Poeira lunar - CTLS 25

A poeira lunar há muito tempo tinha gerado curiosidade nas pessoas. A curiosidade se motivou porque a sua propriedade diferente fazia parecer flutuar mesmo na ausência do ar. Foram precisos alguns estudos para que se comprovasse que isso ocorria devido a força eletrostática do solo lunar. Isso foi há algum tempo, quando a habitação do ser humano ainda estava muito estava restrita à Terra e a cidade lunar assim como as outras cidades espaciais eram uma novidade. Nessa época qualquer mistério vindo dos planetas ou das luas onde tinham se fixado cidades era motivo de curiosidade e análise. Agora que a novidade havia passado, as coisas tinham mudado.

Depois que os seres humanos conseguiram alcançar as estrelas e fixar cidades especiais muitas coisas perderam o seu mistério e de novidade passaram a ser manchetes normais. Como aquela poeira, por exemplo. Mas Rita não pensava como a maioria. A moça ainda via algo mágico naquela poeira flutuante que acompanhava com os olhos brilhantes de quem contemplava algo pela primeira vez. Ela amava poeira no geral, talvez por isso o nome de seu cachorro era Dust, que queria dizer poeira em inglês.

Na sua mente a poeira era sinônimo de casa. Cresceu em uma cidadezinha empoeirada do interior do nordeste. Um lugar que devido ao clima seco sempre estava envolto por uma camada de pó e areia que após um tempo as pessoas desistiram de tentar varrer. A poeira fazia parte da paisagem local. Era como se fosse uma amiga que acompanhava as crianças nas brincadeiras de rua, nos jogos de futebol jogados com pés descalços no chão de barro ou nas partidas de bandeirinha e queimada.

Seu coração se aqueceu devido as lembranças se pegou sorrindo. Era o sorriso que só as recordações da infância conseguem provocar. Como uma lembrança sempre leva a outra logo começou a pensar em todo o seu caminho da cidadezinha em direção a missão espacial.

Seu percurso em direção às estrelas foi relativamente rápido. Desde menina sempre foi muito inteligente e tinha uma certa admiração pelas estrelas que conseguia ver claramente devido à ausência de poluição no céu noturno de onde morava. Seu professor notava o seu esforço e a sua inteligência, assim como o seu amor pelo universo e galáxias distantes. Ele a escreveu em um concurso de redação sobre a estação espacial que o governo brasileiro havia inaugurado recentemente em Marte. O vencedor do concurso ganharia a chance de conhecer a estação. Ela não ganhou o concurso, mas de alguma forma isso a deixou ainda mais motivada a continuar estudando. Estava entusiasmada e se preparava para alguma nova oportunidade.

A esperada oportunidade surgiu alguns anos depois na forma de uma prova de seleção para novos moradores, desta vez para uma cidade espacial na Lua. Não apenas moradores, mas diversos profissionais também eram requisitados. O Brasil era novo nesse setor, mas buscou se aliar a países como o Estados Unidos e o Japão que fortaleceram a economia com novas rotas no comércio intergaláctico e cidades fora da Terra. Os três países juntos projetaram cidades espaciais que uniram o melhor de cada país, lugares planejados para serem tanto moradias como colônias de férias, com direito a guia turístico e tradutores. Inscreveu-se como moradora que poderia atuar ocasionalmente como guia turístico, tinha uma certa experiência com isso, algumas vezes conduziu passeios turísticos pelas praias que ficavam mais ao litoral e também ajudava os estrangeiros a conhecer casarões históricos que guardavam um pouco da história do Brasil. Ao ler as questões da prova sentiu como se toda a sua jornada até aquele momento tivesse sido uma preparação para aquela prova. Foi aprovada. A alegria foi maior do que se tivesse ganho aquele concurso na época da escola, pois ele teria a chance de morar e não apenas passear.

Foi tirada de seus pensamentos nostálgicos por uma anormalidade na poeira, seus olhos atentos conseguiram captar uns movimentos fora do comum. Por um segundo pensou ter visto ela se juntar em um mesmo ponto, quase como se quisesse formar algo compacto naquele lugar. Ficou olhando mais atentamente e o fenômeno voltou a ocorrer. Dessa vez a poeira se condensou e pareceu formar algo realmente sólido, um tipo de braço ou tentáculo. Ela recuou alguns passos, nervosa, com as mãos tremendo nem conseguiu pegar o seu comunicador para avisar os outros sobre a sua descoberta. Ela estava meio distante da cidade lunar, estava em uma parte do solo lunar que era pouco explorada. Era o local para onde Rita ia quando queria ficar um pouco sozinha e também para pensar no nostálgico passado e no animador presente, além de ser uma oportunidade de observar a sua velha amiga poeira flutuante.

