontou no céu e com seu fulgor pardacento debelou o brilho das estrelas. Na portaria do condomínio onde a família morava, assim que meu padrinho se apresentou a nossa entrada foi autorizada. Ainda no hall do luxuoso edifício, meu padrinho mostrou a foto da garota que recém experienciou o desenlace da vida. O semblante, a revelar a pureza singular, agora maculada pela ira descomunal de um pai tresloucado, também denunciava a tenra idade, talvez não tendo sequer completado o 18º aniversário. Pensava que, com o mundo habitado por figuras tão nefandas, o próprio demônio é representado em sua essência natural!

Na porta de entrada para o apartamento, logo após tocar a campainha, lamentava ter que visualizar o local onde repousava a jovem, o palco daquela trama sórdida, erigida com traços obscenos. Uma mulher, possivelmente a secretária, atendeu e permitiu nossa entrada naquele apartamento com energia tão onusta, capaz de despertar inquietude. Mal entrara e estranhamente me sentia confinado naquela caixa de tijolos, areia, cimento, argamassa....

- Perdoem se estamos sendo inconvenientes. A dona Vera pode nos receber? - Perguntou meu padrinho, me levando a concluir que a pessoa citada seria esposa do tal assassino e a provável mãe da menina que momentos atrás teve a vida ordinariamente ceifada. – Como amigos, viemos para prestar comiseração nesse...

- A dona Vera saiu para tratar do velório e enterro da filha – interrompeu a secretária. Demonstrando estar muito chocada, lamentou o triste fim imputado à garota por um patriarca impelido de puro ódio e vaidade! – Tantas meninas engravidam nessa idade. Ainda posso ouvir os gritos dela, enquanto o miserável cravava as facadas contra seu corpo – expôs com os olhos marejados. Antecipando as respostas para outras perguntas, confirmou que Manuel já havia sido preso e o corpo da garota recolhido há poucos minutos.

Embora nos tratasse de maneira amistosa, era perceptível que a secretária estava acometida pela tragédia. Pensei em preencher algumas lacunas, dúvidas a saltar sobre meus olhos, como saber se o tal Manuel demonstrava antes comportamento violento ou se havia alguma rusga entre família e o pai da criança. Mas não tive coragem de ser tão invasivo e petulante.

- Eu vou passar um café para vocês. Se quiserem ver o local do assassinato, foi no segundo quarto à direita – comentou. Antes de seguir para a cozinha, frisou que os investigadores orientaram a entrada de uma pessoa por vez, pedindo ainda para o cômodo ser mantido climatizado, visando a preservação da cena do crime para mais ações por parte dos peritos.

- Quem, em sã consciência, teria o mau gosto de visitar o aposento, pano de fundo para um assassinato tão brutal? – refletia assistindo meu padrinho se mover pelo corredor. Torci para ser um alarme falso, naturalmente estava procurando o banheiro, até seus passos lhe levarem precisamente ao segundo corredor à direita. Com a saída do padrinho, foi a vez de meu pai matar a curiosidade. Como sempre acreditei que é sempre melhor nos arrependemos pelo que fizemos, assim que deixou os aposentos resolvi bisbilhotar também.

A primeira impressão, ao fechar a porta do dormitório, foi a de ter sido alvejado por um choque térmico, afinal a temperatura estava bem álgida em relação à sala de estar. O aposento era bastante amplo e, como em muitos outros quartos de garotas, tinha a decoração baseada nas cores branco e rosa. Havia ursos de pelúcia sobre vários nichos montados na parede, prateleiras adornadas por livros, além de um televisor tamanho médio fixado na parede.

A direita ficava o extenso guarda roupa, praticamente caberia uma boutique ali dentro. Dividido em duas partes, a cama ficava entre elas, havendo um criado-mudo de pequenas dimensões no canto esquerdo. Defronte à cama, uma escrivaninha onde pude notar algumas gotas de sangue formando um caminho até ao leito, encharcado pelo viscoso líquido purpúreo.

A despeito de não despontar como um especialista em assassinatos era fácil presumir: Jéssica estava sentada na cadeira, de frente ao computador quando foi surpreendida pelo pai. Empunhando uma faca, desferiu os primeiros golpes contra a filha, que, ferida, tentou se desvencilhar do agressor. Havia um ponto no qual era mais concentrada a abundância de sangue, possivelmente ali foram desferidos os golpes mais profundos. Sem forças, a garota tombou sobre a cama, onde permaneceu sofrendo a investida até sucumbir.

Há alguns metros da cama, uma das portas do roupeiro estava aberta e lá havia um espelho. Quantas vezes o objeto fora usado para refletir sua beleza? Agora isso não aconteceria mais. Se estivesse em um sonho ou aquele fosse um filme de terror, trataria de passar longe, temendo desagradáveis surpresas. Estranhamente o objeto refletia uma névoa, somente visualizada através do reflexo. Não consegui permanecer impassível diante do fenômeno sombrio. Da neblina, vi emergir uma garota, coberta por sangue que escorria pelos longos cabelos. Ardilosa nas sombras, ela tinha os olhos cerrados, negrumes, ostentando nas mãos um amontoado de carne humana, semelhante a um feto, completamente desfigurado, exalando um choro pavoroso, mais semelhante a um sussurro esganiçado.

- Salve o meu bebê, salve o meu bebê, salve o meu bebê, salve o meu... – vociferava, com estrídulo. A misteriosa e desvairada aparição se aproximava, lentamente. O choro da criança ficava mais intenso, enquanto permanecia se aproximando, bem lentamente... Os passos seguintes deixaram-na tão próximo a ponto de, na tentativa de correr com todas as forças, acabei foi despertando do sono, deveras assustado, como se escapasse da masmorra do inferno.

No mundo real, narrei a trama para amigos. Alguns argumentaram que meu subconsciente armou uma arapuca previsível, nítida pela forma como o enredo foi costurado. Já que tudo não passava de um sonho, lamentei não ter sido capaz de salvar a Jéssica dentro de meu próprio estranho mundo. Por que diabos, o inconsciente preteriu a oportunidade de me tornar herói, apenas para idear uma personagem morta, vivendo tão somente para me assombrar?

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 28/02/2024
Código do texto: T8008772
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