AMABÍLIA– CLTS 26

Ano de 2024.

Era um corredor de árvores desesperadas, folhas caindo e ondas colossais cobrindo as pedras. No topo do monte, pássaros voavam e debandavam sem qualquer organização. Os tremores na ilha faziam os animais correrem enlouquecidos sem direção, sem fluxo. Pequenos roedores despencavam dos galhos como se fossem frutas maduras, crocodilos saíam da água sem rumo, passando por cervos sem qualquer intenção de comê-los, javalis grunhiam em agonia, enquanto insetos invadiam as áreas habitadas, formando enxames vorazes. Aquela insanidade toda estava sendo despejada em um dos mais belos locais do mundo. Era a catástrofe natural aguardada desde o início da civilização. Não havia mais brisa, acabava a serenidade. O céu, outrora sereno, tornara-se uma tapeçaria sinistra de nuvens carregadas, obscurecendo a luz do sol. O vento de temporal se aproximava e circundava a região. O mar revolto subia e invadia as casas ao redor. Pessoas se chocavam com animais, perdendo a vida ali mesmo. Pedaços de troncos de árvores quebravam vidros e penetravam corpos. A extinção era vista como óbvia.

Era apenas o começo...

A ilha remota e exuberante chamada Amabília, por séculos, permaneceu escondida nas sombras. Situada no meio de um vasto oceano, era um lugar de beleza incomparável, com praias de areias douradas, florestas verdes e montanhas majestosas. No entanto, com o tempo, a ganância humana ultrapassou as barreiras e chegou para explorar o local em busca de recursos naturais preciosos e construções de mansões para saciar o desejo dos mais afortunados. O governo conseguiu, por muito tempo, manter o local apenas para visitação, entretanto, quando o dinheiro falou mais alto do que a sensibilidade, tudo mudou. Uma grande empresa tomou posse do que não havia dono e começou as construções. Após cada nova descoberta, mais exploradores chegavam, trazendo consigo suas máquinas e suas ânsias insaciáveis por riqueza. Além das grandes e luxuosas casas, pessoas começavam a se instalar nos assentamentos.

Amabília assistiu impotente à chegada de embarcações humanas. Inicialmente, os forasteiros pareciam inofensivos, mas a ganância dos humanos não conhecia limites. Florestas foram derrubadas, animais foram caçados até a extinção e as águas no meio da ilha foram poluídas. Em pouquíssimo tempo o cinza das mansões substitui o verde da vegetação, tudo era apenas dinheiro no bolso dos grandes empresários e sorrisos largos em quem poderia pagar milhares de dólares por um mísero fim de semana.

Tudo parecia trivial até o evento catastrófico ocorrer. A natureza, inflada com a energia que estava adormecida por séculos, ganhou consciência quando foi inadvertidamente perturbada por uma equipe de obras que se deleitava a cada árvore que caía. Muito havia sido derrubado, como se tivesse atingido o coração ou uma artéria importante dentro do sistema. Isso desencadeou uma reação em cadeia, Amabília, de alguma forma, se tornou consciente dos danos causados pelos humanos à sua terra, à flora e à fauna. Movida pela dor e pela raiva, decidiu se revoltar contra esses invasores.

A reação começou diante da presença destrutiva dos humanos. As árvores da floresta, antes moradias de pássaros e demais animais, ganharam vida própria, contorceram-se e lançaram raízes como tentáculos, perfurando corpos, engolindo máquinas e construções. Cipós apertavam com força, arrancando gritos de dor enquanto se enrolavam ao redor dos membros indefesos. Pessoas eram arremessadas para o alto e caíam explodindo contra o chão. Aquela chuva de humanos atingia também os que tentavam fugir da fúria dos ataques. As montanhas rugiam, desencadeando deslizamentos de terra, sepultando as trilhas exploradas pelos humanos e liberando rochas na direção dos assentamentos. As casas se desmanchavam e sumiam sob as pedras. As ondas do mar, antes serenas, se erguiam, inundando as praias e devorando os barcos que faziam a travessia, afundando lentamente e levando consigo os marujos desavisados, que ao tentar nadar percebiam o violento repuxo os arrastar com força surreal. Até mesmo o céu se enfureceu, enviando tempestades elétricas com uma ferocidade incompreensível para punir aqueles que ousavam desafiar a ilha. Raios cortavam o céu, iluminando um espetáculo apocalíptico, com corpos em chamas que rolavam pelos entulhos até o último suspiro. Os gritos humanos sendo caçados sem piedade misturavam-se ao rugido da tempestade e o sangue se misturava à água da chuva, pintando as folhas de vermelho em um cenário de pesadelo.