Nas vezes anteriores não tinha notado nada fora do comum. Enquanto pensava isso notava que pequenas anomalias continuavam a ocorrer na poeira. Ela começou a juntar as peças. Seu corpo lentamente se relaxava do susto, mas ainda não tinha forças para fugir. A sua mente por outro lado estava ativa e trabalhando com força total para entender o que estava ocorrendo. Logo começou a entender que a poeira flutuava não por ação de força eletrostática ou algo assim, mas ela flutuava porque aparentemente era uma forma viva. Rita estava diante de milhões de células de um organismo alienígena vivo. Ela sempre ouviu os moradores da cidade onde cresceu falarem que a poeira podia ser uma amiga devido a sua presença constante em todos os lugares, mas nunca pensou que ela pudesse realmente assumir a forma de um ser vivo. Queria correr, mas seus membros não lhe obedeciam. Observava com pavor silencioso a poeira se juntando cada vez mais, como em um quebra-cabeça macabro que ia se montando aos poucos até formar uma figura.

Quando começou a ver claramente que além dos aparentes tentáculos e braços, tinham se formado também o que pareciam ser olhos no que antes era poeira flutuante. Aqueles olhos brilhantes pareciam querer olhar na direção dela. A criatura via ela. Aquilo foi suficiente. Ela conseguiu finalmente vencer o nervosismo paralisante e correr rapidamente em direção a entrada da estação lunar. A vontade de sobreviver diante do perigo despertou seus instintos de sobrevivência que eram maiores que o medo. Ao longe via a cidade lunar protegida pela redoma, mas antes que pudesse a alcançar, sentiu quando o chão se projetou diante do seu rosto. Caiu porque um dos tentáculos da criatura agarrou a sua perna esquerda quando pareceu notar que ela tentava fugir.

Um novo medo se somou aos outros já existentes, ficou com medo que a criatura a puxasse com força e isso rasgasse o traje espacial. Além do receio da perda óbvia de oxigênio, considerava o traje espacial como um escudo entre sua pele e aqueles tentáculos e braços desconhecidos. Lentamente tentou usar os braços para se arrastar para a frente, tendo cuidado para não forçar o traje. Com dificuldade conseguiu se afastar um pouco e tentar mover a perna, porém o ser alienígena a puxou com força. Sentiu quando foi levantada no ar e colocada diante do que parecia ser o rosto da criatura.

A boca do ser alienígena se movia de uma forma desconexa, aquilo a deixou mais apavorada. Era como se ele estivesse tentando falar algo, porém nenhum som saia. Começou a se debater compulsivamente, na esperança que isso fizesse a criatura lhe soltar ou pequeno menos a tirasse de perto de seu rosto. Quando mais se movia, mais sentia os tentáculos da criatura lhe apertando em um tipo de abraço sinistro. Foi apertando e apertando até que a criatura explodiu em poeira e soltou Rita de uma vez no chão.

Olhou ao redor tudo tinha sumido, até mesmo a poeira flutuante. Correu rapidamente para a estação lunar. Enquanto corria, não tinha como Rita saber que partículas invisíveis da criatura alienígena estavam grudando em todo o seu traje espacial.

Uma vez dentro da cidade lunar, conseguiu respirar aliviada. Olhou ao redor e por um momento tudo naquele ambiente a tranquilizou. As lojas, as escolas e centros de estudo, as casas e as pessoas. A cidade espacial tinha um ar de tranquilidade e com a modernidade das tecnologias lembrava muito uma cidade terrestre, a única coisa que diferenciava era a redoma de vidro especial. Por um momento enquanto observava a calma da cidade, Rita teve a sensação que o ocorrido tinha sido apenas um pesadelo e sua mente conseguia aos poucos se recuperar do quase colapso que o encontro com a alienígena causou. Mas a sensação durou apenas poucos segundos, pois logo as lembranças do que ocorreu fizeram com que o seu rosto fosse de encontro ao chão pela segunda vez naquele dia.

