Nos Portões do Inferno (6): Capítulo 4: Na Casa da Bruxa

Capítulo 4

Na Casa da Bruxa

I

Um Ford Mustang 78 preto estacionou frente à uma fazenda do Complexo Rural Bauernhof. Certamente era a casa de Heidi Glauer, a julgar pelas fitas de isolamento da polícia que selavam o lugar. Os ocupantes do carro não saíram imediatamente. Leonardo, ao volante, observava com fascinação no semblante a tempestade que se formava ao sul. Daniel, ao seu lado, não desperdiçou muita atenção com o cenário, estava mais interessado nos papéis que tinha em mãos.

— É, tá certo — disse pousando os papéis no colo. — Esta é a casa.

— Descobriu isso sozinho? — zombou Leonora no banco detrás apontando para as faixas que isolavam a entrada da casa.

Daniel mordeu a mandíbula, respirou fundo, pensou em rebater, mas ficou quieto, nunca ganhava uma guerra de provocações contra a tia. Eilson tentava captar algum sinal de internet no smartphone, mas não obteve sucesso. De volta aos velhos tempos!

— Então vamos lá — disse Leonardo abrindo sua porta. — Mas isso aqui é um fim de mundo, hein? Fala sério — esbravejou chutando algumas pedras.

— Bem isolado — comentou Daniel. — Se os demônios estão aprontando uma grande, este é um lugar perfeito.

— Tá legal — disse Leonardo mostrando uma moeda para o irmão —, vamos entrar na casa ou falar com os vizinhos? Cara ou coroa? Escolhe.

— Acho melhor falarmos com os locais primeiro — disse Leonora juntando-se aos dois e olhando de modo repreensivo para a moeda de Leonardo que revirou os olhos e fez sinal para que todos voltassem para dentro do carro.

Rodaram mais um pouco e estacionaram em frente à fazenda vizinha.

Daniel se adiantou até a porteira, procurou alguma forma de campainha e, não encontrando, bateu palmas. Ninguém respondeu. Leonora indicou que o portão estava destrancado. Entraram. Caminharam alguns metros até chegar à casa. Novamente, Daniel adiantou-se, subiu os degraus que levavam à varanda e deu três batidas na porta que logo foi aberta por uma jovem. Daniel e ela se encararam por alguns instantes até Leonardo pigarrear.

— Tô atrapalhando alguma coisa?

Daniel saiu de seu transe sorrindo sem jeito.

— Eh... Me desculpe, moça — disse Daniel tentando conter o embaraço —, somos investigadores...

— Detetives? — indagou a moça abrindo um largo sorriso. — Tão jovens — disse notando Eilson logo atrás.

— Ah, obrigado — continuou Daniel —, é muita gentileza sua...

Leonardo pigarreou novamente.

— Olha, se você quer um xarope, é só pedir, cara! —redarguiu Daniel irritado.

— Relaxa — disse Leonardo se divertindo enquanto dava um tapa no ombro do irmão.

— Em que posso ajudar vocês — disse a jovem solicita.

— Estamos investigando o que aconteceu na fazenda ao lado — informou Leonardo.

— Ah... É isso — disse a moça enquanto o sorriso desaparecia de seu rosto. — É claro que é. Seria melhor falarem com meu irmão ou com meu pai.

— Pode chama-los? — indagou Leonardo.

— Só o Cristiano está em casa — informou a jovem. — Só um minuto.

A moça desapareceu para casa e logo voltou acompanhada de um rapaz tão louro quanto ela que era impossível negar que eram parentes.

— Boa tarde — saudou o rapaz. — O que desejam?

— Olá, Sr.? — disse Leonardo adiantando-se e estendendo a mão.

— Machado. Cristiano Machado — respondeu o jovem apertando a mão de Leonardo.

— Somos da polícia — mentiu Daniel também cumprimentando o rapaz. — Jogaram o caso da fazenda ao lado em nossas mãos. Poderia nos dar alguma informação?