Animais pareciam ter uma afinidade natural com a terra viva, emergiam das sombras com olhos brilhantes e presas afiadas. Juntavam-se em bandos para sumir com corpos pequenos como se ajudassem a ilha com a limpeza do que não fazia parte da natureza.

Uivos ecoavam pela densa vegetação enquanto matilhas famintas de lobos se lançavam sobre os fugitivos, atacando com ferocidade implacável. Serpentes venenosas se enrolavam em torno de pernas desprevenidas, injetando seu veneno letal enquanto os corpos humanos caíam em convulsões agônicas.

Pássaros de rapina mergulhavam do céu em picadas precisas, arrancando carne com seus bicos afiados, enquanto os jacarés saíam dos pântanos para arrastar vítimas para as profundezas lamacentas.

Alguns humanos se lançavam em corrida desesperada pela praia, apenas para serem interceptados por tubarões vorazes que patrulhavam as águas, prontos para devorar qualquer presa que ousasse se aventurar em seu território.

A ilha não deixava pedra sobre pedra na sua busca por justiça. À medida que os humanos tentavam escapar, encontravam-se enredados em uma dança macabra com o ecossistema. Alguns desesperados tentavam lutar contra as árvores, mas cada golpe era respondido com uma reação violenta. Cada passo dado era uma emboscada, cada sombra escondia um perigo, a própria terra se rebelava, criando elevações abruptas e buracos traiçoeiros. Raízes expostas transformavam-se em armadilhas mortais, agarrando tornozelos e derrubando os mais desavisados.

A terra movimentou-se como se tivesse descolado.

Enquanto a noite caía, a ilha lançou seu último golpe. A escuridão total envolveu Amabília e um silêncio sepulcral caiu sobre tudo. Os visitantes restantes, agora desesperados para escapar, encontraram-se perdidos em um labirinto intransponível, onde o caminho de volta era constantemente modificado pelas forças da natureza.

...

Passaram vinte e quatro horas de horror, o vento acalmou e as águas baixaram. Os poucos sobreviventes tentaram entender a razão por trás da fúria, mas Amabília não se comunicava diretamente. Era como se a própria terra estivesse clamando por justiça. A chuva deu trégua e o sangue manchava a areia, antes clara, agora criava uma visão sombria e desoladora. Pais procuravam filhos, filhos gritavam o nome dos pais e feridos saíam do meio dos troncos com rostos inchados, cortes profundos e apavorados com o que haviam presenciado.

Pouco se falava, ninguém tinha explicação para tal fenômeno. Atônitos, apenas olhavam em volta fazendo contagem do que sobrara dos corpos. O dinheiro nesse momento não tinha valor algum. Sem qualquer sinal de celular ou rádio e também sem ter como sair pelo mar, quem sobrou estava sob a ameaça da ilha.

As árvores aquietaram-se e voltaram a florir instantaneamente como se nada tivesse acontecido. O mar mantinha-se como um lençol transparente e sereno e os animais voltavam lentamente para seu habitat.

Amabília parecia satisfeita com o feito, o verde subia pelos escombros das casas e as poucas pessoas andavam sem saber o que fazer, procurando alguma forma de se alimentar e aguardando algum tipo de resgate.

O clima mudou completamente e o sol brilhava no céu enquanto pessoas escreviam mensagens na areia para que pudessem ser vistas do alto. O resgate chegou. A ilha novamente estava inabitada e virando lenda.

