Nos Portões do Inferno (3): Capítulo 2: Breu

Capítulo 2

Breu

I

Leonardo e Daniel passaram em frente ao antiquário. Havia outra viatura estacionada lá, com policiais diferentes, mas provavelmente também possuídos.

— Como vamos entrar? Não podemos nos disfarçar, graças a você — indagou Daniel.

— Vai começar? — bufou Leonardo. — Vamos pensar.

Leonardo guiou o carro até a rua de trás. Por sorte, tudo estava deserto naquele momento.

— Vamos entrar pela casa dos fundos. Acho que é aquela — disse Leonardo apontando. — Os donos devem estar no trabalho e, se tiver crianças, devem estar na escola.

— E se tiver alguém?

— Inventamos alguma coisa. Não vai ser a primeira vez, não é?

Novamente a sorte estava ao lado dos irmãos. Daniel rapidamente abriu o cadeado com um kit de chaves micha e eles entraram. Havia um cachorro, mas era bem manso e ficou à volta deles abanando o rabo. Contornaram a casa até chegar ao fundo do quintal. Sem demoras, pularam o muro e logo estavam no espaço de Raiane. Daniel abriu a porta dos fundos do antiquário. Tentaram entrar sem chamar atenção.

— Olha — disse Daniel indicando ao redor da porta. — Ela desenhou Selos de Salomão.

— Fez certinho — comentou Leonardo. — Mas não adiantou muito, não é?

A primeira coisa que notaram foi que a seção de livros e revistas estava toda revirada. Localizaram um cofre arrombado atrás do balcão-caixa.

— Dinheiro? — indagou Daniel.

— Não. Carros chiques, lembra? Gente rica! Demônios não possuíram essas pessoas pra pegar dinheiro.

— Os ricos. São sempre eles, não é?

— Os pobres já têm seus próprios demônios pra matar todo dia. São os poderosos que gostam dessas coisas. Noventa e nove por cento das vezes.

— Algum artefato? — sugeriu Daniel.

— É o meu palpite, mano. Alguma coisa de poderosa deve ter vindo parar na mão da Rai.

— Que tipo, será? Nada santo, eu imagino. Eles não conseguiriam tocar, teriam levado ela pra esse propósito.

— Ou — disse Leonardo —, eles já estavam com alguém pra esse propósito, não podemos descartar essa possibilidade. Mas na real, acho que era algo pestilento. Demoníaco. Precisamos descobrir o que é e onde está.

Leonardo fungou.

— Tá sentindo?

— O quê? — indagou Daniel.

— Enxofre, pô!

Daniel apurou o olfato e também sentiu.

— Quer dizer que ela exorcizou aqui dentro.

Leonardo caminhou fungando, tentando localizar a fonte do odor que o levou a analisar sob uma das prateleiras. Abaixou-se e quando se pôs de pé, Daniel viu que ele segurava um olho na mão.

— Acho que isso deve ser importante — comentou Leonardo enquanto cheirava o olho. — Tá podre de enxofre! — Guardou o objeto no bolso.

Uma sombra nas vidraças indicou que um dos policiais estava indo fazer uma ronda. Correram de volta antes que fossem vistos e saíram pelos fundos. Pularam novamente o muro.

Alguém gritou: Ladrão!

Correram para fora, adentraram o carro e partiram.

II

Leonora conseguiu surrupiar dois uniformes da enfermaria. Logo depois, Beatriz foi ao necrotério em busca de sangue morto. Nesse meio tempo, Muriel conseguiu retirar uma ampola de sangue de Raiane. Encontraram-se minutos mais tarde no estacionamento para redefinir as estratégias.

Muriel precisaria ficar próxima de Raiane para ter uma chance maior de encontrá-la seja lá onde estivesse. No quarto de Raiane havia outro leito disponível, Muriel ficaria por lá como se fosse outra paciente. Beatriz faria a guarda e Leonora conduziria o ritual por ter melhor experiência com necromancia.

Aproveitaram uma chegada de emergência para colocar o plano em prática. Leonora entregou para Muriel uma vela-bússola e a senhora entregou para a filha a ampola com o sangue de Raiane e outra com o seu. Em seguida, Muriel e Beatriz encaminharam-se para o quarto de Raiane.

Leonora localizou um local que parecia ser pouco frequentado, uma ala do hospital que estava em ampliação; a obra aparentava estar parada. Após ter certeza que estava sozinha, traçou um círculo no chão e desenhou vários símbolos ao seu redor. Colocou-se na posição de meditação. De dentro de sua bolsa, retirou seu altar móvel. Abriu e em seu interior pegou velas, essências, ervas e uma pequena tigela de barro. Colocou a tigela à sua frente e despejou em seu interior o sangue morto, o de Raiane e Muriel. A isso misturou óleos essenciais, ervas e um fluído inflamável. Enquanto o fogo se mantivesse aceso, Muriel conseguiria transitar entre os mundos.

