História de Pescador

Tradição de família, pescar sempre esteve no sangue. Nos rios, nos lagos, no mar, sozinho ou com familiares e amigos, era o hobby que, orgulhosamente, dizia jamais abriria mão. Bento sempre dizia que, na vida, tinha duas certezas: da morte e de que pescaria enquanto ainda respirasse. Sua casa, sempre repleta de fotos das pescarias das quais participara, incluindo campeonatos e até prêmios recebidos. Dentre tantas modalidades existentes, acabou adquirindo preferência pela pesca noturna. Tornou-se hábito visitar a represa do município, nos finais de semana, geralmente pernoitando de sábado para domingo. Ali havia um píer que costumava dar mais conforto à empreitada. Se havia alguém disposto a acompanhá-lo, ótimo. Não sendo possível, a solidão não se tornava menos prazerosa.

Pescar à noite requeria cuidados maiores. Além da necessidade de equipamento específico, também era preciso pensar nos riscos. Mas a localidade sempre fora ordeira e a criminalidade era algo que não conheciam, logo, assaltos e coisas do tipo não o preocupavam. Havia uma história, no entanto, naquela região, que brincava com a imaginação do povo: a sereia da represa.

Não se sabia quem tinha começado com tal história, e inventara o termo de mau gosto. O fato é que o causo se espalhou e muitas pessoas, ignorantes e supersticiosas, evitavam o lugar. Assim como pedreiras abandonadas e velhas encruzilhadas, uma represa também era terreno fértil para contos de horror. Falavam sobre uma figura feminina, de grande e inimaginável beleza. Ela o seduziria e, depois, o arrastaria para o fundo das águas escuras. Havia quem jurasse já tê-la visto, mas não se tratava de gente muito digna de algum crédito. Bento tinha o hábito de pescar à noite havia dois anos e, é claro, não acreditava nesse tipo de lenda. E, em todo aquele tempo ali pernoitando, uma vez por semana, já deveria ter visto alguma coisa, não é mesmo?

Era algo perto da meia-noite, e fazia frio. Estava sozinho, como quase sempre, no píer. A barraca, devidamente montada, e todo o aparato necessário para ter alguma segurança e conforto, incluindo o básico repelente de insetos que, com a baixa temperatura, não deveriam das as caras. Admirava, em absoluto silêncio, o belo retrato que a lua cheia caprichosamente pintava sobre a face gelada da água calma. A ausência de iluminação elétrica do lugar permitia apreciar o céu lindamente estrelado. Constelações que, um dia, na escola, apenas ouvira falar, agora se mostravam sem nenhuma cerimônia ou timidez. A linha de pesca mantinha-se parcialmente imóvel. O único e sutil movimento perceptível era a boia da linha que dançava, lenta e discretamente, conforme também o fazia a superfície da água. Um prazer imensurável e indescritível de se estar, sozinho, naquele lugar. Mesmo que nada pescasse, isso era, naquele momento, irrelevante.

Um som se fez ouvir. Para quem é do ramo, é o som característico de peixes que saltam para fora d’água, pensou. Imediatamente, a superfície gélida se torna menos calma e a boia da linha sobe e desce com as suaves ondas. Imaginou que algum peixe grande estaria na caça às presas. Continuou sentado, imóvel, à espera. Paciência é sempre um pré-requisito para ser um bom pescador. Novamente ouve algo, e a boia agita-se cada vez mais. A grande lua, desenhada na superfície da água, adquire movimento, e se retorce, e se contorce, poética e dolorosamente.

Logo Bento descobre a razão da agitação do belo retrato que admirava. A sua frente, a uma distância de aproximadamente vinte metros, consegue perceber o que parece ser uma cabeça humana, emergindo lentamente. Com a claridade propiciada pela lua cheia, é possível ver tratar-se de uma mulher, com longos cabelos soltos sobre os ombros. Ela avança em sua direção, expondo gradualmente o corpo, enquanto ele apenas a observa, estupefato e paralisado, tentando entender o que estaria acontecendo. Em instantes, ela se encontra a apenas cinco metros de distância, já com a água na cintura. Finalmente, quando já se era possível contemplar as belas feições de seu rosto, ela para e fixa em Bento o olhar. Seu corpo mantém uma pose sedutora e altiva. É uma bela mulher, com lindas formas, e está completamente nua. a água gelada obedece às leis da natureza, percorrendo suas curvas. Bento põe-se, então, em pé, mas sem esboçar nenhuma intenção de fugir... Muito pelo contrário, ele começa a caminhar em sua direção. Parece hipnotizado por um olhar de Medusa. Subitamente, em meio a uma espécie de transe quebrado, recobra alguma consciência e recua, assustado, vindo a cair, de costas, batendo a parte posterior da cabeça no chão de madeira do píer. Momentaneamente atordoado, sente-se agarrado pelo tornozelo da perna direita e é, brutalmente, e como se pouco pesasse, puxado para a água.

Debatendo-se dentro do escuro e gélido lago, pouca coisa, ou nada, é possível de se ver. Sente que ainda é fortemente segurado pela perna, e não tem forças para lutar. Apesar de ser um ótimo nadador, engole bastante água devido ao desespero da situação, e percebe estar sendo arrastado para o fundo. Os pulmões queimam. Num improvável golpe de sorte consegue, com o pé esquerdo, chutar algo e sente-se, então, solto. Recobrando alguma força, finalmente, consegue nadar até chegar à margem. Rolando sobre a lama gelada, ainda tentando entender o que estava acontecendo, lança um olhar para trás e consegue ver, novamente, o ser que o teria tentado levar para o fundo daquelas águas. Aterradora imagem, que em nada lembrava a sereia da famosa lenda local. Seus antes belos contornos, agora, eram disformes e grotescos, de grandes proporções, lembrando monstros de antigos filmes de terror, com o corpo recoberto de alguma coisa que lhe lembrava casca de árvores velhas. Seu antes belo rosto, aquele olhar sedutor, era agora o prelúdio da morte iminente, da dolorosa, cruel e inevitável morte. Avançava rapidamente em sua direção e, novamente, Bento é arrastado para dentro do lago.

O pobre homem foi encontrado, na manhã seguinte, cambaleando perigosamente pela BR que dava acesso ao pequeno município. Tinha as roupas enlameadas e rasgadas, além de generosamente tingidas de sangue, principalmente nas pernas. Quem o resgatou, um velho agricultor da região, diz que dele só ouvia palavras desconexas, confusão mental, e que tinha pavor estampado no olhar. Falava de uma incessante luta, que teria durado horas, contra uma disforme criatura coberta de lodo e olhar de morte. Curiosamente, constatou-se não estar embriagado. Levado à cidade, ficou aos cuidados do irmão, até que se restabelecesse por completo.

“História de pescador”, debocham os moradores da pequena cidade, sempre que Bento conta a alguém o que, supostamente, tenha lhe acontecido na represa. “Vai ver, ao invés da noiva, você encontrou foi a sogra”, brincou o motorista do ônibus, recebendo, em troca, risos dos presentes e um olhar de indiferença de Bento. Nem as cicatrizes das garras que retalharam seu tornozelo convencem da veracidade da aventura vivida. Perambula pelas ruas, arrastando a perna e contando, a quem estiver disposto a ouvir, sobre o demônio da represa que tentara seduzi-lo e depois levá-lo para as profundezas das águas geladas de uma noite de bela lua cheia. Desacreditado e ridicularizado por todos, Bento pode ser encontrado, em noites frias de lua como aquela, sentado no píer, sempre com um rifle no colo, pacientemente a esperá-la para o devido acerto de contas.