Uma moradora que estava passeando com o cachorro se aproximou preocupada de Rita logo após ela cair no chão. O cachorrinho pareceu que farejava o traje espacial que a moça ainda usava. Em tempos normais, ver o cachorrinho tão próximo iria a acalmar, pois amava animais, tanto que tinha seu próprio cachorro. Tinha adotado seu bichinho de estimação logo que alguns animais foram trazidos da Terra para a cidade, aquela era a primeira cidade espacial em que tantos bichos terrestres eram trazidos. Não demorou muito para que em quase todas as ruas terem cachorros e uns poucos pássaros voando perto das árvores também trazidas da Terra. Tinha até um zoológico com animais mais exóticos. Tudo parte de um experimento sobre como animais se comportam no espaço sideral, em um local que tentava reproduzir o ambiente terrestre. Aparentemente tudo corria bem com os bichos, apesar de por algumas vezes os residentes terem visto alguns animais do zoológico correr em círculos sem motivo aparente e pássaros se jogando com força contra a redoma de vidro.

O cachorrinho ainda estava farejando Rita, quando outros curiosos vieram ver o que tinha ocorrido. A moça sentiu tudo apagar e acordou no hospital. Logo que se recuperou mais e conseguiu contar o que tinha ocorrido, Rita alertou as autoridades da melhor forma que conseguiu e eles foram fazer uma varredura na região, alguns estudiosos ficaram entusiasmados com uma possível descoberta, mas tudo feito com cautela para não gerar pânico entre os moradores. Apesar de buscas minuciosas não encontraram nada e nem sinal de criatura nenhuma, nem mesmo a poeira lunar estava mais lá. Mas mesmo assim, as autoridades responsáveis colocaram robôs exploradores na área e não permitiram a entrada de mais ninguém por tempo indeterminado.

Rita ficou alguns dias em casa para se recuperar do susto e passaram dias sem que nada de realmente estranho ocorresse. Durante o período em que esteve em repouso, a moça notou seu cachorrinho Dust agindo meio diferente, começando a correr em círculos como alguns animais do zoológico faziam e uma vez tentou se jogar contra a parede da casa deles, mas Rita impediu. Atribui esses comportamentos ao fato dele sentir o estresse dela. Às vezes, também a moça tinha a impressão de estar sendo observada e notou que algumas de suas roupas sumiram misteriosamente, mas preferiu ignorar esses detalhes, pois queria voltar ao normal o mais rápido possível.

Mas uma noite ocorreu algo que ela não pode ignorar. Acordou de madrugada com um barulho alto vindo da cozinha e quando foi conferir, não deixou de segurar um grito, pois viu uma garotinha desconhecida parada no centro do cômodo e aos pés dela seu cachorrinho desmaiado. Com todas as portas fechadas não entendia como a criança tinha entrado e para piorar o mistério a menina usava roupas grandes demais para ela, roupas que Rita sabia que eram as suas que tinham sumido.

Aproveitando o choque, a garotinha tentou falar algo para Rita, mas a moça não entendeu. Apesar dela ter o tamanho de uma menina de dez anos, ela falava como uma criança que ainda não domina as letras. Ao ver que Rita não entendia a fala dela, apontou para o cachorro como se tentasse falar algo por sinais. Não funcionou. Aparentemente perdendo a paciência, a menina esticou um dos braços e esse virou um tentáculo. Rita se viu novamente presa em um momento de horror quando o tentáculo agarrou em sua perna e puxou pelos cômodos em direção a porta da frente com uma força maior do que ela aparentava ter. A moça gritava na esperança de algum vizinho atender, mas enquanto gritava notou que era possível ouvir ao longe sons de gritos que pareciam vim de toda vizinhança, assim como som de algo batendo violentamente contra a redoma de vidro da cidade.

Quando estavam perto da porta, Rita ouviu latidos e o barulho do seu cachorro vindo na sua direção. Seu coração se encheu de esperança de que seu cachorro vinha lhe salvar, mas logo notou que algo estava errado. O animal parecia descontrolado e agitado, ao longo do caminho ia batendo com a cabeça nas paredes deixando assim um rastro de sangue. Olhou na direção dela como se não a reconhecesse e mostrando os dentes. Naquele momento Rita não sabia o que representava mais perigo, se era seu amado cachorro ou a garotinha.

A garotinha misteriosa transformou o outro braço em um tentáculo e o esticou prendendo o cachorro raivoso e o empurrando para dentro da cozinha, dando tempo assim para que ela fechasse a porta da sala em que estavam.

-O que está ocorrendo?- Rita se perguntava porque aos poucos os sons de gritos que pareciam distantes pareciam mais perto. Olhou pela janela e se viu diante de uma cena de total horror. Por toda a rua cachorros e pássaros descontrolados atacavam as pessoas. Um homem que corria bateu com a cabeça forte no chão ao ser derrubado por um cachorro. Uma vez no chão o animal enfiou os dentes na parte mole da barriga do homem e puxou algo de dentro com violência, após isso o cachorro saiu levando o que parecia ser um pedaço de carne ou de intestino pendurado na boca. Também viu ao longe o que parecia ser uma zebra que provavelmente tinha fugido do zoológico, ela corria enquanto um cachorro estava com os dentes enfiados no pescoço dela. Estava um caos.

