Contos Obscuros - Cosmonauta e Astronauta
Meu nome é Ivan Ivanovich. Sou cosmonauta, registro USS4136. Estou deixando este registro caso seja encontrado algum dia.
Parti do Cosmódromo de Baikonur em 15 de dezembro de 2038 até a Estação Espacial Yuri Gagarin. E de lá para uma missão solo de seis anos. Três anos até o Ponto Mãe, e três anos de volta.
Minha cosmonave de trilhões de toneladas carrega uma enorme lente telescópica que seria instalada no Ponto Mãe, e serviria para observar mais longe no infinito do espaço.
Tudo correu bem nos 2 primeiros anos e quatro meses. Então, percebi alguns problemas pontuais: a comunicação passou a ficar interrompida por períodos mais longos. A solidão ficou ainda maior.
A água passou a ter um gosto salino, e os reatores do motor tinham frequentemente de ser religados devido a quedas de temperatura no exterior da nave, que causavam diminuição na velocidade de viagem por causa do gelo acumulado.
Algo inimaginável.
Eu passei a temer pela falta de combustível para o relançamento de volta.
Meus dias se resumiam a cálculos, solidão, tentativas longas de contato, solidão, observação do vazio pela única escotilha e mais solidão.
O espaço é vazio. Escuro. Silencioso. Solidão.
O rosto da minha esposa já não me era tão claro. Agradeço por ter trazido comigo a foto.
Depois de cinco dias sem resposta a nenhuma comunicação, tive febre. Não proveniente de nenhuma infecção, mas do medo.
Não dormia mais. Tinha medo de dormir e acordar ainda mais no nada. A última vez que consegui dormir, acordei com um pesadelo de que era arremessado para fora da cosmonave rumo ao vazio absoluto.
Dez dias sem comunicação. Arrepio. Tremor. Ouvi do lado de fora da cosmonave um ruído.
Impossível.
Não me movi por quase meia hora tremendo de medo. Quando consegui me mover fui até a escotilha e observei.
Nada.
Depois de horas de temor conclui que deveria ter sido a camada de gelo que se desprendeu da cosmonave, cujo atrito com a estrutura tenha produzido o ruído. Rezava para que fosse isso. Não acreditava em Deus. Mas acreditei naquele momento.
Um mês sem comunicação. Sabia que continuava no trajeto correto porque a cosmonave não errava. Ela era impecável. Eu era a única coisa que poderia dar defeito. E a comunicação também, deduzi.
Por isso não enviavam duas pessoas. O vazio e a solidão poderiam fazer com que houvesse um conflito. Um conflito em um ambiente como este, na cosmonave só levava a um resultado: morte. E consequentemente falha da missão.
Mortes podiam ser toleradas, falhas não.
Então veio o sinal.
O rádio.
Vomitei. Chorei.
Não consegui alinhar o contato. Apenas estática. Mais choro.
Então pude ouvir.
Mas agora percebo que era melhor nunca ter ouvido aquela mensagem.
“ISS, aqui é a espaçonave George Washington, câmbio”
Eu não entendia bem inglês, mas aquilo estava claro.
“ISS, alguém na escuta?”
Eu tremendo apertei o botão de transmissão.
“Aqui é a Sputinik 54, câmbio”
Silêncio.
Talvez não entendessem meu inglês.
“Aqui é a Sputinik 54, câmbio. George Washington, escuta?”
“Por Deus! Quem é você?”
“Aqui é Ivan Ivanovich, a bordo da Sputinik 54.”
“Isso... isso é impossível”.
Eu estava tremendo, lágrimas escorriam de tal maneira que quase não conseguia enxergar.
“George Washington, aqui é Ivanovich a bordo da Sputinik 54, acalme-se. Por favor acalme-se.”
Eu mesmo precisava de calma.
“Ivanovich, aqui é John Doe, a bordo da George Washington. É um prazer ouvir sua voz, mas...”
“Certo. Calma."
Em poucas palavras expliquei quem era, qual a minha missão. Ele escutava em silêncio.
“Escute, Ivanovich. Vamos atracar. Você precisa ver algo. E talvez possa me explicar o que é.”
Tudo que eu havia aprendido até aquele dia ia contra fazer aquilo. Ainda mais um americano. Mas experimente ficar no vazio absoluto. Tudo deixa de ter sentido.
Ele alinhou as duas naves, dando a volta pela minha e as duas escotilha ficaram em posição. Pela escotilha eu olhava assombrado a maneira com que aquela nave se movia. Era impossível.
Alinhamento, aproximação, atracagem.
Após a descompressão, me movi até a escotilha já dentro do meu cosmotraje.
Abri a porta. E flutuei para o interior da George Washington.
“Olá, Ivanovich."
John Doe estava vestido no seu traje espacial. Porém, eu pude ver o quanto ele estava magro e debilitado.
Apertamos as mãos. Não controlei as lágrimas.
Ele me olhava com os olhos injetados. Parecia ter ficado mais pálido quando me viu. Ficou me olhando por vários minutos. Em silêncio.
Eu queria conversar, ouvir outra voz.
“Quem é você, John Doe?”
“Ivanovich, o seu nome é esse mesmo?”
“Sim.”
“Impossível.”
Ele bateu no próprio capacete. Depois abriu e o tirou.
“Está descompressorizado. Não precisamos disso.”
Eu retirei o meu. Doe estava pior do que eu pensava.
“Há quanto tempo você está nesta nave, Doe?”