— Não tem muito pra se ouvir — disse o rapaz saudando também Leonora e Eilson. — Mudamos há pouco tempo.

— Qualquer coisa pode ajudar — insistiu Daniel.

— Bom — prosseguiu o rapaz —, tá legal. Espera lá dentro, Melissa. — A jovem se retirou a contragosto e o rapaz continuou em tom sombrio: — Ela não viu o que aconteceu naquela casa. É melhor que continue sem saber. Já era madrugada quando a gente acordou com as paredes tremendo, tipo um terremoto, sabe? Eu acho, pelo menos. Nunca vivi um terremoto, mas deve ser parecido. Levantamos, vimos um clarão pelas janelas e depois algo que parecia uma explosão, não muito alta. Vimos que o clarão vinha da casa aí do lado, da vizinha.

— Como era o nome da vizinha? — indagou Leonardo para confirmar.

— Heidi Glauer — informou Cristiano.

Os Cartago se entreolharam.

— Sabe se ela morava sozinha? — indagou Daniel.

— Parecia que sim, nunca vimos outra pessoa por lá.

— Certo. E o que mais? — instou Leonardo.

— Fui com meu pai lá. Olha, não sei o que aquela velha fez, mas ela explodiu, cara, pra todos os lados. Estava no teto, nas paredes... — informou Cristiano com admiração e nojo.

— Sei — disse Leonardo. — E aí? O que fizeram?

— Quando a gente viu aquilo, chamamos a polícia. Vieram bombeiros... Vocês tinham que ver, usaram pás para raspar ela do teto!

— Você parece ser do tipo que curte histórias de terror, não é? — comentou Leonardo.

— Sabe, cara — disse Cristiano olhando para o nada —, quando nos mudamos para cá, achei que não ia ter nada de interessante por aqui. Aí aconteceu isso!

Os Cartago o encararam por um tempo.

— Digo, claro que tudo o que aconteceu foi horrível — prosseguiu o rapaz meio sem jeito. — Não tô dizendo que gostei da parada que rolou, não me entendam mal.

— Tá legal — disse Leonardo. — A gente volta depois pra falar com teu pai.

— Pra onde vão? — indagou Cristiano.

— Vamos falar com os outros moradores — informou Daniel.

— Ah, esqueçam. Não tem ninguém. A gente já olhou, tá tudo desocupado. Meu pai disse que são fazendas arrendadas, mas é entressafra, ainda não chegou ninguém. Vocês podem esperar aqui, minha irmã coou um café...

— Seria ótimo...

— Não — cortou Leonardo antes que Daniel aceitasse o convite. — Temos que olhar a casa, esqueceu?

Daniel o encarou irritado e desceu os degraus em direção à saída.

II

Leonardo se aproximou, atravessou a faixa da polícia e destrancou o portão da casa de Heidi Glauer. As ervas daninhas que recobriam o quintal em frente à casa ultrapassavam a altura das panturrilhas. Daniel examinava cada parte registrando tudo em sua mente.

A casa em questão era idêntica à dos Machado e, olhando ao longe, provavelmente todas as residências do complexo eram iguais: quadradas, dois andares, fachadas com varandas e escadinhas de acesso.

Leonardo parou de andar abruptamente e olhou de um lado ao outro.

— O que foi, Leo? — indagou Leonora.

— Repararam que é uma fileira de fazendas iguais? E são sete, não é?

— E daí? — indagou Eilson.

— Número sugestivo, não acham? — respondeu Leonardo.

— Sei — disse Daniel impaciente. — Por que a gente não continua andando? Deve ter coisa mais interessante pra se ver dentro da casa.

Leonardo soltou um muxoxo e retomou o trajeto até a porta.

A casa aparentava ser toda de madeira, sem nenhuma estrutura de alvenaria. Atravessaram outra fita da polícia que selava a varanda.

— Querem bater pra ver se tem alguém em casa? — indagou Leonardo.

