o palhaço
A escuridão continuava a mesma. Dias, semanas, meses, anos. Estações morriam e renasciam, a vida seguia em frente e minguava no meio do caminho. E a escuridão continuava a mesma.
Joshua Rozier abria a porta de madeira vagabunda de seu apartamento sujo no subúrbio e jogava a bolsa com seu equipamento de trabalho no sofá verde e rasgado com várias latas de cerveja espalhadas por seu estofado gasto. Ele então caminhava para o banheiro e urinava o ódio em seu coração enquanto o ouvia batendo forte demais em seu peito. Logo em seguida parava em frente o espelho e a pergunta que lá havia era intensa demais para que ele pudesse encará-la e cuspir a resposta entalada em seu peito. Era um ritual. Josh precisava ter certeza do caminho sem sentido pelo qual caminhava, precisava se sentir um pouco louco, pois isso era tudo que lhe restava. Ele não possuía qualquer família que se importasse com ele, muito menos uma namorada.
Na verdade, eles haviam criado o ritual. Eles haviam criado o verme paciente da insensatez em seu âmago, e uma vez lá instalado ele se tornara um amigo, um substituto para um sentimento tão banal quanto a solidão. A pergunta continuava lá, em seus próprios olhos, nos barulhos dos encanamentos podres, nas negações de sua vida, em suas falhas, em seus abandonos, em suas desistências. Mas Joshua não sabia a real importância desta pergunta, pois ela nada mais era do que isso.
Ele então retornava à sala de estar, se é que poderia ser chamada assim, e abria o zíper da sua bolsa, apenas para alimentar o seu verme companheiro. Retirava uma peruca vermelho-sangue, um macacão de bolinhas igualmente vermelhas, sapatos
excessivamente grandes, um chapéu de estrelas amarelas, alguns balões, o típico nariz redondo e uma bolsa menor com a maquiagem necessária ao trabalho.
Joshua Rozier era um palhaço, e quando parava para pensar nisso não havia sorriso em seu rosto, apenas um leve remexer do verme. John Gacy havia sido um palhaço também, certo? Houve igualmente um verme em sua alma, talvez devorando, talvez sugando? Joshua arrepiou-se verdadeiramente com tal pensamento, e agora seu companheiro não parecia tão passivo como imaginava. Ele precisava de satisfação, sem dúvida, por menores que fossem, por mais dolorosas que fossem. Freud dizia muito sobre satisfação e os meios para consegui-la, lera Joshua certa vez, quando não havia fantasias, vermes ou perguntas. Quando ainda havia alguma luz em algum lugar, com certeza não aquela do prostíbulo em frente ao seu prédio que invadia pela janela aberta vermelha como o seu nariz de palhaço. Tudo parecia vermelho, Joshua sorria do absurdo. Vermelho e negro.
As crianças haviam zombado dele. Não havia mais lugar para palhaços em qualquer lugar do mundo, e o mais surpreendente era o número de pessoas dispostas a gastar verdinhas com esse tipo de serviço. Eram engraçados apenas quando humilhados pelas crianças, e, amigo, como elas podiam ser más. Mas Joshua precisava das verdinhas, precisava pagar pela porta vagabunda, pelo chão sujo, pelo encanamento gotejante, pelo espelho curioso, pela TV com sua luz azulada e hipnotizante. Precisava pagar pelos remédios para dormir, pelos antidepressivos.
Mas aquele ainda não era o fim do dia. Joshua largou seus objetos coloridos de qualquer maneira e dirigiu-se novamente para o banheiro, dessa vez sem olhar para o espelho. Tomou um banho rápido, calçou seus sapatos, sua calça e sua camisa social. Arrumou o cabelo com as mãos, como sempre fazia e por sorte sua barba estava feita. O espelho duvidoso não o encararia novamente naquela noite.
Joshua sabia ser um palhaço, assim como sabia ser um garçom.
Saiu pela porta do prédio e sentiu-se agradecido pelo vento agradável soprado pela avenida. Era como ser beijado com honestidade, como ser tocado por algo belo. O restaurante não ficava longe, e sua amiga Jane havia arranjado o bico para ele duas vezes por semana. Verdinhas, verdinhas, verdinhas.
Jane era uma bela mulher, jovem, loira de olhos extremamente negros, com seu corpo sempre em forma e seus cabelos puxados para trás num rígido coque. Joshua havia sentido tesão por ela assim que a conheceu, mas logo percebeu que tanto ele como qualquer homem estavam fora de questão. Jane era tão lésbica quanto se podia ser. Josh chegou ao Platinum às 19hs em ponto, o horário no qual sempre chegava. Estranhamente já havia uma grande mesa ocupada e ele não pôde esconder a surpresa quando olhou para as pessoas que a utilizavam. Eram os Beckner, a família para a qual havia trabalhado durante toda a tarde. Mas dessa vez estavam sem as crianças, todos completamente bêbados após horas ininterruptas de bebedeira.
O verme se contorceu enquanto Jane se dirigia a ele:
- Graças a Deus você chegou, Josh, precisamos de mais garçons para aquela mesa.
Esse pessoal é insano.
- Tudo bem.
- Pegue essa bandeja e corra para lá - Jane sorriu - tenho o pressentimento que esse pessoal tem uma boa grana para gastar.
A bandeja continha sete copos com doses caprichadas de vodka, e para lá Josh caminhou, confiante de que não seria reconhecido por trás de toda a maquiagem que havia usado como palhaço.
- Com licença - disse, enquanto colocava gentilmente a bandeja sobre a toalha vermelha da mesa. Vermelho, vermelho, vermelho.
- Obrigado, gar...
Um homem extremamente gordo de cabelos e barba grisalhos sentado na cabeceira interrompeu-se e estreitou os olhos.
- Hei, você...
Ele se aproximou e Josh pôde sentir seu hálito de álcool diretamente em seu rosto.
- Eu conversei com você antes da festa para o pequeno Junior esta tarde. Você é o palhaço, certo?
Josh pensou ter sentido o verme sorrir em seu estômago.
- Sim, senhor.
O homem então gargalhou como se tivesse ouvido a melhor piada do mundo.
- Meu Deus, como esse mundo é pequeno.
Dito isso, virou-se para um outro grande homem sentado do outro lado da mesa.
- Harold! Harold! Veja só quem encontramos aqui! O palhaço!
O homem barbudo gargalhou novamente, ficando com o rosto vermelho e ofegante.
- Por Deus! O palhaço.
Harold, o homem do outro lado, gritou em resposta:
- Palhaço? Aquele que Junior acertou em cheio as bolas?
- SIMM!!
A gargalhada era geral agora. Joshua ruborizou:
- Com licença - disse levando consigo a bandeja e o verme.
- Espere! Por que não faz mais alguns malabarismos para que um de nós possa lhe chutar nas bolas?
Era um pandemônio geral. Joshua não conseguia compreender por que suas pernas tremiam ao retornar para o balcão. Jane olhava curiosa:
- O que foi tudo isso, Josh?
O verme era vermelho, ele agora tinha certeza.
John Gacy também havia sido um palhaço, certo?