Ele foi até uma enorme espécie de mesa. Só então notei pela dor nas costas que eu não estava flutuando. A gravidade naquela nave era quase normal.
“Ivanovich, quero que olhe essas fotografias que eu tirei há mais ou menos três meses atrás.”
Eu peguei as fotos e as observei. No início não entendi muito bem. Mas aos poucos fui reconhecendo. Era a Sputinik 54. Mas, não parecia ela. Estava desgastada, congelada.
“O que significa isso?”
“Que seu país enviou duas naves. Duas Sputinik 54, talvez.”
“Mas isso é impossível, não há nenhum relato de outra missão anterior a minha a essa distância.”
Não era outra nave. Era a Sputinik 54.
Cosmonaves gêmeas? Isso era algum tipo de brincadeira.
“Olhe, Ivanovich. Eu estou nesta nave há 15 anos. Perdido neste espaço por 15 longos anos.”
Eu não disse nada. Era mentira.
“Estou morrendo. Câncer. A comida e a água artificial fazem isso. Tenho pouco tempo, e acredito que não verei mais a Terra.”
“Você está louco!”
“Escute, Ivanovich. Eu sai da Terra em 2090. Anos após sua partida. Minha missão era colocar uma lente no Ponto Mãe.”
“O que está dizendo?”
“Estou dizendo que seu país e o meu país estão trabalhando juntos. Nenhuma missão até agora havia conseguido obter sucesso”.
Eu olhei as fotos. Não fazia sentido. 2090? Mas eu havia viajado apenas dois anos.
“Sua cosmonave desapareceu há muitos anos atrás. Você foi dado como morto.”
“Eu não estou morto.”
“Oh, sim. Você está morto meu amigo. E posso confirmar.”
Eu não sabia o que dizer. Seria possível eu ter perdido a conta do tempo? Poderia eu ter viajado por mais de 50 anos?
Tudo isso era completamente loucura.
“Eu não estou sozinho, nesta nave, Ivanovich.”
“O que?”
“Eu não estou sozinho.”
“Quem está com você?”
“Eu esperava que você me dissesse.”
Ele foi para outra sala na nave. Tive vontade de voltar para minha cosmonave, e tentar fugir. Mas ele não deixaria.
Fui devagar atrás dele. Na outra sala, ele abriu uma espécie de compartimento e puxou uma pequena mesa de dentro. Me lembrou um necrotério.
Era um corpo sobre uma mesa, coberto.
“Veja, Ivanovich.”
Eu me aproximei. Ele descobriu o corpo.
“Não... Não... Não!”
Eu chorei e caí no chão. Ele ficou em silêncio.
Fiquei ali por um tempo que não me lembro. Ele não me apressou. Então me levantei.
Ali, naquela mesa, estava um cadáver de um cosmonauta. No uniforme a identificação: Ivan Ivanovich.
E sim, era eu.
Eu reconheceria meu rosto em qualquer lugar.
Voltamos para a outra sala.
“Há uns três meses eu encontrei sua nave, flutuando no espaço. Sem comunicação. Quase completamente congelada. Tive medo. Mas acabei resolvendo atracar. Você estava morto. Talvez já fizesse bastante tempo.”
“Mas como isso é possível?”
“Eu não sei.”
“E o que faremos?”
“Quando avistei sua nave percebi que ela era idêntica a que havia encontrado, então pensei que aqui fosse uma rota, ou coisa assim. Então tentei contato com a Terra, mas você respondeu.”
“Eu não sei mais o que pensar.”
“Eu sei amigo. O que acha que está se passando na minha cabeça? Eu encontrei dois Ivanovich aqui em cima. Um vivo e outro morto.”
Os dia seguintes foram de uma estranheza. Eu examinei o corpo o mais completamente possível e cheguei a uma conclusão. Aquele morto era Ivan Ivanovich.
Eu estava morto.
Mas ainda estava vivo.
John Doe aceitou a informação com calma. Ele mesmo estava vivo. Mas estava morto. O câncer o consumiu rapidamente.
Suas últimas palavras antes de morrer nos meus braços, foram:
“Obrigado. Eu não queria morrer sozinho.”
Agora ele está em uma mesa ao lado do meu outro eu. O eu morto.
Eu tentei realinhar a trajetória da cosmonave e relançar de volta para a Terra. Mas nem a Sputinik e nem a George Washington respondiam. Nada funcionava. Ironicamente, apenas o rádio funcionava.
Mas nunca havia resposta aos meus gritos de socorro.
Dias? Meses? Anos?
Eu estava morrendo. A comida e a água artificial estava ruins, como Doe havia dito.
Talvez eu estivesse com câncer.
“Aqui é Sputinik 54, alguém na escuta câmbio.”
Uma, dez, cem vezes.
Nenhuma resposta.
Até que...
“Aqui é o taikonauta Yamaha Taro, a bordo da Fukushima 2, câmbio”
Eu teria chorado se a desidratação não tivesse acabado com minhas lágrimas.
“Fukushima, aqui é a Sputinik 54, câmbio”
Silêncio.
“Por favor, repita.”
“Aqui é a Sputinik 54, câmbio.”
“Como é seu nome, cosmonauta?”
“Ivan Ivanovich. Eu estou na Sputinik 54, atracada a George Washington, do astronauta John Doe.”
“Cosmonauta, isso é impossível.”
“Do que você está falando, Fukushima?”
“É impossível você ser Ivanovich, porque você está morto”.
Isso é bem possível.