Eu sei o que te espera - CLTS 26

Mais um dia terminava em Santa Maria, uma cidadezinha praiana esquecida pela civilização.

Marcel recolhia seu barco, de onde tirava o sustento da casa, e lavava suas redes. O dia não havia sido produtivo. Poucos peixes. Teria que se aventurar para mais longe no outro dia.

Estava cansado. Começara cedo. No dia e na vida. Cresceu sem pai. Sua mãe nunca falava sobre ele. Teve que criá-lo e sustentá-los sozinha, com muita dificuldade, porque não era uma boa pescadora. Sorte a deles que Marcel não havia herdado a falta de jeito com os peixes da mãe.

Imaginava como seria se o pai estivesse presente. Com certeza seriam os pescadores mais bem sucedidos da região. Mas não adiantava pensar muito sobre isso.

— Marcel, vem pra casa. A janta tá pronta!

A mãe gritou da porta da cozinha, com o prato de comida na mão. Era uma excelente cozinheira. Fazia milagres com ingredientes escassos.

Entrou, jantou e passou um tempo com a mãe. Sabia que se não desse atenção para ela, ninguém mais daria.

Ela era nova ainda, chegando aos quarenta, e muito bonita. Pele morena, queimada de sol, cabelos compridos e pretos, com alguns fios brancos, olhos castanhos claros com rugas de riso nos cantos e sorriso fácil, mostrando os dentes brancos e meio tortos. Tinha orgulho da mãe, principalmente por ter sido pai e mãe para ele.

Não sabia nada sobre seus avós, a mãe nunca falava deles. Não tinha perguntado sobre o pai antes, mas parecia estar na hora de saber a verdade.

— Mãe, quem é o meu pai?

Não sabia dar voltas até chegar ao assunto.

— Por que quer saber dele?

Não parecia chateada, nem surpresa.

— Acho que está na hora de saber, só isso.

Ela suspirou e começou a contar do começo.

Se conheceram quando eram adolescentes, se apaixonaram perdidamente, os pais eram contra, então fugiram juntos e construíram essa casa na beira da praia bem longe da cidadezinha natal.

Quando ficou grávida achou que nada poderia ser mais perfeito, contou para ele, que pareceu muito feliz, mas saiu para pescar e nunca mais voltou. Fim. Essa era toda a história.

Ficou ligeiramente decepcionado. Esperava uma história mais dramática. Mais emocionante.

— Tem certeza que ele não sofreu um acidente? Se afogou? Teve um infarto? Por que acha que ele simplesmente fugiu?

— Não sei. Nunca achamos nem o barco, nem o corpo. E seria coincidência demais, não é? Bem no dia que soube da gravidez…

O olhar dela, perdido no passado, grudado nas ondas do mar, diziam que ela ainda sofria aquele abandono mesmo depois de dezoito anos.

— Só me promete que nunca vai fazer isso comigo.

Olhou assustado para a mãe. Isso nunca lhe passaria pela cabeça.

— Claro que não. Seremos sempre você e eu!

Precisava passar mais tempo com ela. Dar mais atenção para a mãe, agora que não era mais uma criança. Ela devia se sentir imensamente sozinha.

No outro dia, bem cedo, saiu para pescar, como sempre. O mar estava estranhamente quieto. Não via nenhum peixe há horas. Alguma coisa não estava certa. Ele simplesmente sabia.

Quando notou, estava muito longe de onde costumava pescar. Acabou entrando no mar aberto tentando encontrar os peixes. Estava acostumado a ir até mais longe nas folgas, mas o sol já dava sinais de que estava na hora de se pôr.

O céu e o mar quase se fundindo em um só. Separados apenas pela bola de fogo cor de bronze que tingia de cobre a linha entre o céu e o mar.

E ainda contemplando a linha do horizonte foi que a viu. Uma ilha. Coberta por uma pesada neblina prateada que parecia viva.

Tinha certeza de que não havia nada ali antes. Certeza absoluta. Não tinha nenhuma ilha naquelas bandas, ainda mais uma daquele tamanho.

Era bem grande. Impossível não ter notado antes. Era como se ela houvesse aparecido ali do nada.

Sabia que era melhor não ir até lá, ainda mais nesse horário. Mas como poderia não verificar? Quem daria meia volta e não tentaria descobrir o que estava acontecendo?

