Mares Bravios - CLTS 26
Prezado leitor,
Se você estiver lendo as linhas destas folhas brancas ainda perto da água salgada, onde elas originalmente flutuavam dentro de uma garrafa de bebida cara, sugiro com veemência que conduza sua embarcação o mais rápido possível para o porto mais próximo.
Afaste-se do litoral o quanto antes, porque desconfio que você possa ser alcançado por algo que irá atestar a veracidade da minha história de uma forma muito mais contundente que minhas pobres palavras de pirata. Não vai querer isso, acredite em mim.
Há maneiras mais seguras de confirmar meu relato do que ficar no caminho daquela abominação aquática. Para começar, procure se informar sobre o destino do resort Mares Bravios, inaugurado há dois anos na Ilha Maior do arquipélago Saldanha, no meio do Oceano Atlântico. Sou testemunha fidedigna do que aconteceu. E não era para menos. Afinal, passei semanas observando e estudando a ilha antes do fatídico dia.
Em constante movimento igual a um tubarão atrás da presa, eu mantinha Carcará, nosso navio, a uma distância grande o suficiente para que eles não se incomodassem com nossa presença. Embora os restaurantes com seus pratos sofisticados de frutos do mar, o hotel luxuoso e as piscinas límpidas com tobogãs fossem muito atraentes, não eram para pessoas como nós, e somente uma pequena comissão de nosso pessoal se infiltrou entre os granfinos.
Não foi para tirar férias, posso garantir. Estavam em uma missão cujo sucesso foi anunciado na forma de uma coluna escura de fumaça elevando-se do vulcão adormecido. Eram as nuvens que anunciavam uma tempestade oriunda da terra, não do céu.
A ordem de evacuação foi dada; hóspedes e funcionários rapidamente se dirigiram aos navios cruzeiros atracados e partiram para alto mar, deixando a ilha livre para outra classe de pessoas se divertir.
Depois que nos aproximamos da costa e atracamos, meus homens saíram prudentemente armados para dar início à pilhagem do resort, como bons piratas que eram. Eu também pisei em terra firme, mas meu interesse ia além de esvaziar adegas, abrir gavetas e vasculhar paredes em busca de cofres e quadros valiosos.
Poucos meses antes, invadindo o sistema da empresa proprietária e decifrando arquivos fortemente criptografados, nossos hackers haviam feito uma notável descoberta: abaixo de toda aquela estrutura alimentada por energia geotérmica, havia um tesouro escondido que era periodicamente visitado por figurões da alta sociedade que se hospedavam na ilha a pretexto de tirar férias com a família.
Não conseguimos desvendar a natureza exata do que era guardado a sete chaves, mas nossos olhos logo brilharam com uma curiosidade que só não era maior que nossa ambição.
No dia determinado, entramos no sistema para dar sinais de alerta sobre uma erupção iminente e detonamos bombas em lugares estratégicos do subsolo e na cratera vulcânica para tornar a mensagem mais verossímil. Tudo devidamente calculado para gerar um pânico que tirasse todos da ilha com uma urgência que não os permitisse levar muita coisa.
Com o caminho livre, liderei uma equipe formada pelos meus melhores e mais confiáveis homens através do prédio principal, onde, de acordo com as informações que roubamos, estaria a entrada para um andar subterrâneo especial.
Após uma parede falsa derrubada e uma fechadura eletrônica com biometria burlada, encontramos a escadaria que nos levaria direto para o coração secreto de Mares Bravios.
Tentando controlar a ansiedade, descemos os degraus atentos a qualquer movimento suspeito. Ao percebermos que o lugar estava vazio, nossa atenção se voltou para os padrões ondulados das paredes e para os nichos habitados por estátuas deterioradas, provavelmente resgatadas do fundo dos oceanos onde haviam repousado por séculos, talvez milênios.
Para contrastar com a antiguidade das esculturas, havia pinturas mais recentes que fomos observando à medida em que caminhávamos. As imagens retratavam pessoas com roupas de épocas diferentes em uma espécie de cerimônia à beira d’água.
Ao invés de ficarmos interpretando obras de arte, demos prioridade ao que estava no fim do corredor pavimentado com uma cerâmica da cor da espuma do mar.
Esperávamos nos deparar com um cofre ou um baú, mas só o que nos aguardava era uma barreira de um azul translúcido marcada por palavras enigmáticas inscritas diretamente no vidro perto da borda superior.
O imenso tapete azul estampado com padrões marinhos que se estendia aos pés da barreira, ideal para pessoas se prostrarem sobre ele, igual ao que era feito nas pinturas, mostrava que aquele não era um observatório subaquático comum.
Tratava-se de algum tipo de culto exotérico, mas o que reverenciavam exatamente?
As inscrições faziam referência ao início de uma “era de aquário”, cujas ondas iriam se propagar pelos oceanos a partir daquele ponto. No entanto, nada indicava maiores detalhes.
Aproximei-me do vidro à procura de algum ídolo oculto sob as águas enquanto meus companheiros verificavam as entradas à direita e à esquerda. Elas talvez levassem a outros pontos de observação ou postos mais técnicos, como manutenção e alimentação.
