Samhain
Forças ocultas pareciam ter conjurado uma trama sórdida, ensaiando por baralhar dois planos paralelamente ambíguos. O ritual começa com uma convenção social, camisa xadrez, calça remendada com panos de cores sortidas, cinto com fivela e a bota que proporciona a pegada country. O último detalhe: o velho lápis preto, para desenhar um bigode e cavanhaque proporcional ao seu rosto.
Assim que saísse por aquela porta, o forrozeiro arretado percorreria o trajeto que o levaria a Rei do Milho, tomando a forma de uma sumidade, que brindaria a própria sorte com seus súditos e sentaria no trono para beijar a Rainha, a garota mais bonita do vilarejo. Ao bater a porta de casa e avançar para a noite mais vultosa de sua vida, acabou aturdido, com seus olhos demorando a se habituar à penumbra, sem reconhecer toda a luminescência rarefeita.
Como esperado, uma profusão de fogueiras adornavam o trajeto a ser percorrido, mas o cenário parecia um tanto dessemelhante. A via era povoada por figuras estranhas. Não havia carros, motos ou bicicletas, música alta, apenas elementos controversos e até aterradores. Os tradicionais apetrechos juninos davam lugar a insólitas indumentárias, confeccionadas com pele e cabeça de animais.
Imberbe na amplidão incógnita, a estranha cena refletida diante de seus olhos não era o bastante para fazê-lo desistir de seu trono. Vestido no seu medo, embarcou no caminho de pedras, orlado por fogueiras e lanternas, propiciando o resplendor que alumbrava a passagem dos vagantes.
Observava as labaredas formadas pelas chamas sendo arrebatadas pelo sopro da ventania. Também fitava o milharal, que se estendia além do alcance ocular, e a lua, o elo entre os universos singulares, que naquela excêntrica noite resolveu se apresentar como uma circunferência colossal, alaranjada, escalando o horizonte para lumiar todas as ações.
Os andarilhos, gradativamente, abandonavam o caminho de pedras e se embrenhavam a esquerda na plantação. Antes, empunhavam e acendiam suas lanternas, utensílio essencial para se protegerem da escuridão, afugentando espectros que pudessem cruzar seus caminhos.
O postulante a Rei do Milho aproximou-se de um pequeno bando e, sem se deixar notar, acompanhava suas pegadas, enveredando por aquelas fileiras regulares, cheias de sombras. A luz advinda das luminárias guiava sua andança até a clareira que converge ao milharal.
Ladeados pela plantação, a maioria dos andantes projetava-se empertigadamente até a clareira, enquanto outros pareciam fustigados pelo trajeto mordaz. Outros seguiam trépidos pelas extensões das fileiras, como se percorressem o caminho da morte, ou até carregando nos ombros a insofismável condição de profanadores do milho.
A cada trote, espanto e estupefacção, a oportunidade de confrontar os piores medos. O pressentimento de cada passo estar sendo observado pelo mal, sorrateiro nas sombras, vigiando, afinal, estavam desatadas as trancas dos portões que separam os planos invulgares. A plantação emanava o cheiro do milho amalgamado com o odor dos fertilizantes orgânicos. E se espalhava, invadindo narinas, embevecendo a peregrinação, quase o cheiro do finamento.
Também era possível vislumbrar um som quase imperceptível, sequioso, sussurrante do silêncio. Em alguns ensejos, a força do vento ensandecido era cortada pelos pés de milho, formado uma entoação advinda das almas errantes incubadas, ecoando a liberdade em honra aos poderes das trevas.
Já não podia diferenciar se presenciava o milharal farfalhando ou sua serenidade sendo dizimada pelo êxtase assombroso... desconhecido. A incursão finalmente chegou ao fim quando, escaldados, os vagantes puderam desembocar na clareira em pequenos grupos, onde eram aguardados por uma estranha figura, que apenas se atinha a fitá-los.
Nada daquilo está acontecendo? Era apenas um pesadelo bobo? Com o mistério formado, tentava manter-se incrédulo em meio a possibilidade de estar diante de uma liturgia satânica com sua essência puramente voltada para o mal. A saída era idear uma mostra de encenação surrealista e todos acabariam resgatados incólumes diante do evento.
Numa espécie de púlpito improvisado, a estranha figura sacerdotal trajava um indumento intimidante. Uma túnica negra, seu aparente artigo cerimonial, com marcas de sangue estancado. Por cima, uma toga traçava seu corpo débil e a chapeleira que cobria a cabeça fazia com que apenas sombras pudessem ser visualizadas por todos que tentavam observar as feições de seu rosto.
Com fala cadenciada, passou a fazer a pregação sem sequer se apresentar ou cumprimentar a plateia. Suas palavras eram carregadas de ódio, rancor. Tinham poder de arrancar suspiros, tocar o íntimo, despertar o sentimento de vingança, praticando o desamor.
- Eles pagarão por seus pecados com o sangue que lhes alimenta a vida! Reparação! Somente pelo sangue do cordeiro nos salvaremos. Profanadores, asseclas, traidores. O milho estava morrendo por excesso de pecado. A fartura só retornará com sacrifícios nas fileiras.
- Esse profano é insano – comentou um andante, quase como um cochicho.
Quando afinal irá começar o show do Wesley Safadão? Indagava em seu íntimo o Rei do Milho, mesmo diante daquela figura pagã, capaz de conduzir seu pecaminoso rebanho em sacrifício.
Brumas passaram a ladear toda a clareira e lentamente, um a um, os pecadores se lançavam à plantação, assistindo o esvanecimento da vida, sendo tragados pela névoa e luz a emergir do milharal. Antes que pudessem desbravar horizontes inauditos, “aquele que caminha por detrás das fileiras”, protetor da plantação, em deleite por expor o mundo à noite eterna, sussurrava um murmúrio encantador.