Remou até lá, arrastou o barco até a margem das árvores e amarrou-o a uma palmeira. A névoa que viu do mar era vapor. A quentura do dia se dissipando com os primeiros sopros da brisa noturna.

A ilha parecia deserta. Pelo menos a praia estava sem nenhum sinal de habitantes. Mas a floresta densa à sua frente poderia esconder todo tipo de pessoas e criaturas.

Esperou. Não queria entrar na floresta. Mas não havia nada para ver na praia. Esperou um pouco mais. O sol já havia baixado por completo, e o céu estava com aquela coloração opaca, entre o claro e o escuro. Precisava fazer alguma coisa.

“Não devia ter vindo.” Pensou.

Seus instintos gritavam para dar o fora de lá. Mas sua curiosidade ainda viva e aguçada, fazia planos de achar um pedaço de pau e fazer uma tocha com um pano velho que tinha no barco, e entrar na mata.

Parou em frente ao barco sem saber o que fazer, então pensou na mãe. Sozinha. Esperando por ele.

Decidiu voltar. Desamarrou o barco e o arrastou de volta para o mar. Mas não adiantava o quanto remasse, as ondas sempre o traziam de volta para a praia.

Tentou diversas vezes até perceber que estava preso. “Não devia ter vindo!” O desespero cortava sua respiração, o coração acelerado, as mãos frias e suadas.

Não queria desistir de voltar para casa, mas já estava exausto. Voltou o barco para o mesmo lugar e fez a tocha.

Já que estava preso na ilha, queria encontrar e enfrentar logo o que quer que estivesse lá dentro o esperando.

Era muito mais difícil do que imaginava entrar na mata fechada. A umidade quase apagava o fogo da tocha, as plantas atrasavam seus passos, não sabia para onde estava indo e nem tinha certeza se haveria algum lugar para ir.

Podia ser só uma ilha que aparecia do nada sem nenhuma explicação. Podia ser, mas não queria acreditar nisso. Tinha que ter algo mais. Tinha que ter!

Quando estava cansado e desanimado demais para continuar, escolheu uma árvore com galhos grossos e subiu. Fechou os olhos e quando abriu novamente, já estava claro. E um homem adulto, barbudo e cabeludo, olhava para ele com enormes olhos verdes, de uma distância segura.

— Quem é você? — disse, assim que se recuperou do susto.

O estranho só olhava para ele, parecia hipnotizado. Perdido em algum lugar dentro de si mesmo.

— Ei, você aí… está ouvindo? — Bateu palmas, tentando chamar a atenção do homem.

Como se tivesse saído de um transe, balançou a cabeça.

— Você sou eu do passado?

Marcel não sabia o que responder. Até porque podia ser mesmo, como iria saber?

— Não sei… meu nome é Marcel, eu moro em Santa Maria.

O homem pareceu confuso e desapontado.

— Eu também morava em Santa Maria, mas isso já deve fazer centenas de anos. Como está a cidade?

— Está normal, eu acho… como assim centenas de anos? Você parece ter menos de cinquenta…

— Ah, é? — passou a mão pelo rosto — é o que parece, pra mim… que já estou aqui há uma eternidade. Mas, você é igualzinho a mim quando era jovem! Quem são seus pais?

— Minha mãe chama Mariana, e … não sei quem é meu pai. Ele desapareceu antes de eu nascer.

O homem coçou a cabeça, olhou para ele de alto a baixo, começou a arrancar as folhas próximas.

— Mas… isso não é possível! Quantos anos você tem?

— Acabei de fazer dezoito…

— Dezoito anos? Só isso? Não é possível! Não passou tão pouco tempo assim. Tenho certeza!

— O que? Não estou entendendo nada.

Marcel já imaginava que o homem fosse doido de pedra.

— Meu nome é Marcelo, sou o marido da Mariana! Então, devo ser seu pai… Eu não desapareci, fiquei preso aqui. Mas não pode ter se passando só dezoito anos, é impossível!

— Espera, você está dizendo que é o meu pai, que não fugiu e sim ficou preso aqui? Então eu também estou preso e não vou conseguir mais voltar? É isso?

Marcel ficou sem fôlego, o coração acelerado, a boca seca.

— Eu tenho que ir embora! Ela não pode ficar sozinha de vez. Ela não pode! Eu tenho que ir embora!

