Nos Portões do Inferno (2): Capítulo 1: Chamada de Emergência

Capítulo 1

Chamada de Emergência

I

A noite já se adensava quando o telefone tocou quebrando o silêncio na residência dos Cartago. Na biblioteca, Leonardo sobressaltou-se. Fechou o livro sobre rituais arcaicos que estava lendo e caminhou apressado para a sala. Ligações tarde da noite não eram incomuns na residência, mas por algum motivo, sentiu que aqueles toques carregavam um tom de mau agouro.

— Pronto — disse atendendo.

— Oi... É... Ela disse pra ligar. Acho que tem alguma coisa errada. Tinha um cara que ela foi atrás, depois voltou... Ela deixou tudo aberto pra ir atrás dele, ela nunca faria isso... Eu vi nas câmeras... Tem muitos, tô vendo agora...

— Ei! Ei! Calma aí! Respira, guri. Fala devagar. Primeiro: quem é você? E segundo: como tem esse número?

— Ah, é mesmo, foi mal, desculpa. É... Eu sou o Hugo.

— Hugo? Que Hugo?

— Sou amigo da Raiane, foi ela que deu o número.

Leonardo sentiu o corpo enrijecer e a mão que segurava o telefone se crispar ante a menção do nome de sua irmã gêmea.

— Onde ela tá? — exasperou-se Leonardo.

— Ela me pediu pra ligar. Ela tá na loja dela. Mas, eu acessei as câmeras da rua... Tem um monte de cara lá na frente, uns carros importados, sabe? Tô tentando ver a placa de algum, mas não dá ângulo, sabe?

— Ela pediu pra você falar alguma coisa estranha?

— Não... Quer dizer, sim.

— Fala! — bradou Leonardo.

— Ela disse que: o Balrog passou.

— Merda — exclamou Leonardo sentindo a voz fraquejar.

— O que isso quer dizer? — indagou Hugo.

— Nada — mentiu Leonardo. — Eu assumo daqui, cara. Me passa seu endereço que eu...

Leonardo ouviu um clique do outro lado da linha indicando que o garoto havia desligado. Bateu o telefone no gancho e correu para a entrada da casa onde ficava a central do alarme. Sem demoras, abriu a portinhola e apertou um botão vermelho. Logo, um toque estridente ressoou por toda a casa.

Passos apressados chegaram da escada que levava ao segundo andar. O primeiro a descer foi Daniel, seguido por Beatriz, Leonora e Eilson. Todos se entreolharam em busca de respostas. Leonardo abriu a boca para falar, mas desistiu no meio do caminho, pois um toc, toc se fez ouvir no andar superior. Fez um sinal para que todos esperassem. Lentamente, o toc, toc da bengala de Muriel Cartago chegou ao topo da escada e ela se colocou a descer com certa dificuldade. Beatriz fez menção de subir para ajudá-la, mas a matriarca da família fez sinal abrupto ordenando que a filha ficasse onde estava. Na mão livre, trazia um rifle. Esperaram ela chegar ao pé da escada, trêmula, um pouco devido à idade, um pouco devido ao despertar repentino.

— Mas que barulheira infernal foi essa? Espero que seja algo importante — ela disse encarando Leonardo. Os outros também o olhavam apreensivos.

— Acabei de receber uma ligação de alguém que diz ser amigo da Rai.

— Fala logo! — pediu Daniel.

— Ela mandou dizer que o Balrog passou — disse Leonardo em um arquejo.

Todos se entreolharam tensos. Uma aflição começava a se formar entre os membros da família Cartago. O Balrog passou. Uma senha para: demônios estão por aqui e eu estou em perigo.

II

— Suspenderemos todos os trabalhos em andamento — disse Muriel enfática.

— Mas Vó, e o caso... — Daniel tentou argumentar.

— Suspenderemos tudo! — vociferou Muriel cortando as palavras do neto.

— A mãe está certa — interveio Beatriz. — Sua irmã sempre tentou manter distância, mal liga para desejar um feliz aniversário, feliz natal ou o que quer que seja. Se ela solicitou ajuda, é porque a coisa ficou séria. E além do mais, ela é família, independente do tipo de relação que temos. Concordo com a mãe. Suspendemos tudo e vamos em peso até ela!

Todos menearam afirmativamente a cabeça. Daniel, se vendo por vencido, concordou.

— O que mais você sabe? — indagou Leonora para o sobrinho.

— Não muito. A ligação caiu ou o guri desligou...

— Guri? — disse Daniel cortando Leonardo. — Peraí, você fez essa algazarra toda por conta da ligação de um garoto? E se for um trote?

— Não foi? — esbravejou Leonardo. — Como você acha que ele tinha a senha. Ele disse que estava vendo por uma câmera, ou sei lá o que. Disse que a Rai estava dentro da loja dela e tinha um monte de cara na frente. Carros importados. Carros. No plural.