Rita logo descobriu que o som de algo batendo violentamente contra o vidro não eram pássaros, mas pessoas desesperadas tentando encontrar uma rota rápida de fuga enquanto eram atacadas pelos animais. Mas o vidro era inquebrável. Eles estavam presos com um bando de animais descontrolados em uma cidade espacial que era protegida por uma redoma de vidro que era impossível de quebrar e onde a única saída era meio longe de onde estavam. Mas no desespero algumas pessoas ainda tentaram, como um homem que estava sendo atacado por um cachorro que arranhava com violência a sua costa . O rapaz batia a cabeça contra o vidro e se jogava tentando sair, enquanto o cachorro continuava tirando pedaços da carne da sua costa com as unhas.

O cachorro de repente parou de arranhar as costas do pobre rapaz e olhou na direção de Rita, pegou impulso e correu visando a janela aberta com a boca mostrando os dentes. Conforme se aproximava era possível notar que uma parte do rosto do cachorro estava faltando, mas ele parecia nem sentir e parecia só focado em atacar Rita. A moça paralisada pela cena não teve força de fechar a janela, mas a garotinha a salvou pela segunda vez naquele dia, ao empurrar um armário para tapar a janela. Ainda se ouviu o som da cabeça do animal contra a madeira.

Aquilo foi demais para Rita que ainda estava se recuperando do primeiro encontro com a criatura de poeira que tinha assumido a forma de uma garotinha e de descobrir que seu amado cachorro queria lhe matar. Sentiu tudo apagar, enquanto os sons de grito iam ficando mais ao longe. Quando acordou não se ouvia mais cachorros e nem gritos, somente o som de uma mensagem que tentava tranquilizar a população. As autoridades estavam tentando controlar a situação. Demorou horas que realmente controlassem e ainda mais tempo para terminar de identificar os mortos e recolher os cachorros restantes, como o cachorrinho de Rita que foi encontrado morto devido a ter batido compulsivamente a cabeça contra a porta. Apesar de tudo, a moça ficou profundamente triste com a morte do bichinho.

Depois de um tempo se soube que a maioria das pessoas que moravam perto do zoológico tiveram as casas invadidas pelos animais em fuga. Também se soube que as pessoas que tinham cachorros não tiveram tempo de fugir ou se machucaram muito, pois os animais atacaram as enquanto eles ainda dormiam. Rita pensava que talvez o mesmo tivesse ocorrido com ela se a garotinha não tivesse parado o seu cachorro. Tinha a sensação que naquele primeiro encontro a criaturinha de poeira tinha tentando lhe avisar que tinha algo errado, mas Rita não conseguiu entender. Lembra de como em meio a poeira o que parecia ser a boca da criatura se movia.

Após o ocorrido as autoridades e os cientistas chegaram a conclusão óbvia de que não era possível e seguro trazer animais terrestres para cidades espaciais e trataram de fazer de todo o possível para esconder o ocorrido das pessoas na Terra e tentar passar uma imagem de normalidade para os residentes. Mas mesmo assim Rita não se sentia mais tão segura ali.

Depois de tudo isso, a moça pensou em passar um tempo na cidadezinha cheia de poeira em que cresceu. Passou a pensar nela como a tempos não pensava . Ao pensar no local em que cresceu logo começou a se formar em sua mente imagens do passado distante, dela criança correndo pela rua empoeirada, da poeira sempre presente na vida e na casa das pessoas, como uma amiga que não precisa pedir permissão para entrar. Rita se pegou sorrindo pela primeira vez depois de tudo que ocorreu. Ainda com o sorriso no rosto olhou para a garotinha que tinha se formado da poeira lunar e que estava a cada dia mais próxima dela. Pensou que talvez o seu pensamento de criança de que a poeira fosse uma velha amiga estivesse realmente certo. A saudade de sua cidade aumentou. Decidiu que passaria um tempo no seu lar de infância , depois de tudo precisava ficar um tempo longe do espaço mesmo.

"Um homem percorre o mundo inteiro em busca daquilo que precisa e volta a casa para encontrá-lo"

.George Moore

Tema: Terror Espacial(Terror no espaço) e realismo mágico.

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 03/12/2023
Reeditado em 04/12/2023
Código do texto: T7946414
Classificação de conteúdo: seguro
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