Restava apenas esperar o aviso de Beatriz.

III

Beatriz verificou se havia alguma enfermeira no quarto de Raiane. Como não havia ninguém além da filha em coma, fez sinal para a mãe entrar. Muriel ajeitou-se no leito vazio. Beatriz colocou um suporte para soro ao lado da cama para melhorar um pouco o disfarce. Em seguida, mentalizou uma mensagem para a irmã.

Instantes depois, Muriel teve uma pequena convulsão e adormeceu. Beatriz traçou um sigilo de afastamento ao redor da porta com óleo de alecrim, quase imperceptível na parede branca do hospital. Sentou-se entre a cama da mãe e da filha e aguardou.

IV

Muriel se levantou. Estava no quarto do hospital, mas as coisas estavam diferentes. O ambiente estava vazio, esfumaçado e sombrio. Caminhou até a porta, olhou para o corredor. Tudo estava tomado por uma penumbra pesada. A parte boa, era que sentia uma agilidade em seu corpo que há muito perdera. Não necessitava da bengala, o peso do corpo velho desaparecera. Saiu para os corredores vazios em busca de algum sinal da neta. Mas não havia qualquer indício de que ela estava dentro do hospital. Chegou até as portas de saída. Lá fora, o breu se fez entidade. Uma escuridão opressora e tão densa que parecia palpável. Vasculhou os bolsos e encontrou a vela-bússola que a filha lhe dera no mundo desperto. Com apenas um ato de pensamento, uma chama brotou do pavio. A chama apontou para o noroeste. Muriel respirou fundo e adentrou o breu.

V

Raiane corria. Mas por que corria? Tentava se lembrar como foi parar no meio daquela escuridão, mas sua memória falhava.

"No que eu fui me meter?"

Tentava manter a calma. Já havia perdido as contas de quantas vezes repetira aquele processo. Tentou recuperar o fôlego. O silêncio imperava junto àquela escuridão que a impedia de identificar onde estava. Tentava acessar suas últimas lembranças, mas só o que recordava era de estar correndo no escuro, parar, se acalmar, recuperar o fôlego, indagar-se no que foi se meter e voltar a correr.

"Estou em um ciclo".

Mas que ciclo?

Do que corria?

Em resposta às suas perguntas, um som lhe chamou a atenção. Vinha de trás dela.

Um som de matraca, como se estivesse sugando o ar. Crescia e se aproximava. Raiane sentiu um pavor elevar-se dentro dela. Sem esperar para descobrir o que era aquilo, se colocou novamente em disparada. O som foi ficando para trás à medida em que avançava, mas ainda era contínuo.

De repente, viu um pontinho de luz em meio ao breu. Sem hesitar, se pôs a correr em sua direção. À medida que se aproximava, o ponto de luz crescia. Pode identificar que era uma chama. Uma vela! O círculo de luz foi crescendo e logo pode divisar que alguém segurava uma vela.

— Vó? — ela estacou.

— Minha querida Rai — disse Muriel correndo em sua direção.

Raiane correu e a abraçou. O conforto de ver um rosto familiar e amigo na escuridão marejou seus olhos.

O som de matraca cresceu novamente. Sem hesitar, Muriel puxou uma bainha do bolso, sacou seu atame e o fincou no chão. Instantaneamente, um círculo de luz forte se fez e elas foram envoltas por uma cúpula de luminosidade de aparência líquida. Os olhos de Raiane doeram ante o brilho, mas ela conseguiu divisar a entidade que produzia o som de matraca: um ser encapuzado, muito alto, de seu rosto só se via uma bocarra escancarada e cheia de dentes. No momento em que a cúpula de luz se fechou sobre elas, a entidade bateu contra a barreira e foi atirada para longe.

— O que era aquilo? — indagou Raiane assustada.

— Um ceifeiro. Já vi sua descrição em um grimório.

— Um ceifeiro? Então eu... Eu... Morri? O que é esse lugar? Uma passagem?

— Não, querida, você está em coma.

— Em coma? — questionou Raiane perplexa.

— Viemos todos ao seu encontro. Estamos tentando descobrir o que houve. Qual demônio te atacou? O que ele queria?

— Demônio? Como assim? Eu fui atacada por um demônio?

— Oh — exclamou Muriel. — Você não se lembra?

— Não... Eu não sei como vim parar aqui. Só estou correndo dessa coisa... Não sei há quanto tempo.

— Faz algumas horas — informou Muriel.

— Parece uma eternidade.

— É. O tempo é diferente por aqui.

