O POÇO

Às vezes eu confundo sonho com a realidade. Tenho andado um tanto letárgica (e isso me assusta), mas confesso que não comentei ainda com meu médico sobre o sonho do poço.

Nunca fui uma mulher de muitos sonhos subjetivos, ou ainda como eu gostaria de me referir a esse sonho em específico, um “metasonho”. A maioria dos meus pesadelos se baseiam em cenas da minha realidade, como no sonho onde achei um corpo em perfeito estado de putrefação, ainda com uma Heineken na mão e uma bituca de cigarro na boca, caído no banheiro do posto onde trabalho. Ainda me lembro vividamente da noite seguinte, onde, estando realmente a trabalhar na vida real, entrei devagar no banheiro do posto, com medo de realmente achar um corpo.

Enfim, não tinha nenhum corpo na conveniência 24 horas do posto de gasolina onde sou garçonete, mas o terrível combinado de sonhos angustiantes continuara. Corpos não fazem parte da minha realidade, mas sobre pesadelos tendo o posto de gasolina como palco.. Droga, eu já estou acostumada.

Quando tive o sonho do poço, eu estava de folga. Era realmente a hora de eu dormir PELA NOITE, já que eu sou do turno noturno e raramente me dou esses caprichos. Eu havia acabado de apagar as luzes de toda a casa, e me deitara na cama, fumando meu último cigarro e esperando o abençoado Alprazolam fazer seu efeito. Eu ainda lembro que olhei pela última vez pela janela, onde as estrelas e as luzes das casas vizinhas iluminavam meu quintal, passando a mão por um dos meus próprios seios antes de adormecer.

Eu realmente tenho um poço no quintal, não existindo como no sonho, mas sendo sim um poço artesanal inutilizado qual a antiga dona da casa não explicara muito a origem (eu também, na época, estava pouco me lixando para esse poço). Eu nunca pensei nele daquela forma, e agora que estou sendo perseguida, tudo que eu vivi nesta casa de subúrbio está em cheque.

Naquela fatídica noite, eu mal fechara os olhos, já senti-os abertos, vidrados no quintal. Já não era mais alta noite. Na realidade, o céu estava cinza. Não como se grossas nuvens estivessem ameaçando chuva, mas algo ainda mais aterrador, como se o próprio sol estivesse morrendo, e a atmosfera tivesse se diluído em um cinza opaco. Fora horrendo o susto que eu levara com tamanha transformação do ambiente.

Me levantei da cama, em sobressalto, e rapidamente me vesti. Eu ainda não percebi que estava adormecida, mas uma leve dor atrás dos olhos e um peso anormal em minha consciência poderiam ter denunciado a oscilação na realidade.

Voltei para a cama e olhei bem pela janela. O poço estava lá, impassível. Lembrei-me da única vez em que ele me dera trabalho. Na eṕoca em que ele ficou exalando mau cheiro e a antiga dona pouco se importou com isso, tive de rachar com meu ex namorado uma grande pedra que serviria de tampa para o poço.

Ele está tampado até hoje.

Mas no sonho não estava.

Ou pelo menos não da forma que eu esperava.

A tampa estava lá, mas com um perfeito e visível buraco no meio, um corte um tanto oval e de onde eu sentia exalar um cheiro nauseabundo.

Eu tive o estranho instinto de ir logo ver o que havia de errado. Não pensei tanto na hora do medo que poderia sentir ou se aquilo era um pesadelo ou o fim do mundo. Apenas vesti os chinelos que estavam jogados a um canto e abri a porta que dava para o quintal.

Fui imediatamente abraçada por um vento gélido. No varal, meus lençóis brancos balançavam, junto com as folhas secas da grande mangueira vizinha, que voavam até onde a vista não alcançava. Nessa hora senti um certo receio, mas continuei a caminhar em direção ao poço.

Ao chegar nele, percebi que o buraco era bem menor do que eu pensava. Talvez tenha sido uma ilusão de ótica ele parecer tão grande da janela, mas agora eu sabia que ele levava cerca de trinta centímetros de uma extremidade a outra.

