De pé
De pé
Escrevo isso no meu pequeno quarto, num sanatório distante de tudo, sob efeito de remédios cujo nome não sei pronunciar. Tive de ser internado por tempo indeterminado após ver coisas que minha mente não suportou – e não se esqueceu. Mil vezes melhor seria não ter compreendido o que diziam os meus olhos, ou sofrer de uma amnésia a curto prazo que, com sorte, me permitiria seguir com a vida cotidiana. Não creio que eu irei conseguir viver tranquilamente quando sair daqui. Se eu fosse mais jovem, talvez minha descoberta teria um peso mais leve, mas eu já sou velho demais para poder viver com isso.
Tudo começou na viagem, maldita viagem.
Desde criança, eu sempre tive o desejo de conhecer o mar. Não sei se é um desejo autêntico ou se foi outra influência de meus pais, mas a verdade é que era uma viagem que eu buscava há muito tempo. E muito se passou, cresci, consegui um trabalho, uma casinha agradável e arborizada de aluguel, e passei a morar sozinho - ou melhor, com meus dois cães, Marcos e
José. Marcos era um velho amigo, leal e desconfiado, única herança que meu querido avô me deixou. José era filhote quando foi achado na rua, e minha família decidiu adotá-lo, era carinhoso e energético.
Depois de alguns meses de economia, eu juntei o suficiente de dinheiro para realizar meu sonho de infância: Uma viagem de duas semanas nas férias. Contudo, deparei-me com circunstâncias nas quais não havia pensado. Eu não poderia levar meus companheiros de teto comigo, e também não podia deixá-los a sós. A solução foi pedir ajuda a um colega de confiança da firma, que iria tomar conta dos garotos enquanto eu estivesse fora: cuidar da alimentação, limpeza, e os passeios da semana. Paguei metade adiantado. Parecia tudo encaminhado.
Aos poucos, a data da viagem se aproximava. Quando chegou o dia, meu colega veio a minha casa e revisamos o acordo. Despedi-me de meus companheiros, apanhei as malas e peguei um carro para o aeroporto. Estava animado, além da conquista que seria, a mudança de ambiente poderia me fazer bem, uma vez que minha casa andava a me estressar. Creio que seja a única desvantagem do home office, trabalhando no mesmo local de descanso, é como se meu ambiente mais sagrado fosse profanado.
De qualquer forma, peguei o avião, e cheguei ao destino em poucas horas. A viagem correu muito bem durante a primeira semana, sem dúvidas fez bem ao meu humor. As ondas, a areia, e a luz do sol foram revigorantes, e passar um tempo sozinho com meus pensamentos foi bom para que eu colocasse as coisas no lugar. Numa ocasião, pude ver o sol nascer do mar. Considero essa uma das coisas mais belas que já vi. Infelizmente, boas coisas não duram. No começo da segunda semana recebi más notícias de meu colega, ele relatou que os cães estavam inquietos, e se recusavam a ir passear. Isso me incomodou na época, porém não era motivo para cancelar a viagem. Sendo sincero, os cachorros pareciam estranhos desde que mudei de casa, mas creio que é normal, estavam em processo de adaptação a um novo ambiente e poderiam ter saudades dos meus pais, afinal. Eu mesmo estava assim. Uma mudança de lar é difícil para qualquer um.
Contudo, no dia seguinte, uma pior notícia me aguardava. Recebi uma ligação de meu pai, pela urgência em sua voz já era perceptível que havia algo errado. Com uma voz chorosa que não me era familiar, ele informou que a mãe sofrera um derrame. A informação entrou como um tiro em meu peito, mas tentei manter a calma e pedi que me explicasse detalhadamente.
Decidi que não havia escolha além de retornar. Precisava dar suporte a meus pais, e, de qualquer forma, eu não conseguiria descansar sabendo da situação. Por sorte – e gastando um pouco a mais, consegui um voo de volta no mesmo dia, e encaminhei-me diretamente para a antiga casa. Chegando lá, conversei mais com meu pai, como já estava ao entardecer, decidimos visitar minha mãe no hospital, no dia seguinte. Ela havia sido internada até que se estabilizasse, mas era permitido apenas um acompanhante por vez, e meu tio já estava lá. Decidimos nos revezar a cada turno, para ninguém se sobrecarregar.
Sentei a mesa com meu pai, e tomamos um café silencioso. Fazia certo tempo que eu não os visitava, e a atmosfera pesava sobre meus ombros. Tentei buscar por um assunto, mas fracassei. O único som na sala era o tique interminável do velho relógio, que preenchia o cômodo. Suas batidas me lembravam um metrônomo, e envelhecíamos no seu ritmo.