Pensar sobre o que era criado ali e o que aquele bando de ricos entediados oferecia como alimento me fez ter calafrios, mas não deixei que isso me impedisse de quase encostar minha cara no vidro na tentativa de enxergar o máximo possível.
Um colega ao meu lado – que tinha estudado detalhadamente a geografia do arquipélago para nosso assalto – aludiu ao fato de que o tanque provavelmente fazia ligação com uma galeria de cavernas submersas, ou teria conexão com o mar através de dutos, de modo que os animais que viviam ali dificilmente estariam à vista no momento.
Era uma hipótese parcialmente correta, considerando que pude ter o último vislumbre de algo ao fundo. Não sabia dizer se estava vendo o trecho sinuoso de uma grande serpente ou o pedaço de um tentáculo descomunal; só o que eu conseguia assimilar daquela confusão quimérica era que algo vivo e medonho estava indo embora e que devíamos seguir o exemplo.
Todo o lugar começou a tremer, causando uma rachadura no vidro. Gritamos desesperadamente pelos outros que estavam nos outros recintos, mas o instinto de sobrevivência acabou falando mais alto.
Sem esperar por ninguém, nós que estávamos sobre o tapete simplesmente demos meia-volta e saímos em disparada enquanto a vidraça ruia às nossas costas e uma torrente de água arrastava quadros, esculturas e tudo o que encontrasse pela frente.
Fomos atingidos e levados com violência até os pés da escadaria. Emergimos do caos e subimos às apalpadelas, deixando para trás o estranho santuário que afundava tal qual a antiga cidade de Atlântida.
No térreo, não nos tranquilizamos com o arrefecimento dos tremores e nos apressamos em ir para fora em busca de nossos colegas. Encontrando-nos com eles, descobrimos que as detonações que tínhamos usado para simular mais convincentemente uma erupção vulcânica haviam provocado efeitos colaterais mais graves do que prevíamos.
Fluidos superaquecidos começaram a vazar dos bolsões de magma atingidos, iniciando uma reação em cadeia e comprometendo toda a ilha. A energia elétrica fornecida pelos geradores geotérmicos tinha acabado e a lava aflorava em diversos lugares. Eram apenas as primeiras más notícias.
Corremos para o Carcará e o avistamos afastado do porto e inclinado. A princípio, pensamos que traidores estavam nos abandonando e levando consigo os espólios do resort, mas percebemos, com horror, que os marujos estavam em plena batalha com um inimigo feroz do qual tivemos apenas relances de sua aparência diabólica através das ondas.
Tive um arrepio fulminante ao ver aquilo. O que eu tinha avistado no observatório subaquático era muito maior do que imaginava. Era grande e poderoso o suficiente para segurar um navio inteiro e puxá-lo para as profundezas do oceano.
Não ficamos para descobrir se o monstro estava satisfeito com o naufrágio ou se estava disposto a se arrastar pela praia em nosso encalço. Estando mortos todos aqueles que estavam a bordo, não havia ninguém para salvar além de nós mesmos.
Fugimos e nos organizamos no centro da ilha para discutirmos nossas chances e meios de ação. Como fator positivo, tínhamos suprimentos e uma infraestrutura que nos poderia ser útil, pelo menos enquanto a instabilidade sísmica e os focos de incêndio provocados pela lava não pusessem tudo a perder.
Como lado negativo, fora a terra rachando e fumegando, havia ao nosso redor uma trincheira de águas turbulentas habitada por uma criatura que não deixava passar nem uma canoa – mas uma simples garrafa não deve ser digna de sua atenção.
Sem energia e com os aparelhos via satélite que levávamos conosco sem funcionar, o que me restou foi escrever e sugerir que os outros fizessem o mesmo para evitar a loucura. As brigas entre nós começam a ficar frequentes, e eu já não sei que argumentos usar para apaziguar as discussões e tranquilizar os rapazes.
Cheguei a pensar que, se as pessoas do resort cultuavam aquela fera, talvez pudessem de alguma forma controlá-la, ou, pelo menos, comunicar-se com ela.
Procurei muito por algo que nos ajudasse nesse sentido, mas nada encontrei. Também passou pela minha cabeça a possibilidade de elas regressarem à ilha, o que não é muito animador, para ser sincero, uma vez que é mais provável que queiram prestar contas das nossas ações do que nos salvar.
Não espero misericórdia nem nobreza de caráter dessa gente. Por isso mesmo minha preocupação quanto à origem do monstro marinho e quanto ao objetivo desse culto bizarro. Que cargas d’água significa essa era de aquário?
Assim, reitero meu apelo a quem estiver em posse destas páginas: reúna informações sobre o arquipélago Saldanha e sobre o resort Mares Bravios, dirigindo-se a autoridades de confiança para alertá-las sobre os perigos que rondam nossos oceanos e o mundo.
Agora, se você for um desses adoradores de Leviatã, Kraken, ou seja lá qual for o nome da besta de escamas, quero mais é que vá para o caralho que o parta.
Com as devidas considerações,
Capitão Castelo Branco.
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Tema: ilhas