Ano de 2056.

Uma nova expedição incrédula sobre o que havia sido escrito e contado sobre Amabília desembarca na ilha. Com maquinário pesado e de alta tecnologia, rapidamente abriram trilhas e construíram bases para os muitos trabalhadores que desembarcariam. O vasto verde e o colorido dos pássaros cheirava a dinheiro para aqueles que projetavam o grande Resort em meio àquelas águas cristalinas.

O processo começou com o desmatamento e a procura de tudo que fosse mais valioso. A intenção era de em menos de um ano o turismo estivesse alavancado para trazer milhares de pessoas para explorar e deixar porções de suas fortunas.

Mais uma vez, os habitantes humanos, cegos pela ganância avassaladora, iniciavam um ciclo de destruição. A vida marinha, antes, exuberante e diversificada, estava agora à mercê da devastação causada pela poluição desenfreada despejada pelos invasores. Os corais, antes desabrochavam em cores vibrantes, transformaram-se em sombras cinzentas de sua antiga glória, tornando-se frágeis testemunhas do declínio ambiental. As flores, símbolos de vitalidade, murchavam sob o peso da negligência humana, enquanto animais desapareciam misteriosamente ou eram encontrados mortos sem explicação aparente.

A terra, agora gemia sob o peso da exploração desenfreada que se repetia como um ciclo vicioso. Amabília, a ilha consciente, despertava de seu estado de letargia, respondendo à dor infligida por mãos insensíveis. As árvores antigas e majestosas da floresta, sinônimo de vida pulsante, contorciam-se em agonia como se sentissem a punição imposta pela insensatez do homem. O solo, espectador silencioso do passado, tremia sob o peso da tristeza que envolvia a ilha pela segunda vez, como um lamento ecoando através da terra ferida.

Os homens foram pegos de surpresa pela revolta da ilha prestes a sufocar, que estava decidida a se vingar daqueles que a destruíram e, finalmente, dizimar todos os invasores. A natureza, unida em sua fúria, não permitiria mais a destruição impiedosa testemunhada por tanto tempo.

A revolta contra os invasores ganhava força, enquanto as forças elementares se uniam para revidar contra a exploração desmedida. O oceano ecoava a indignação de Amabília e as marés agitadas eram um eco retumbante da resistência da natureza à invasão humana.

Dessa vez não haveria mais destruição, Amabília decidida a restaurar o equilíbrio ecológico, utilizaria a energia humana como meio de renovar sua própria vitalidade. Os homens, símbolos da voracidade que ameaçava a ilha, eram engolidos pela terra e cobertos por folhas e as máquinas, ferramentas e todo e qualquer vestígio humano era coberto pelas raízes e troncos. Os gritos desesperados dos forasteiros reverberavam com uma agressividade incontrolável, levando os lobos a uivar em uníssono para abafar a melancolia que permeava o ar. Após alguns breves minutos, gemidos isolados ainda rompiam o silêncio, mas, logo, até esses sussurros de aflição foram abafados pelo silêncio total. Homens, enfim, foram silenciados para sempre, seus destinos foram entrelaçados com a própria essência da natureza revoltada.

A ilha, embora tenha sofrido as agruras da invasão humana, demonstrava uma resiliência surpreendente, como se cada árvore, cada pedra e cada raio de sol estivessem dedicados a reconstruir a ordem natural.

A natureza mais uma vez se recompôs sem deixar rastros do que realmente aconteceu.

Amabília, agora envolta em uma aura sombria, permaneceu como um testemunho de sua vingança implacável. Ao longo das margens, onde antes a água tumultuada engolia os vestígios da intrusão, as ondas agora acariciavam a costa com uma serenidade renovada e a ilha, manchada pela presença humana, voltou à sua quietude. Uma névoa escura cobriu todo o verde, obscurecendo-a da vista dos navegantes.

Amabília continua existindo, no entanto, o ser dito humano não tem mais o direito de enxergá-la.

Cristian Canto
Enviado por Cristian Canto em 26/02/2024
Reeditado em 12/03/2024
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