Depois de ficar alguns momentos mais velho, eu decidi me levantar. Arrumei uma desculpa qualquer e sai um pouco para fora. A verdade é que eu e meu pai nunca tivemos uma boa comunicação. É como se não falássemos o mesmo idioma, e, devido ao derrame, perdemos nossa intérprete. Decidi que ia ver meus amigos um pouco. Havia-me esquecido por completo que eles também precisavam de minha atenção… Uma vez que já pagaria meu colega por cuidar dos pets, achei que seria melhor dormir na companhia do pai, no meu antigo quarto, mas decidi que passar um tempo com Marcos e José não faria mal. Eu também estava inquieto.
Liguei para meu pai, e avisei que iria passar em casa para ver os cachorros e pegar algumas coisas. Ele se limitou a aceitar e se despediu. Minha nova casa não era muito longe, então fui andando até ela. O céu nessa hora já exibia uma coloração carmesim, deviam ser por volta das cinco.
Caminhei lentamente por quase quinze minutos, e quase chegando me deparei com meu colega de saída. Comprimentei-o e ele se assustou, e assim percebi que não o avisei da minha chegada antecipada. Expliquei então minha situação, e o pedi que cuidasse dos cães por mais uma semana, devido a saúde de minha mãe. Ele concordou prontamente, e desejou a ela melhoras.
Despedimo-nos, e ele seguiu seu rumo. Andei mais um pouco até a casa, procurando as chaves em meus bolsos. Já estava para abrir mecanicamente a porta, quando ouvi um estranho barulho. Como eu estava desatento me assustei com o som inesperado, e tratei de ouvir cuidadosamente. O som se repetiu mais duas vezes, na última consegui detectar com mais precisão. Era o ruído da maçaneta de alguma das portas girando.
A identificação do barulho me pôs em terror, fiquei sem saber como reagir. A primeira ideia foi a de um assaltante, mas o cuidador dos cães acabara de sair, como seria possível? Estaria se escondendo lá? Ou eram cúmplices? Era esse o motivo da inquietação dos meus amigos? Eu estava confuso e com medo, e meu primeiro impulso foi de querer entrar violentamente, mas consegui me segurar quando ouvi o rangido de uma porta se abrindo.
Pensando mais claramente, os cachorros iriam latir, alertando um inimigo, então poderia ser um conhecido lá dentro, ou pior, eles poderiam estar em perigo. Nessa pluralidade de teorias tomei provavelmente a decisão mais racional: liguei para a emergência e pedi ajuda, chegariam em até meia hora. Tempo demais. Temi pela vida de Marcos e José, mas também pela minha. Entrar era arriscado demais, poderia estar armado.
Olhei em volta e peguei um par de pedras, decidi sondar a área. O som veio da porta do quarto, a única que rangia. Eu não sabia em qual dos sentidos foi aberta, mas era minha melhor aposta. Aproveitei a grama alta e os arbustos que ficavam à vista da janela e me esgueirei da forma mais cuidadosa que pude.
Mergulhado no verde, tentei escutar o que se passava. Gemidos baixos e o som de uma gaveta sendo aberta lentamente. E depois um longo silêncio.
O sol de sangue iluminava a janela. Meu coração estava a mil. Fiquei com medo de ter sido visto, mas em seguida mais gavetas foram abertas. Passos muito leves. Alguém estava sendo cuidadoso. A ansiedade ia me matar. Decidi me arriscar e espiar.
Devagar, tirei metade do rosto dos arbustos e tentei ver algo. Não tive sucesso, não consegui ver nada desse ângulo. Subi mais um pouco a face, com a respiração pesada. Aos poucos uma imagem se formava, e o terror tomava conta dos meus olhos. Entrei em choque e caí sentado, com as mãos trêmulas. Hiperventilei. Senti a luz escapando do horizonte e a cabeça pesando. Um som crescente de sirenes me perturbou ainda mais. Deitei-me no mato. Tudo parecia como um sonho macabro e muito vívido. Ouvi as gavetas sendo fechadas apressadamente, e a porta do quarto rangeu mais uma vez. Eu já havia perdido a noção da realidade.
Pela janela do meu quarto, eu havia visto meus antigos álbuns familiares, sobre a bancada de trabalho. Estavam abertos em minhas fotos com meu vô. José e Marcos folheavam as páginas. De pé.