O ar no ambiente pareceu suspenso por alguns instantes.

— Mexam-se! — vociferou Muriel. — O que estão esperando? Vão arrumar as malas! Vocês são surdos?

III

Leonardo estava em seu quarto terminando de organizar a bolsa de viagem com itens que considerava ser necessários: ampolas de água benta, faca santificada por um papa, uma cópia do Rituale Romanum — embora o soubesse de cor —, munição de sal e armas adaptadas.

Estava nervoso. Não pelos demônios, já havia topado com muitos por aí, mas por Raiane. Fazia um bom tempo que não conversava com sua gêmea, da última vez o diálogo não fora amigável. Na verdade, as últimas conversas dela não foram amigáveis com nenhum membro da família. No entanto, sentia falta dela. Fora opção da irmã não seguir o trabalho da família, mas quando se é um Cartago, o trabalho acaba te encontrando.

Também sentia raiva. Talvez se ela tivesse ficado isso não estaria acontecendo.

Uma batida atrás de si o sobressaltou retirando-o de seus pensamentos. Era Daniel.

— Você acha que a Vó moveria céus e terra se fosse outra bruxa sendo atacada e não a Rai?

— É claro — disse Leonardo convicto. — Demônios estão à solta, cara!

— É claro que iria — Daniel ironizou —, se os parentes da bruxa pagassem bem.

— Tá falando do quê?

— Que a velha só sem importa com o que vem em troca e não necessariamente em fazer o bem, isso é só uma consequência remota.

— Como é? — inquiriu Leonardo fechando o zíper da bolsa com violência. — Tá de sacanagem? Eu faço isso porque quero acreditar que tô fazendo um bom trabalho. O que vem em troca é lucro!

— Falou bem. Você quer acreditar. Gostaria que a velha também quisesse.

Daniel terminou a frase e saiu do quarto deixando para trás o irmão furioso.

IV

Cerca de duas horas depois, os Cartago estavam embarcados em direção ao Brasil. Muriel contatou algumas autoridades que lhe deviam favores para que as armas pudessem seguir na bagagem. O voo transcorreu sem problemas. Desembarcaram em Congonhas, São Paulo, onde fizeram conexão para o aeroporto de Cuiabá, no Mato Grosso, onde demoraram pelo menos mais uns quarenta e cinco minutos até locarem um carro que comportasse toda a bagagem. Leonardo se encarregou de dirigir, pois sabia onde era o antiquário de Raiane.

V

Quase onze hora após a ligação de Hugo, uma SUV estacionou em frente a um pet shop no bairro São João Del Rei. Os Cartago desembarcaram e viram, do outro lado da rua o antiquário. As vidraças estavam todas estilhaçadas, uma faixa da polícia cercava a frente e juntamente ao meio fio, uma viatura da polícia militar estava estacionada.

Leonardo atravessou a rua apressado. Assim que se aproximou, as portas da viatura se abriram e dois policiais com cara de poucos amigos desceram de lá. O restante da família chegava logo atrás.

— Somos parentes — informou Leonora antes que os policiais indagassem qualquer coisa.

Leonardo se esforçava para ver o interior da loja. A última a chegar foi Muriel. Os passos acompanhados pelas batidas da bengala no asfalto. Um dos policiais pediu para ver alguma identificação.

— Cadê minha neta? — inquiriu Muriel em um tom tão contundente que os policiais desistiram de ver qualquer documento e relataram o que acreditavam ter ocorrido. De acordo com eles, foram acionados pelos vizinhos durante a madrugada dizendo que vários carros chiques estavam parados em frente ao pregão e parecia que algo iria acontecer. Quando chegaram, não encontraram nenhum carro, o pregão estava todo revirado e Raiane caída no chão bastante machucada; acionaram o SAMU e ela foi levada ao Hospital Municipal de Cuiabá, onde devia estar até o momento.

— Onde fica a base de vocês? — indagou Leonardo.

— A três quadras daqui — informou um dos policiais.

— E vocês vieram assim que receberam o chamado?

— No mesmo instante.

— E como um monte de carro sumiu tão rápido daqui?

— É o que estamos tentando descobrir — disse o outro policial dando de ombros.

— Entendi — disse Leonardo se aproximando. — Deixa eu te perguntar outra coisa.

O agente se aproximou também. Sem avisos, Leonardo tirou a mão do bolso contendo uma ampola de água benta e a estilhaçou na face do policial que foi ao chão entre grunhidos de dor. Os Cartago olharam apreensivos. O outro policial ficou sem ação analisando a cena. Logo, fumaça começou a subir da face do policial caído que os encarou com olhos completamente vermelhos. Daniel se adiantou para o outro agente, mas ele saiu em disparada, desaparecendo em uma das ruas adjacentes.

