1

O tiro silencioso da besta atinge o centro da testa do zumbi abelhudo. O corpo vai abaixo sem fazer barulho. Parece fruta podre se esborrachando no chão. Coloco o virote no trilho da arma e puxo o arco. É fim de tarde. Os outros mortos-vivos continuam a vagar através da estrada entulhada de carros velhos.

Escondido por trás do Toyota arriado no acostamento, consigo ver as casas construídas num relevo íngreme em meio à planície distante. O lugar tá cercado por paliçadas como as de um forte. E impressiona! O vasto campo de capim alto, às margens da rodovia, parece ser o único acesso até lá.

— Ei, aquele é o local que estamos procurando? – pergunta em sussurros o jovem Abdiel ao meu lado.

Confirmo com a cabeça. Não estou de muita conversa hoje.

— Só pode ser. Olha aqui no mapa. O velho Tito chamava o lugar de a Vila dos Corpos Fechados – diz Tobias.

Levo o binóculo ao rosto. Não vejo ninguém em movimento próximo ao grande portão de madeira. Nem zumbis nem habitantes. Muito estranho. Onde estão os vigias das guaritas de observação?

— O velho Tito dizia que o povo da vila só aceitava imunes dentro da comunidade deles. Como vamos fazer pra nos aceitarem? – quer saber Abdiel, baixando o tom de voz ao ver outro morto-vivo travar os passos a poucos metros de nós.

— E quem disse que você ou eu não podemos ser imunes, hein?  Quem disse? Nós não sabemos, ora bolas. Nunca fomos mordidos por zumbis – reclama Tobias enrolando o mapa e enfiando-o no cós da calça.

Os andarilhos não infectados desta região vivem alimentando rumores do misticismo em torno da vila dos Corpos Fechados. Falam de um grupo inteligente e imune à epidemia, bem nutrido, que enfrenta com coragem diversas facções interessadas nos recursos deles. Não acredito em tudo que dizem. Estou cansado de ser andarilho. Quero é criar raízes em algum lugar e viver em comunidade.

— Vamos esperar à noite cair – resmungo. – Podemos nos aproximar sem ser vistos e estudar a situação de perto pra ver se vale à pena entrar em contato.

Os dois concordam. O morto-vivo parado a pouca distância se vira. Ele vem atraído pelo barulho da conversa. Outro abelhudo. Desta vez é Tobias quem atira. O virote penetra no crânio do infeliz e ele vai ao chão. Coisa cansativa ficar atirando em gente morta.

 

2

— Ei, vocês aí embaixo. Saiam de mãos levantadas.

O aviso de lá de cima vem junto com o facho de luz na nossa cara. Fico surpreso. Ora, fizemos o caminho até aqui em silêncio. Andamos o tempo todo agachados, escondidos na macega, dentro de uma escuridão dos diabos. Estou até com dores nas costas. Porra, o que aconteceu? Não tinha ninguém vigiando! Como é que agora descobriram a nossa aproximação? 

— O que vamos fazer, senhor? – sussurra Abdiel, ansioso, olhando-me de lado.

Ouço o clique de fuzil vindo lá do alto. A situação é preocupante.

— Escuta só, se trocarmos tiros com esta gente aí, vai dar ruim. Vai ser uma barulheira dos infernos. Os zumbis vão cair matando em cima de nós. Pode crer.

Tobias tá certo. A melhor opção é conversar. Não tem jeito. Fazer o quê?

— Ei, moço, somos apenas três andarilhos esfomeados. Estamos procurando um lugar pra dormir – aviso enquanto me apresento de pé com as mãos levantadas.

Não há resposta imediata. Fico cismado. O feixe de luz apontado em nossa direção nos permite apenas ver silhuetas no estrado superior da paliçada. De repente, passos firmes são ouvidos estralando a madeira seca lá em cima. Depois de uns poucos segundos tensos, o meu instinto de sobrevivência entra em alerta ao ouvir aquela voz grave, em tom de comando inquestionável.

— Como tu deixaste isto acontecer? Eles estavam na rodovia. Tu sabes bem que a tua vida depende desta tarefa. É a segunda vez que dormes na guarita, deixando-nos expostos deste jeito.

— Não é um ataque de facção, senhor. São... são apenas três andarilhos – hesita o outro, visivelmente nervoso.

— Ah, é mesmo? Então, eu te pergunto: e se fosse uma facção? – repreende a voz de comando. – Traga-os para dentro.

 

3

Somos escoltados pelo guarda ao centro da vila sob a luz de meia dúzia de lampiões. Estou com raiva da minha própria estupidez. Quanta burrice! Mas agora é tarde pra ficar chorando pitangas. O vigia me empurra com a coronha do fuzil. O idiota tá bem irritadinho por causa da nossa abordagem suspeita. Eu quero mais é que ele vá tomar no rabo.