O furo também não era exatamente oval, talvez fosse mais rebuscado nas pontas, como um olho de hórus. Ele era perfeitamente cortado da pedra, e não uma fratura, como eu pensei… seja o que for, já devia estar ali há muito tempo.

Ia dar meia volta e ir para a casa dormir, mas um estalo e um grito vindo do interior do poço me fez parar, estatelada, no quintal.

Um vendaval quase me carregara, forte como nunca, esticando o grito que saíra do poço e transformando-o num uivo de dor, me fazendo estremecer da cabeça aos pés.

Fora difícil chegar a decisão de olhar pelo buraco na tampa do poço. Eu não estava com nenhuma lanterna, mas ao menos gritaria para ecoar lá dentro e ver quem estava preso naquele maldito poço. Antes, eu tinha pensado em fugir para as colinas ou chamar um padre, mas… Droga, eu jurava estar na vida real!

O cheiro era o menor dos males, e lá estava eu, engatinhando em cima da tampa do poço, em direção ao centro. Quando cheguei no buraco, não pensei duas vezes: olhei para o fundo do poço.

E lá estava,

Um olho gigante a me observar. Um jato penetrante de luz vindo de uma córnea sanguinolenta e uma íris verde, um olho cobrindo todo aquele buraco e olhando de volta para mim.

“Quando você olha muito para o abismo, o abismo olha de volta para você” - Pensei exatamente nesta frase ao ver o olho no buraco do poço. Mas, sufocando um grito de horror, corri para a minha casa. A visão do imenso olho verde dentro do poço, aquele olhar penetrante de outro mundo, aquela aberração invadiu o meu ser.

Pensei em pedir ajuda aos meus vizinhos, e então saí pela rua, desesperada. Gritei em pleno pulmões por ajuda, bati em todas as portas daquela rua esquálida, supliquei por deus e o mundo, até me dar conta que estava sozinha.

Pedaços de papel se esvoaçavam pela rua deserta, e não havia nenhum som ou ruído em toda a cidade, exceto o vento uivando nas árvores e cantos sombrios da minha mente.

Encolhi-me no chão, coloquei a cabeça entre as coxas e comecei a soltar lágrimas incompreensíveis. A dor de cabeça se transformou num torpor anestésico, e acabei, mais uma vez, caindo no sono, quando na verdade acordara.

Estava no meu quarto, era alta noite e eu olhava para o poço. Com um “puta merda”, me recusei a acreditar que aquilo fora um pesadelo. Eu olhei novamente para a tampa, e lá não havia nenhum furo.

Apesar disso, passei o resto da noite em claro, e no dia seguinte me ocupei com livros e revistas que compunham uma de minhas estantes. Quando deu a hora de ir para o posto, eu já estava mais tranquila. Ou pensava estar.

Os “metasonhos” pararam. Apesar disso, me sinto cada vez mais seguida. A tranquilidade virou o sentimento de ter sempre um olho me observando, um ser de outro mundo que me persegue e julga cada um dos meus passos.

Já verifiquei por câmeras escondidas no banheiro da conveniência.

Já voltei para casa com medo de um homem esquisito perto da autoestrada, impassível, e dei a desculpa de que estava doente.

Agora, durmo com a janela do meu quarto coberta. O grande olho assim não poderá me observar.

Decidindo contar isso para o psiquiatra, aqui estou em frente a porta do consultório, onde a enfermeira disse que serei a primeira a ser chamada.

Mesmo sabendo que o médico está dentro da sala, estou parada em frente a porta, lendo o quadro de avisos do posto de saúde.

Foi só quando escutei meu nome que sai do torpor. Olhei fixamente para frente e, vendo uma pequena janela na porta que eu não reparei antes, segui adiante. Antes de entrar na sala, segurei uma lágrima.

Não sei o que me espera na sala enquanto sei que aquela janela tem o formato de um olho.

Brenno Lima
Enviado por Brenno Lima em 06/02/2024
Código do texto: T7993631
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