Pulou da árvore e correu desesperado, tropeçando nas raízes, cipós, e todo tipo de plantas que cresciam na terra preta e úmida da floresta.

De alguma maneira alcançou a praia e achou seu barco. Estava arrastando o barco pela areia quando o homem o alcançou.

— Não!

O grito veio um segundo antes de sentir o golpe.

Quando voltou a si estava rodeado por três homens muito altos, fortes, com trajes antigos, cobertos por tatuagens brilhantes que pareciam letras de algum alfabeto esquecido.

— Você não pode sair. Não adianta tentar. É o seu tempo de expiar a culpa e acalmar os espíritos sedentos por vingança. — Falavam os três juntos, como um só, e a voz que saía era como o barulho do vento.

— O quê? Como assim? Eu não fiz nada para nenhum espírito.

Olhou em volta e viu o homem que dizia ser seu pai ajoelhado mais adiante.

— Pobre menino mortal. Você pode não ter feito nada, mas os seus antepassados fizeram. Os seres humanos destruíram nosso lugar sagrado. Profanaram nossas casas! Com sua ganância e desejo de poder, estão acabando com as matas, florestas e nascentes. Não respeitam a natureza, nem seus semelhantes. São criaturas desprezíveis que mereciam ser aniquiladas.

— E por que justo eu tenho que pagar?

Os três sorriram. E continuaram falando lentamente, como se faz com uma criança.

— Você teve escolha. Podia não ter vindo até a ilha. Mas como não conseguiu se conter, está destinado a ficar aqui até que outro venha e tome seu lugar.

— E você — apontaram para o pai de Marcel — está livre para ir, se quiser.

— Quanto tempo se passou? Desde que vim para cá?

O homem estava obcecado com isso.

— O tempo na ilha não é igual ao do mundo dos homens, mas é como o mundo dos espíritos. Para você se passaram milênios, mas para ele — apontou para Marcel — se passou apenas dezoito anos.

Era tão inacreditável que Marcel não sabia se era real ou se havia batido a cabeça e estava desacordado no barco, delirando no meio do oceano, vagando sem rumo.

— A ilha ficará visível mais dois dias humanos e depois desaparecerá, só reaparecendo no próximo ano humano. Aproveite a estadia, garoto.

Assim como apareceram, desapareceram. Sem nenhum aviso prévio.

— Isso não pode estar acontecendo… eu prometi pra ela que não iria embora! O que eu faço agora?

Marcel continuava ajoelhado sem saber o que faria a seguir. Se considerava adulto demais para chorar, mas não ligou quando grossas lágrimas escorreram por seu rosto. Mas logo uma ideia iluminou sua fisionomia desamparada.

— Ei, você aí… como é mesmo o seu nome? Você precisa voltar! Avise a ela o que aconteceu, que eu não a abandonei também.

— Eu não abandonei a sua mãe! Não está vendo? Não foi culpa minha!

— Melhor ainda! Vocês podem continuar de onde pararam.

Marcelo ficou quieto uma eternidade. Olhando nas profundezas dos olhos do filho.

— Não posso…

— Mas, por que não? Os espíritos te liberaram pra ir embora se você quisesse! Você tem que ir!

— Você não entende… não posso te deixar sozinho aqui. Eu sei o que te espera.

A intensidade da voz e o terror nos olhos de Marcelo calaram todos os protestos prestes a saírem da boca aberta de Marcel. Queria muito que a mãe não se sentisse abandonada de novo, mas… estava morrendo de medo de ficar sozinho na ilha para sempre.

Os dias passavam lentamente na ilha e enquanto o sol reinava não era tão ruim, pai e filho faziam uma fogueira, caçavam pequenos animais, colhiam frutas, pescavam na praia. Tinham longas conversas e se conheciam melhor.

Mas quando anoitecia, a ilha era invadida por todos os tipos de espíritos, os mais vis, tenebrosos e vingativos. Faziam aqueles três que vieram dar as “boas vindas” a Marcel parecerem anjos.

E embora os espíritos não pudessem de fato tocar neles, podiam e usavam todas as formas psicológicas de tortura.

Descobriam seus medos mais profundos e suas dúvidas mais cruéis e usavam contra eles das formas mais baixas e aviltantes.

Legiões de morcegos voavam sobre a cabeça de Marcel, que aterrorizado corria sem rumo tentando se livrar deles.