Enquanto caminho, observo o lugarejo com atenção. Já me arrependo de ter entrado em contato com esta gente. Algo não vai bem por aqui. Sinto vibrações ruins. Os pelos do meu corpo se arrepiam. Então, eu começo a ficar preocupado.

A cada passo dado na direção da figura que parece ser o chefe deste lugar, o meu instinto de sobrevivência ressoa mais forte avisando-me com clareza pra dar o fora daqui! Além do líder, estamos cercados por seis homens e quatro mulheres. Eles são muito bizarros. Ficam nos observando de longe, escondidos nas sombras.

O susto, de verdade, vem quando ficamos cara a cara com o Chefe. Trata-se de um homem de constituição forte, imponente, de postura confiante. Percebo a tensão de Abdiel e Tobias ao meu lado. 

A vergonha e a raiva de ser pego na surdina, como criança levada, evaporam-se de mim ao entrar em contado direto com olhos do sujeito à minha frente. Olhos terríveis. São profundos. Invasores! Possuem uma espécie de determinação severa, fazendo-me desviar o olhar na hora. 

Mas não sou covarde!

Respiro fundo e tento encará-lo de volta. O rosto é marcado por numerosas cicatrizes que lhe cobrem a pele espantosamente branca. Uma das marcas na bochecha, desconfio, parece ser de dentes humanos. Mordida de zumbi. Sim, é claro! Reparo nas outras mordeduras nos braços. Ele é imune. Tem o corpo fechado!

O medo de continuar afrontando o olhar deste homem me incomoda. Quero ir embora. Meu coração acelera. Tenho a sensação incômoda de parecer um ratinho indefeso sendo avaliado por um tigre.

Ele acena com a mão pra que a sentinela do fuzil fique ao lado dele. A minha irritação com o vigia, agora, passa a ser de compaixão. É visível o pavor do pobre coitado. Os outros habitantes da vila começam a se agitar nas sombras. Lembram-me cães esfomeados esperando a comida que não vem. Meu corpo vibra na intenção de fugir. Sinto o mesmo sentimento de aflição em meus companheiros.

Acho que vamos morrer!

Quando o guarda se posiciona ao lado da figura misteriosa, de modo estupidamente servil, percebo que o rapaz tá se mijando nas calças de tanto medo. A situação é muito constrangedora para um homem. Tenho até vergonha. Ninguém merece passar por isso. Daí, do nada, o desgraçado do chefe leva a mão à nuca do coitado, assim como se fosse o gesto de um amigo oferecendo apoio a outro com dificuldades.

Fico tenso.

— Preste atenção – ele diz olhando diretamente pra mim. – Vou te fazer uma proposta irrecusável. Portanto, não corra! Entendeu?

Antes de pensar em responder, sou tomado pelo mais puro horror! As percepções da realidade se quebram. O líder da vila, de repente, arreganha um sorriso terrível a lhe alterar completamente as feições do rosto. Meu coração se contrai num tranco doloroso. Toda a cara dele fica pregueada e a boca se distende ao forçar a mandíbula superior um pouco à frente. Os dois dentes caninos se aguçam e projetam-se pra baixo. Parecem as presas de um animal faminto. Chego a duvidar do que vejo.

O vigia não tem a menor chance. Ele é puxado pela nuca já rendido, paralisado de pavor. Não chega nem a gritar. A coisa abre a bocarra e, semelhante a uma cobra peçonhenta, dá o bote certeiro no pescoço do infeliz, morde, arranca um naco de carne e cospe pro lado. Da ferida grotesca e avermelhada irrompe um fino jato de sangue pulsante. As pernas do vigia se dobram na mesma hora, porém ele não cai por causa do braço forte que o sustenta.

Fecho os olhos porque não quero ver mais nada.

Não quero acreditar.

Não corro.

Apenas ouço.

Os gritos agonizantes de desespero de Abdiel e Tobias me chegam de longe em meio ao movimento do ataque de coisas muito mais rápidas do que a lerdeza previsível dos zumbis. Devem ser os habitantes das sombras.

Vampiros!

Não demora muito pra eu sentir o hálito pestilento do monstro à minha frente.

— Acorda – ele ordena.

Abro os olhos e vejo apenas esta carranca medonha, cruel, babando sangue a centímetros do meu rosto. Os caninos começam a se retrair. Os olhos desta coisa, agora rubros da cor do inferno, grudam nos meus.

— Preciso de alguém que cuide da vila durante o dia. Você quer ser o nosso vigia?

Não tenho tempo de pensar, e nem quero. Mal percebo a urina escorrer pelas minhas pernas. Concordo com um gesto de cabeça. Respondo de modo urgente e servil:

— Sim... sim, senhor!

 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 11/01/2024
Código do texto: T7974426
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