— E a magia também — comentou Raiane tocando a parede de luz de aparência líquida. — Se eu soubesse disso, já teria tentado alguma coisa, mas... Eu não pensei. Me desesperei.

— É compreensível — disse Muriel confortadora. — Você precisa encontrar a saída e voltar para o seu corpo.

— Eu... Encontrar sozinha? A senhora não vai me ajudar?

— Não sei quanto tempo tenho aqui — segredou Muriel. — Sua tia está mantendo um ritual, mas não sei até onde ela consegue. Condições adversas, sabe?

Raiane olhou temerosa para o breu fora da cúpula. Não havia senso de direção. Por onde começar? Aquilo devia ser imenso.

— Como vim parar aqui? Disse que fui atacada por um demônio.

— Demônios, querida! — informou Muriel. — Recebemos uma ligação. Um amigo seu. Ele disse a senha. Quando chegamos, você já estava em coma no hospital. Não tem nenhum vislumbre na memória?

— Deve ter sido o Hugo que ligou. É o tipo de coisa que eu pediria para ele — comentou Raiane forçando a memória, pensar em Hugo destravou outras coisas. — Um homem de branco! Lembro dele entrando na loja. Ele queria alguma coisa... Mas o que era? Ele pegou alguma coisa e fugiu... Eu o exorcizei! Meu Deus, lembro disso. Como eu consegui?

— O que ele pegou, Rai? Tente lembrar!

— Não sei. Depois só consigo me ver traçando selos por todo o antiquário... Cheio de demônios lá fora... Figuras públicas... Conheço os rostos.

— Estavam atrás do quê, Rai?

— Não consi... Lembrei! O livro! Eles estavam atrás do livro de...

Nesse instante Muriel desapareceu e Raiane se viu sozinha em meio ao círculo de luz.

VI

No momento em que Raiane estava prestes a revelar o artefato que atraíra os demônios para o seu antiquário, um enfermeiro entrou para fumar no espaço em que estava Leonora. O rapaz a olhou assustado, viu o círculo, a tigela de sangue em chamas e o altar e saiu gritando, em seu preconceito, que alguém estava fazendo macumba no hospital.

Rapidamente Leonora recolheu tudo e apagou seu círculo da melhor maneira possível.

VII

Beatriz ouviu os gritos do rapaz e percebeu que Muriel estava despertando. Desfez o sigilo de afastamento e ajudou a mãe sair do quarto. Quando chegaram ao estacionamento, encontraram Leonora lá já sem o uniforme de enfermeira. Leonardo e Daniel acabavam de estacionar.

— É um livro — informou Muriel.

— Um livro? — indagou Leonardo. — Qual livro?

— Quando ela conseguiu se lembrar, o ritual foi quebrado. Não deu tempo de ela dizer.

— Como ela está, mãe? — inquiriu Beatriz.

— Está numa espécie de limbo. Tem um ceifeiro atrás dela.

— O quê? — indagou Leonardo incrédulo.

Muriel apalpou os bolsos. Nem o atame ou a vela-bússola estavam com ela.

— Ela vai ficar bem — disse sorrindo.

VIII

Eilson apareceu logo em seguida. Criara um perfil em uma rede social que Raiane usava. Encontrou três pessoas chamadas Hugo entre os amigos dela, mas apenas um era garoto. Não havia endereço, apenas informações sobre a escola em que estudava.

— Fui até a escola, mas ele faltou hoje — informou Eilson.

— O que fazemos agora? — indagou Daniel.

— Não sei — disse Leonardo. — Precisamos pensar. Achar um jeito de localizar os demônios, descobrir qual é o livro. Não dá pra fazer o ritual de novo, Tia?

— Precisamos de mais sangue morto e da Raiane — disse Leonora. — Não posso entrar mais no hospital, talvez depois que o rapaz que me viu encerrar o turno.

— E até lá, a Rai está sendo perseguida por um ceifeiro. E demônios fazendo a festa! — bradou Leonardo enfurecido.

— Ei! Olha — disse Eilson. Ele apontava para um garoto que se encaminhava para a recepção do hospital.

— É ele? — inquiriu Leonardo.

— É — confirmou Eilson. — É o amigo da Rai.

Leonardo saiu determinado caminhando a passos largos.

O menino estava na recepção. Um tanto gordinho, óculos fundo de garrafa, uniforme escolar e mochila.

— Ela já acordou? — ele perguntava para a recepcionista quando uma mão pesada tocou seu ombro. Virou-se assustado.

— Precisamos conversar — disse Leonardo enfático.

Continua...

ISBN: 978-65-00-92694-1

Raphael Rodrigo Oficial
Enviado por Raphael Rodrigo Oficial em 26/01/2024
Reeditado em 29/01/2024
Código do texto: T7984906
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