— Ajudem — gritou alguém de uma das casas. — Estão atacando a polícia!

Sirenes foram ouvidas se aproximando. Provavelmente algum vizinho já havia acionado a base militar. O policial possuído sorriu com deboche para eles. Daniel e Leonardo ajudaram a avó para que chegassem mais rápido ao carro e, antes que as outras viaturas aparecessem, já haviam partido.

VI

— Maravilha, Leo — disse Daniel no banco detrás. — Sempre impulsivo.

— E se ele não estivesse possuído? — indagou Beatriz.

— Eu senti o cheiro de longe, Mãe — disse Leonardo em sua defesa. — E tava na cara que eles estavam mentindo.

— É, mas agora, todo mundo sabe em que carro estamos e qual a nossa cara, não vamos conseguir analisar o antiquário — objetou Leonora.

— Relaxa, Tia. Vamos achar o hospital e depois eu volto com o Dan e a gente dá um jeito de entrar — tranquilizou Leonardo.

— Com certeza não vai ter só uma viatura da próxima vez que vocês voltarem — disse Eilson.

— A gente dá um jeito — disse Leonardo respondendo ao primo.

— Foi esse tipo de atitude que tirou a vida de muitos Cartago — disse Muriel. — Vê se se controla, rapaz!

— Já disse que vou dar um jeito, Vó — disse Leonardo entredentes.

VII

Encontraram o hospital municipal e o adentraram em um tropel. Na recepção, informaram o nome. A atendente disse que Raiane realmente estava lá, mas só poderiam entrar duas pessoas por vez para vê-la.

— Eu vou! — disse Leonardo enfático. — Quem vai comigo?

Muriel olhou para Beatriz e assentiu. E assim, mãe e filho seguiram para o local designado. O que a recepcionista não informara e que para eles foi um choque, era que Raiane estava em coma.

Leonardo correu para junto da cama da irmã, chamando a atenção de uma enfermeira que instruiu para que ele tomasse cuidado. Raiane tinha a cabeça enfaixada, várias escoriações pelo corpo e uma expressão de dor no rosto. Beatriz aproximou-se com os olhos marejados e uma expressão de raiva rasgou o semblante de Leonardo.

— O que foi? — indagou Beatriz.

— Olha — disse Leonardo apontando para a pulseira de berloques de Raiane sobre um criado mudo juntamente com outros pertences. — Eu dei isso pra ela, lembro que ela encantou e consagrou todos esses pingentes. Tá faltando uma phurba aqui.

— Uma phurba? Quer dizer que...

— Provavelmente ela fez um exorcismo. Mas porque usar a phurba? — indagou Leonardo.

— Talvez ela não soubesse contra o que estava lutando, usou a phurba para ter certeza que iria dar certo.

Beatriz chamou a enfermeira para que ela lhe informasse sobre os danos que a filha havia sofrido. Ela relatou que Raiane chegou desacordada, os vários hematomas e escoriações pelo corpo indicavam que havia sido espancada. Duas costelas quebradas, perna fraturada e, certamente, foi um golpe na nuca que a deixou inconsciente. Tudo o que podiam fazer no momento era aguardar.

Leonardo e Beatriz voltaram à recepção e lá aguardaram. Após todos os Cartago visitarem o quarto de Raiane, reuniram-se no estacionamento tentando se esconder do sol castigador de Cuiabá da melhor maneira possível.

— Precisamos de uma estratégia. Coloquem suas ideias — decretou Muriel.

— Vou voltar ao antiquário e ver o que descubro. Daniel vem comigo? — disse Leonardo. O irmão assentiu.

— Eu posso tentar localizar o tal amigo de Raiane que ligou pro Leonardo. Ele deu algum endereço? — indagou Eilson.

— Só o primeiro nome: Hugo — informou Leonardo.

Eilson puxou do bolso um smartphone fazendo com que Leonardo revirasse os olhos.

— Isso pode ser útil — justificou Eilson ante o desdém do primo.

— Se a Raiane está em coma, podemos tentar acessá-la — disse Leonora.

— Necromancia? — indagou Beatriz.

— Talvez, provavelmente ela está no território de passagem. Ficamos aqui e tentamos algum ritual de acesso, quem sabe até conseguimos guiar ela de volta.

— Eu acesso — disse Muriel enfática. — Vocês fazem o ritual e eu acesso.

— Mas mãe...

— Eu sou a mais velha — bufou Muriel cortando a fala de Leonora. — Não vai ser grande perda se eu não conseguir voltar.

— Não fala assim, mãe! — censurou Beatriz.

— Está decidido — disse Muriel. — Mexam-se!

Continua....

ISBN: 978-65-00-92694-1

Raphael Rodrigo Oficial
Enviado por Raphael Rodrigo Oficial em 19/01/2024
Reeditado em 29/01/2024
Código do texto: T7980036
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