— Eles não são reais, não podem te fazer mal nenhum. — Marcelo tentava acalmar o filho.

Mas quando as cobras apareciam, o tremor em seu corpo denunciava que ele também não conseguia se controlar como queria, mesmo depois de tanto tempo.

Mas depois da noite, sempre vinha o nascer do sol, espantando as criaturas e trazendo enfim alívio e segurança.

— Sabe de uma coisa? As noites não estão tão ruins quanto costumavam ser…

Marcelo comentou enquanto assava um roedor na fogueira.

— Sério? Então era pior do que isso? — Marcel respondeu assombrado.

— Muito pior… eles costumavam me dizer que meu filho cresceria sem o pai, que eu nunca iria vê-lo, que ele morreria sem saber que eu não o havia abandonado…. Agora isso não faz mais sentido. Não me sinto bem assim há séculos.

Pai e filho sorriram um para o outro. Os anos de ausência pareciam estar tão longe no passado que não incomodava mais nenhum dos dois.

Os dias eram felizes, mas as noites sempre chegavam. E com elas as torturas começavam.

— Ela está sozinha! Vocês a abandonaram!

— Ela morrerá de fome e solidão!

— Ela nunca vai se recuperar do abandono de vocês dois.

Risadas escarnecedoras zombavam deles.

— Marcel! Por que você foi embora, meu filho?

— Marcel, onde você está?

A voz era idêntica a da mãe. Marcel tapava os ouvidos e repetia para si que não era real. Mas não funcionava porque sabia que lá em Santa Maria sua mãe devia estar se perguntando exatamente isso.

— Marcel!

Ouvidos tapados, olhos fechados, deitado em posição fetal.

— Marcel!!!

Marcelo sacode o filho.

— O grito está vindo da praia. Escute.

Os dois ouviram atentos, tentando decifrar o que vinha dos espíritos e o que vinha da praia.

— Marcel! Onde você está??

— É ela! Sua mãe está realmente aqui!

Marcel saiu correndo em busca do som. Que, diferente da voz dos espíritos, parecia vivo!

Assim que alcançou a praia viu Mariana com uma tocha acesa, nos arredores do barco abandonado de Marcel.

— Mãe! Estou aqui!

Correu em direção a ela e se jogou em seus braços apertando-a com todas as suas forças!

— Eu não te abandonei! Juro! Fiquei preso nesta ilha maldita!

— Eu sabia que nunca ia me deixar, por isso, quando não voltou pra casa ontem, emprestei um barco para te procurar!

— Ontem? Ah… o tempo aqui é diferente, já tinha esquecido disso.

Marcelo assistia a cena de longe, maravilhado!

— Mãe, você não vai acreditar no que está acontecendo! Essa ilha é amaldiçoada e prende todos que chegam aqui até que outra pessoa tome seu lugar. Pai, vem pra perto de nós!

Mariana olhou para Marcelo mas demorou alguns segundos para reconhecer o marido, tão diferente de como se lembrava.

Marcelo quis abraçá-la, mas não sabia se seria bem recebido. Enquanto pensava no que falar, Mariana correu até ele e o envolveu em um abraço.

— Eu também não te abandonei! Nunca faria isso!

— Não tem mais importância … vamos embora daqui.

O sorriso sumiu do rosto de pai e filho.

— Não podemos. Não os três…

Antes que pudessem explicar, os três espíritos que receberam Marcel apareceram proclamando a sentença. Mariana teria que ficar até que outro aparecesse, os outros dois poderiam partir, se quisessem.

Quando os espíritos desapareceram, Marcelo tomou a iniciativa e falou:

— Ficaremos os três, então. Bem… Marcel poderá partir, quando quiser. Não precisa ficar aqui para sempre. Pode voltar, formar uma família…

— Sim, meu filho. Você devia voltar… algum dia.

Marcel concordou, cabisbaixo.

— Algum dia. Mas não agora. Vou passar um bom tempo com minha família.

A noite terminou e o sol se levantou no horizonte, e os três conversaram sobre o tempo perdido e também esclareceram tudo sobre a ilha e seus visitantes noturnos.

Mas eles não tinham mais medo. Estavam juntos. Não havia mais nada que temessem. Os espíritos não tinham mais nenhum poder sobre eles.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 08/02/2024
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