— Abre logo a porta e para de graça — disse Daniel irritado.

Leonardo se ajoelhou esboçando um sorriso enquanto tentava destrancar a porta com uma chave micha.

— Tá zangado por que eu cortei teu flerte com a lourinha, é? — provocou Leonardo.

Daniel iria rebater o desaforo, mas perdeu o ar, pois o forte cheiro de enxofre que saiu de dentro da casa quando a porta foi aberta sufocou a todos.

— Definitivamente é um dos nossos — disse Eilson em meio a um acesso de tosse.

Após recuperarem o fôlego, adentraram o ambiente. Encontraram-se em uma sala escura. O cheiro de mofo também era evidente. Os odores sobrepujavam-se levando-os ao enjoo. Puderam divisar um sofá com vários rasgos de frente para uma lareira própria para casas de madeira.

— Ninguém se lembrou de trazer uma lanterna? — indagou Leonardo ajoelhando-se de frente para a lareira.

— É dia — justificou-se Leonora.

— Aqui — disse Eilson ajoelhando-se ao lado do primo enquanto ativava a função lanterna do smartphone.

— Ah! — admirou-se Leonardo. — Esse troço faz isso também?

O primo sorriu e iluminou a abertura da lareira.

— Seja o que for, é muito provável que tenha saído por aqui — disse Leonardo.

— Como sabe? — indagou Eilson.

— O cheiro de enxofre é mais forte aqui — explicou Leonardo. Cinzas espalhavam-se por toda a abertura da lareira e pareciam ter sido expelidas de dentro para fora em todas as direções. Leonardo passou o dedo. — Tá vendo? Tem um pó amarelado misturado com as cinzas. É enxofre.

— Vamos abrir essas janelas? — disse Leonora pragmática. — Estamos na escuridão por que, afinal?

— Só pra deixar a coisa toda mais sinistra — zombou Leonardo.

Daniel e Leonora abriram as duas janelas. Eram pesadas e pareciam estar tomadas por cupins.

— Ainda acha que no escuro é mais sinistro? — disse Leonora devolvendo a zombaria à Leonardo quando a claridade do dia revelou o cenário macabro.

Um rastro de cinzas saia da lareira em direção ao lado oposto onde, na parede e teto, misturavam-se a vários filetes escuros e gelatinosos que pareciam ter sido jogados ao teto e escorrido pela parede.

— Aquilo ali é um olho? — indagou Eilson enojado apontando para uma região do teto.

— É — informou Daniel encarando o globo ocular azul pregado lá em cima. — E isso tudo é sangue e... pedaços de órgãos, eu acho.

— Não usaram muito bem as pás — comentou Leonora. — Ainda dá pra ver uns dentes espalhados por aí. Nojento!

— Tá legal — disse Leonardo —, parece até arte moderna. Seja lá o que for que tenha saído dali, esmagou a pessoa contra o teto e a parede.

— Não é melhor ficarmos com as armas e... A água benta — indagou Eilson. — Só por precaução, sabe?

— Pega lá no carro pra gente — pediu Leonardo lhe passando a chave.

A abertura das janelas aliviou o cheiro do ambiente. Quando Eilson retornou com as armas e outros aparatos, localizaram a escada e subiram ao andar superior. Lá encontraram um quarto desarrumado. Todos os outros três cômodos assemelhavam-se a uma biblioteca antiga. Abriram todas as janelas que encontraram para ventilar os aposentos.

— Paraíso para traças e baratas, não é? — comentou Leonardo.

— Tudo isso são livros de magia? — indagou Eilson adentrando um dos cômodos.

— É, Heidi Glauer parecia ser bastante culta, hein? — comentou Daniel.

— E muito velha também — disse Leonora no cômodo vizinho.

Foram até ela e se viram em meio a outras estantes antigas.

— Tem vários grimórios aqui, sobre ervas, poções, rituais, tem de tudo — informou Leonora estendendo um grimório para Leonardo ver. Ele o pegou, a capa era feita de madeira, revestida com couro animal. Passou os olhos pelas páginas amareladas e quebradiças e olhou para tia.

— O que tem de mais aqui? — indagou.

— Olha a data na primeira página — indicou Leonora.

— 1763? — admirou-se Leonardo. — Foi há mais de duzentos anos. Acha que passou de geração em geração?

— Não — disse Leonora enquanto passava a mão pela lombada de outros grimórios. — Está tudo assinado como Heidi Glauer.

— Então o quê? Ela descobriu alguma fonte da juventude? — questionou Daniel.

— Ou a pedra filosofal — sugeriu Eilson.

— Seja lá o que for — disse Leonardo —, é coisa grande.

Lá fora o tempo nublava, indicando que a chuva começaria a cair em breve.

III

Mais de uma hora se passou sem que a chuva desse trégua lá fora os obrigando a fechar novamente as janelas. Leonardo encontrou um estoque de velas de variadas cores e tamanhos.

— Bruxa que se preze tem que ter velas, não é não, Tia?

Ela lhe estirou o dedo médio provocando risos de Eilson e Daniel. Eilson usou novamente a lanterna do smartphone enquanto os outros, à luz de velas, reviravam a biblioteca atrás de informações que ajudassem a entender o que os demônios buscavam e porque Raiane fora atacada.

— A velha não era brincadeira — disse Leonardo fechando um grimório de 1813 com uma capa feita de couro de cobra. — Sinistra!

— Achei — exclamou Eilson.

— Achou o quê? — inquiriu Leonora.

— A chave da juventude dela: pactos!

— Pactos? No plural? — indagou Leonardo juntando-se ao primo.

— É, não sei o que ela aprontou, mas nesse grimório aqui ela relata todos os pactos que fez.

Leonardo pegou o artefato das mãos do primo.

— Filha da mãe! — exclamou após folhear algumas páginas. — Parece que sempre que um pacto ia vencer, ela fazia outro, com um demônio diferente, para se livrar da dívida anterior.

Daniel também pegou o grimório para ver.

— Não conheço muitos desses nomes, Tia. A senhora já estudou demonologia, consegue entender o que ela fez?

Leonora caminhou até a mesa e se pôs a folhear o antigo diário.

— Conheço alguns nomes, estão escritos em várias línguas arcaicas, mas já deu pra entender um pouco, não sei se ela planejou isso, ou descobriu por acaso, mas parece que ela fez pactos de forma hierárquica e, até certo ponto funcionou, não é?

— Hierárquica? Tipo, do soldado mais raso ao general? — indagou Leonardo.

— Isso. Ela usou a hierarquia infernal para fazer os pactos. Começou pelo nível mais baixo e foi subindo...

— Sim, eu entendi o que é hierarquia, quero entender como ela conseguiu convencer os demônios — disse Leonardo.

— É como você já constatou — prosseguiu Leonora —, quando o pacto estava para vencer, ela convocava um demônio de hierarquia superior e fazia um novo pacto. Provavelmente, ela oferecia algo de maior valor toda vez, talvez algum artefato que interessasse aos demônios, algo do tipo, eu imagino.

— E isso anulava o pacto anterior? — indagou Daniel.

— Provavelmente ela pedia isso nos termos do contrato — disse Leonora. — E renovava o pacto para não morrer.

Um rangido estridente indicou que a porta do andar de baixo foi aberta. Todos ficaram atentos.

— Ninguém trancou a porta? — indagou Leonardo.

Todos menearam negativamente a cabeça.

A escada rangeu.

Leonardo e Daniel empunharam as armas e miraram para a porta enquanto ouviam seja lá o que for subir a escada.

Continua...

ISBN: 978-65-00-92694-1

Raphael Rodrigo Oficial
Enviado por Raphael Rodrigo Oficial em 09/02/2024
Código do texto: T7995180
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